Proc. nº 309/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 10 de Novembro de 2011
Descritores:
-Revisão/ confirmação de decisão de tribunal do exterior de Macau
-Carta de administração
SUMÁRIO:
I- Carta de administração, no direito anglo-saxónico, é um documento emitido pelo tribunal de sucessões pelo qual é nomeado um administrador dos bens da pessoa que morreu, conferindo-lhe poderes para os administrar, quando em vida esta não manifestou a sua vontade sobre o destino a dar-lhes ou quando não existe um executor para o efeito nomeado por sua vontade.
II- Se em anexo à carta de administração existe uma relação de bens do falecido e nela não consta nenhuma conta bancária num banco de Macau, a revisão dessa decisão (“carta de administração”) não será útil nem eficaz na RAEM, nos termos do art. 1199º do CPC, na medida em que a sentença de revisão que o Tribunal de Macau eventualmente emitisse não permitiria ao autor movimentá-la, nomeadamente para proceder a levantamento de dinheiro.
Processo n. 309/2011
Revisão de sentença
Acordam na 2ª Instância da RAEM
I - Relatório
A (A), viúva, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong n.º KXXXXXX(1), residente em Hong Kong, Kwai Chung, 21-33 ...... Road, ......, block …, Rm …, ao abrigo dos dispostos no art.º 1199.º e segs. do Código de Processo Civil, vem instaurou contra:
B (B), solteiro, de nacionalidade chinesa, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente de Hong Kong n.º ZXXXXXX(6), residente em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15,... andar ...,
Processo especial da revisão de decisões proferidas no exterior de Macau.
Nos termos e fundamentos seguintes:
1.
Em 16 de Junho de 2010, C (C) faleceu em Hong Kong, deixando a residência habitual em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15,... andar ....
2.
C (C) não fez qualquer testamento.
3.
Em 5 de Outubro de 2010, a requerente e B (B) apresentaram requerimento de concessão da herança de C (C) a Probate Registry do Juízo de Primeira Instância do Tribunal Superior de Hong Kong, com o número do arquivo HCAG......-2010.
4.
De acordo com as leis da administração de herança em Hong Kong, se o falecido não fizer testamento, a respectiva concessão de herança chama-se carta de administração (letters of administration).
5.
A “carta de administração” é a decisão feita pelo administrador oficial do Tribunal Superior de Hong Kong segundo o procedimento civil geral no caso da falta de testamento.
6.
Em 18 de Novembro de 2010, o Juízo de Primeira Instância do Tribunal Superior de Hong Kong designou a requerente e B (B) como representantes comuns da herança de C (C), e emitiu a carta de administração. (vide o documento n.º 1)
7.
De acordo com os dispostos legais em Hong Kong, a respectiva carta de administração já é definitiva, porque ninguém se opôs ao trânsito em julgado da respectiva decisão no prazo de 28 dias a contar do dia em que foi feita a decisão (ou seja, o dia 18 de Novembro de 2010).
8.
O falecido C (C) foi residente permanente de Hong Kong, titular do Bilhete de Identidade de Residente Permanente n.º HXXXXXX(0), e tinha a residência habitual em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15,... andar ....
9.
Por isso, segundo o art.º 20.º (a contrário sensu) do Código de Processo Civil, o Tribunal Superior de Hong Kong tem competência para administrar a herança do falecido C (C), a decisão não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau, e a competência do Tribunal Superior de Hong Kong que fez a decisão não é provocada em fraude à lei.
10.
É autêntico o teor constante da supracitada decisão e não há dúvidas sobre a inteligibilidade da decisão, porque a supracitada decisão foi feita conforme «Non-Contenious Probate Rules» de Hong Kong.
11.
Para a referida decisão, não se pode invocar excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau.
12.
Além disso, o objecto da referida decisão é a sucessão da herança e este tipo de sucessão também existe na ordem jurídica de Macau, pelo que a decisão não viola o moral e a cultura da sociedade de Macau, e não tem teor obviamente incompatível com a ordem pública de Macau.
13.
Pelos expostos, a referida decisão reúne completamente os requisitos previstos no art.º 1200.º do Código de Processo Civil.
Nestes termos:
1. De acordo com os dispostos legais, pede-se ao juiz para julgar procedente a presente acção por ser provada e que produz toda a eficácia jurídica, e confirmar a decisão feita pelo Tribunal Superior de Hong Kong;
2. Ao abrigo do disposto no art.º 193.º do Código de Processo Civil, solicita-se que o tribunal faça a citação do requerido para prestar contestação no prazo legal e continue a proceder aos outros actos processuais de acordo com o art.º 1201.º e segs. do Código de Processo Civil, para produzir a correspondente eficácia jurídica”.
*
Não houve contestação.
*
O digno Magistrado do MP opinou no sentido do deferimento da pretensão.
*
Cumpre decidir.
***
II- Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
***
II- Os factos
1- Em 16 de Junho de 2010 C faleceu em Hong Kong, ali residente em Kowloon, ......Road, nº 15, ... andar ....
2- Não fez qualquer testamento para dispor dos seus bens.
3- No juizo de 1ª instância do Tribunal Superior de Hong Kong Tribunal A e B formularam um pedido de concessão de herança de C.
4- O Tribunal competente de Hong Kong emitiu então uma carta de administração através da qual, perante a declaração dos requerentes de que iriam gerir os bens móveis e imóveis do falecido de forma honesta, que iriam tratar fielmente a herança com todos os seus os direitos e créditos, liquidar todas as dívidas daquele e fornecer a correcta relação de bens, concedeu poderes de administração da herança aos aqui autores A e B.
5- O seu teor é o seguinte:
Região Administrativa Especial de Hong Kong
Tribunal Superior
Juízo de Primeira Instância
N.º HCAG......-2010
Carta de Administração
Verifica-se o que consta da carta de administração de 18 de Novembro de 2010, que o falecido C (C) faleceu em 16 de Junho de 2010 sem deixar testamento, a sua última residência situa-se em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15, ... andar ..., e o seu lugar da residência habitual é Hong Kong. Os bens móveis e imóveis e os patrimónios completa ou parcialmente possuídos pelo falecido são concedidos à A (A), residente em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15, ... andar ..., e ao B (B), residente também em Hong Kong, Kowloon, ......Road, n.º 15, ... andar .... Estas duas pessoas já fizeram juramento e prestaram a seguinte declaração solene: gerir de forma honesta e adequada e tratar fielmente os bens, as heranças, os direitos e os créditos gozados pelo falecido em Hong Kong na altura do seu óbito; liquidar as dívidas do falecido com os referidos bens, heranças, direitos e créditos; tratar legalmente os restantes bens, e a pedido da lei, mostrar e fornecer a correcta relação dos bens completa ou parcialmente possuídos pelo falecido e que corresponde aos factos.
Adita-se ainda uma cópia do balanço financeiro do falecido de 5 de Outubro de 2010.
6- A relação de bens está contida nos autos (tradução a fls. 9-12 do apenso designado “traduções”).
Dela constam os seguintes bens:
O balanço financeiro do falecido em Hong Kong até o dia do falecimento (adiante designada por “balanço”)
Nome do falecido: C (C) (adiante designado por “falecido”)
N.º do Bilhete de Identidade de Residente de Hong Kong: HXXXXXX(0)
Data do óbito: 16 de Junho de 2010
A. Bens
1. Numerário (indique o valor) HK$
(moeda estrangeira,
Indique: )
Não há.
2. Depósito bancário
Banco N.º da conta Balanço no dia do óbito
HK$
(moeda estrangeira,
Indique: )
Banco da China (Hong Kong)
(a) Conta n.o 012-XXX-X-XXXXXX-8 HK$345.029,23
(b) Conta n.º 012- XXX-X-XXXXXX -5 HK$12.520,68
3. Cofre de segurança
Banco N.º do cofre Sucursal Objecto contido
(vide a relação de existência no anexo)
Não há.
4. Acção, título de crédito e confiança
(a) Em nome do falecido
Detenção Companhia/Confiança
9.999,00 acções ordinárias XXX Limited
(Companhia n.º 22XXXX)
(b) Na conta de titulo n.º do banco/da firma de corretagem.
Detenção Companhia/Confiança
Não há.
5. Empresa
Nome N.º de matrícula da empresa Quota
Não há.
6. Artigos domésticos
(Pintura, jóia e mobiliário, etc.)
Não há.
7. Veículo motorizado e embarcação
(Se for veiculo motorizado, indique a classificação, o número da matricula e a data de fabricação)
(Se for embarcação, indique a classificação, o número da licença e o comprimento do barco)
Não há.
8. Terreno e prédio
(Faça o favor de fotocopiar a descrição predial exacta segundo o registo em The Land Registry)
Não há.
9. Apólice de seguro e conta de reserva obrigatória
(Indique o nome da companhia de seguros ou da fundação, o número da apólice e da conta)
Reserva obrigatória
Curador: XXX Provident Funds Trust Company Limited
Projecto: XXX Global Select (MPF) Scheme
Código da conta do cliente: 28XXXXX-10
10. Cobertura da herança
(Incluem-se o crédito, a renda, a indemnização, a renda a título de caução de agua e electricidade, outros juros de herança e a reclamação, etc.)
Um cheque emitido pelo senhor XXX em 30 de Abril de 2010, n.º XXXXXX, do Banco HSBC Hong Kong, no valor de HK$2.500.000,00.
11. Prédio possuído pelo falecido na qualidade de curador ou gerente de XXX ou XXX
(Faça o favor de fotocopiar a descrição predial exacta segundo o registo em The Land Registry)
Não há.
12. Outros bens
(Ou seja prédio não incluído no artigo acima referido)
Não há.
B. Dívida
Nome do credor Descrição de débito ou dívida
Não há.
Obs.
De acordo com os artigos 15A/24A/49AA de Probate and Administration Ordinance (Capítulo X), a presente relação entra em vigor desde a elaboração de affidavit para comissário/ declaração para comissário por requerente/exequente/administrador. Por não haver exigências na lei, a autenticidade e a fidelidade dos dados constantes da presente relação não foram verificadas por Probate Registry ou Tribunal Superior de Hong Kong.
Aviso
De acordo com o artigo 60J de Probate and Administration Ordinance (Capítulo X), todos os bancos, empresas, firmas, lojas e indivíduos que podiam ter conhecimento da presente relação, não podem tratar os bens do falecido não enumerados na relação. Quem violar os dispostos no artigo 60J cometerá crime e será punido com pena de multa e outras penas.
7- O falecido era titular de uma conta bancária de depósito no Banco da China (Sucursal de Macau) com o nº 09-XX-XX-XXXXX no valor de HKD $ 534.692,71.
***
III- O Direito
Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida; 342/2009 28/34
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública. 2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Neste tipo de processos - de revisão formal - não se conhece do fundo ou do mérito da causa, uma vez que o Tribunal se limita a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento, nem da questão de facto, nem de direito.
De qualquer modo, a revisão e confirmação tem um objectivo claro e único: o de conferir eficácia ao objecto revidendo e confirmando, tal como resulta do art. 1199º do CPC. Isto é, a necessidade de se confirmar e rever uma sentença estrangeira resulta do facto de haver uma conexão qualquer entre a sentença e Macau e uma utilidade dela derivada. A relação jurídica tratada na sentença revidenda tem que estar relacionada com Macau, onde aliás se pretende a sua execução.
Mas, se assim é, ou seja, se a sentença para ser aplicada tem que revelar aquela conexão, o certo é que a carta de administração (decisão a rever e confirmar) não a revela (ver fls. 7 do processo e 7 do apenso “traduções”).
Carta de administração, no direito anglo-saxônico, é um documento emitido pelo tribunal de sucessões pelo qual é nomeado um administrador dos bens da pessoa que morreu, quando em vida esta não manifestou a sua vontade sobre o destino a dar-lhes ou quando não existe um executor para o efeito nomeado por sua vontade.
Ora, embora saibamos que o falecido deixou uma conta bancária em Macau (doc. fls. 28-34), dificilmente se poderá entender que a carta de administração faz alguma remissão para esse bem em Macau, uma vez que, segundo parece, ela apenas confere a administração a favor dos interessados A e B relativamente aos que vêm enumerados na relação anexa ao pedido (ver 8 a 10 dos autos e 9 -13 do apenso “traduções”).
Portanto, se não é claro que a “carta de administração” (objecto a rever) confira poderes de administração relativamente ao dinheiro da conta de Macau do banco da China, a sentença de revisão e confirmação, a decretar-se, sofreria necessariamente do mesmo vício, uma vez que não podia ultrapassar o seu objecto. Consequentemente, qualquer sentença que este TSI proferisse não podia ser útil e eficaz em Macau, por não surtir os pretendidos efeitos, quer dizer, por com ela a requerente não poder levantar o dinheiro depositado na sucursal do Banco da China em Macau.
E isto até é reforçado pelo teor do Aviso de fls. 12 do apenso “Traduções” ou “Warning” de fls. 10 dos autos. De acordo com ele e com o citado artigo 60J do “Probate and Administration Ordinance”, nenhumas empresas, bancos, firmas e lojas e pessoas a quem for dado conhecimento daquela relação de bens podem dispor de bens do falecido não enumerados na referida relação. E qualquer pessoa que viole o disposto no art. 60J comete uma ofensa criminal, punível com pena de multa e outras penas.
É, portanto, um problema de falta de conexão e, mais do que isso, de iliquidez sobre a extensão dos poderes concedidos à requerente na referida carta de administração.
Para a requerente poder dispor de uma decisão eficaz na RAEM, e com ela efectuar movimentos na conta bancária de Macau, deverá formular um outro pedido de carta de administração em Hong Kong (que deverá também incluir a indicação da eventual (in)existência de qualidade de herdeiros), fazendo incluir na relação de bens respectiva aquele depósito bancário e só então, uma vez concedida a carta com aqueles poderes de disposição de bens será possível a este TSI rever e confirmar a carta que vier a ser proferida.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em julgar improcedente a revisão e confirmação aqui peticionada.
Custas pela autora.
TSI, 10 / 11 / 2011
(Relator) José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto) Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto) Choi Mou Pan