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Processo nº 365/2011
Data do Acórdão: 15SET2011


Assuntos:

Nulidade processual
Arguição da nulidade
Recurso

SUMÁRIO

1. Entende-se por nulidade a ilegalidade por inobservância do formalismo processual prescrito na lei, ou por prática de um acto processual proibido ou por omissão de um acto prescrito na lei. Ou seja, é o caso em que por trás da ilegalidade cometida foi praticado ou omitido um acto, mas o tribunal não chegou a pronunciar-se expressamente sobre a legalidade do acto ou da omissão.

2. Dos despachos cabe recurso para o Tribunal superior e das nulidades cabe arguição perante o Tribunal a quo onde foi cometida a pretensa ilegalidade processual.


O relator


Lai Kin Hong

Processo nº 365/2011


Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:

I

Na acção ordinária intentada por A, LIMITED, contra a B, LIMITADA, ambas devidamente identificadas nos autos, registada sob o nº CV1-08-0038-CAO e que corre os seus termos no Tribunal Judicial de Base, foi proferida a sentença julgando parcialmente procedente a acção e em consequência decidindo condenar a Ré B a pagar a Autora A a quantia de HKD$2.170.711,12, acrescida de juros legais contados a partir de 3 de Setembro e 2008 até integral e efectivo pagamento.

Dessa sentença foi interposto recurso ordinário pela Ré B.

Notificada do despacho que admitiu o recurso veio a Autora recorrida A requerer, ao abrigo do disposto no artº 609º do CPC, que a Ré recorrente B prestasse a caução a seu favor, no montante correspondente à quantia em que foi condenada.

Notificada por despacho datado de 08OUT2010 do requerimento, nada a Ré recorrente B veio a dizer.

Em face desse requerimento formulado pela Autora A solicitando que fosse ordenada a prestação da caução por parte da recorrente, a Exmª Juiz titular do processo proferiu em 05NOV2010 o seguinte despacho:

Na sequência do recurso interposto pela Ré BLimitada, veio a Autora A Logistics (HK) CO, Limited requerer que a mesma preste caução a seu favor, no montante correspondente à quantia em que foi condenada, por sentença proferida nos autos, nos termos do artigo 609.º do Código de Processo Civil.
A Ré, notificada para se pronunciar, nada disse.
Apreciando:
A caução que a Autora está a exigir tem um regime processual próprio e assenta no pressuposto de que a parte vencedora não quer ou não pode executar provisoriamente a decisão, devendo tal pedido ser formulado no prazo de 10 dias após a notificação do despacho que admita o recurso, tal como resulta do disposto no artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil de Macau.
No vertente caso, todos esses pressupostos se verificam, tendo em conta que o despacho, que admitiu o recurso e lhe fixou efeito suspensivo, foi notificado às partes em 29 de Setembro de 2010 e o requerimento em apreço deu entrada em juízo dentro dos 10 dias subsequentes, bastando à Autora declarar que não quer ou não pode executar a sentença.
Assim sendo, dúvidas não restam que a Autora tem fundamento legal para exigir da Ré a prestação de caução.
No que respeita à fixação da caução importa referir que a mesma visa salvaguardar os direitos do recorrido para a hipótese do recurso ser julgado improcedente. Por isso, a idoneidade da garantia tem que ser aferida perante esse cenário.
A sentença recorrida condenou a Ré a pagar-lhe a quantia de HKD2.l70.71l,12 (dois milhões, cento e setenta mil, setecentos e onze dólares de Hong Kong e doze cêntimos), acrescida de juros calculados à taxa legal contados desde 03 de Setembro de 2008 até integral pagamento.
A Autora liquidou os juros vencidos até 04 de Outubro de 2010 em HKD440.928,88 valor que deverá, igualmente ser caucionado.
Pelo que se deixa exposto, tendo em mente o disposto no artigo 609.º e 610.º a contrario, ambos do Código de Processo Civil, defiro o requerido pela Autora e determino que a Ré recorrente preste caução, por meio de depósito de dinheiro ou fiança bancária, no prazo de 10 dias, contados da notificação deste despacho, no valor de MOP$ HKD2.6l1.640,00 (dois milhões, seiscentos e onze mil, seiscentos e quarenta dólares de Hong Kong)
Notifique.


Não se conformando com esse despacho que ordenou a prestação da caução, veio a Ré recorrente B, mediante o requerimento datado de 23NOV2010, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, concluindo e pedindo:

Conclusões:
I. Do despacho que decide o incidente de caução, instaurado nos termos do art. 609.º do CPC, e processado nos autos da causa principal, e assim, lógicamente proferido já após haver sido interposto recurso da decisão de mérito na causa principal, cabe recurso, que tem o mesmo regime de subida dos despachos proferidos na causa principal após prolacção da decisão final, e que, assim, é o previsto no art. 601.º, n.º 1, al. c) do CPC, que dispõe que sobem imediatamente ao Tribunal de Segunda Instância os recursos interpostos dos despachos proferidos depois da decisão final, e subindo nos próprios autos em que forem proferidos, o efeito do recurso é o previsto no art. 607.º, n.º 1, do CPC, ou seja, o efeito suspensivo.
II. O despacho de 05.11.2010 proferido a fls. 674 dos autos, que determina que a R. recorrente preste caução, por meio de depósito de dinheiro ou fiança bancária, no valor de HKD$2,611,640.00, no prazo de 10 dias, é nulo, porque foi proferido sem cumprimento do princípio do contraditório, sem que a R. recorrente haja sido notificada para contestar o pedido de instauração do incidente, inexistindo qualquer sua intervenção no incidente através da qual haja exercido esse seu direito ao contraditório até à prolação de tal decisão - entendimento diverso faz indevida interpretação e aplicação dos arts. 3.º, 891.º, 900.º,405.º,406.º, 141.º, a) e 148.º do CPC.
Termos em que,
Se requer a rectificação do regime de subida e efeitos do presente recurso serem rectificados,
E a declaração de nulidade do despacho recorrido, nos termos das conclusões acima, por haver sido proferido sem que a R. recorrente haja sido facultada a oportunidade de deduzir oposição.
COM O QUE SE FARÁ A HABITUAL JUSTIÇA!

Na pendência do recurso e antes da sua subida para este Tribunal ad quem, foi por a demora na prestação da caução excedente a 10 dias, que por despacho da Exmª Juiz Titular do processo foi determinada a extracção do traslado, nos termos permitidos pelo disposto no artº 611º do CPC.

Não tendo a Ré recorrente B prestado a caução no prazo que lhe foi judicialmente fixado para o efeito, foi, a pedido da Autora recorrido CIT, determinada a apreensão das quantias depositadas em diversas contas bancárias pertencentes à B.

Notificada a Autora ora recorrida, respondeu pugnando pela improcedência do recurso (vide as fls. 103 a 109 dos p. autos).

II

Por despacho do relator, foi, pela simplicidade da questão a decidir no presente recurso e pela celeridade própria de um incidente da prestação da caução, determinada a dispensa dos vistos nos termos do disposto no artº 626º/2 do CPC.

Pelos Juizes Adjuntos do Colecitivo foi dada a sua concordância à sugestão da dispensa dos vistos, cumpre apreciar.

Como vimos supra, a recorrente veio questionar o efeito meramente devolutivo atribuído pelo Tribunal a quo. Todavia, esta parte já não vai ser o objecto da nossa apreciação neste arresto por ter sido já objecto do despacho do relator a fls. 112 e v. dos presentes.

Assim, de acordo com o sintetizado nas conclusões do recurso, a única questão levantada pela recorrente é a da nulidade do despacho que ordenou a prestação da caução, por ter sido proferido sem observância do princípio contraditório na forma preceituada nos artºs 890º a 895 e 900º do CPC.

Então vejamos.

Entende a recorrente que a tramitação do incidente de caução deve seguir os termos dos artºs 890º e s.s. do CPC, conforme se verifica do artº 900º do CPC.

Assim, na óptica da mesma recorrente, tendo in casu a requerida da caução B, ora recorrente, apenas sido notificada para, querendo, se pronunciar sobre o pedido formulado pela Autora recorrida, no prazo de dez dias, a notificação é indevida porque, de acordo com o preceituado nos artºs 891º, 900º, 405º e 406º do CPC, ela tem de ser notificada para, no prazo de 15 dias, oferecer caução idónea ou contestar o pedido, indicando logo as provas, com a cominação de que a falta de contestação tem efeito cominatório semi-pleno, devendo na contestação impugnar o valor indicado pelo requerente se o achar incorrecto, sob pena de não ser admitida a impugnação.

Não tendo sido notificada nesses precisos termos, na esteira do entendimento da recorrente, verifica-se a falta do notificação equivalente à falta de citação nos termos do artº 141º-a) do CPC, o que é gerador da nulidade do despacho, ora recorrido, que ordenou a prestação da caução.

Quid juris?

A recorrente defende que se aplica ao presente incidente da prestação da caução a tramitação prescrita no processo especial de prestação da caução, previsto nos artº 890º e s.s., ex vi do artº 900º do CPC.

Todavia, dando uma vista de olhos ao que se passou no presente caso, salta à vista que, independentemente da aplicabilidade ou não da tramitação prescrita para o processo especial de prestação da caução, não procede a pretensão, por parte da recorrente, de que o despacho ora recorrido seja julgado nulo por falta da notificação nos precisos termos prescritos no artº 891º do CPC.

Pois, partindo da hipótese de que é de seguir no caso em apreço a tramitação própria do processo especial da prestação da caução, previsto nos artºs 890º e s.s., a invocada nulidade por alegada falta de notificação, ficou desde há muito sanada nos termos do artº 142º do CPC, nos termos do qual se o réu ou Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.

Na verdade, a requerida da caução B, ora recorrente, quando foi notificada pelo despacho a fls. 670 para se pronunciar no prazo de 10 dias sobre o pedido da prestação da caução, já tinha o ónus de arguir a pretensa nulidade alegadamente cometida pelo mesmo despacho que não observou o formalismo prescrito no artº 891º do CPC.

Contra esse entendimento nem se pode argumentar que, face ao disposto no artº 142º, a parte interessada só tem o ónus de arguir a nulidade logo que intervenha no processo, e não também quando notificada para qualquer termo do processo.

Uma vez que essa norma é concebida para a citação de um demandado que nunca interveio no processo e não para a notificação de uma parte que já está no processo, naturalmente há que a aplicar mutatis mutandis a notificações.

Ora, a razão de ser do artº 142º é que só com a sua intervenção no processo, o demandado, que nunca antes teve contacto com o processo, passa a tomar conhecimento da existência de um processo contra ele instaurado e estar em condições de reagir contra quaisquer nulidades entretanto verificadas. Por isso, a lei estabelece que enquanto não tiver intervenção no processo e portanto não puder tomar conhecimento de nulidades, não caduca o direito processual de reagir de um demandado ainda não validamente citado.

O que é perfeitamente compreensível.

Já não é assim acontece com a parte que já está no processo e conhece bem do estado do processo.

Por isso, a lei estabelece que, em relação a uma parte que já está no processo, já não exige a sua intervenção no processo, mas apenas a notificação para qualquer termo do processo, desde que com a notificação seja de presumir que a parte tomou conhecimento da nulidade ou pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

Portanto, em vez de fazer recair sobre a parte interessada o ónus de arguir a tal nulidade apenas no momento em que intervenha no processo, deve aplicar, com adaptações, a regra geral prevista no artº 151º do CPC, nos termos do qual o prazo para a arguição conta-se do dia em que, depois de cometida a nulidade, a parte interveio em algum acto praticado no processo ou foi notificada para qualquer termo dele, mas neste último caso só quando deva presumir-se que então tomou conhecimento da nulidade ou quando dela pudesse conhecer, agindo com a devida diligência.

Na verdade, confrontando o teor da norma especial do artº 142º com a regra geral consagrada no artº 145º, é de notar que ambas normas são bem demonstrativas de uma ideia comum, isto é, o interessado deve reagir imediatamente ou num curto prazo minimamente necessário contra quaisquer nulidades de cuja existência tem e não pode deixar de ter conhecimento.

E não se vê qualquer intenção por parte do legislador de permitir ou tolerar a parte, embora inteirada da existência de nulidades processuais, a aguardar, a seu bel-prazer, o momento que lhe for mais oportuno para reagir e decidir se vai reagir consoante o desenvolvimento do processo ou o sentido da decisão judicial que venha a ser tomada no futuro.

Assim, in casu, quando notificada por despacho datado de 08OUT2010 para se pronunciar sobre o requerimento da caução formulado pela recorrida A, a ora recorrente B não poderia deixar de ter conhecimento de que o tribunal não iria seguir a tramitação prescrita no artº 891º do CPC.

Não tendo reagido no prazo legal de 10 dias a contar da notificação, a invocada nulidade, mesmo que exista, ficou logo sanada.

Sanada que fica essa nulidade, já não é susceptível de geradora da nulidade do despacho recorrido.

Ora, mesmo que não entenda assim, ou seja, ainda que a parte interessada só tenha o ónus de arguir a nulidade quando intervier no processo, nos precisos termos previstos no artº 142º, por razões que se expõem infra, igualmente não procede a pretensão por parte da recorrente de ver julgado nulo o despacho ora recorrido.

In casu, o fundamento invocado pela ora recorrente para sustentar, em sede do presente recurso, a sua pretensão de ver julgado nulo o despacho que ordenou a prestação da caução a favor da recorrida, é a falta da notificação para contestar ou oferecer caução idónea nos termos do artº 891º do CPC, que por sua vez deu origem à alegada nulidade do despacho por força do disposto no artº 140º-a) do CPC, nos termos do qual é nulo tudo o que se processe depois de verificada a falta da notificação.

Aqui, há que distinguir bem as coisas.

Uma coisa é a nulidade, ou seja, a ilegalidade por inobservância do formalismo processual prescrito na lei, ou por prática de um acto processual proibido ou por omissão de um acto prescrito na lei. Ou seja, são os casos em que por trás da ilegalidade cometida foi praticado ou omitido um acto, mas o tribunal não chegou a pronunciar-se expressamente sobre a legalidade do acto ou da omissão.

Outra coisa é uma decisão judicial ou um despacho que contém já a pronúncia expressa sobre legalidade da prática ou da omissão de um acto, ou que autoriza ou ordena expressamente a prática ou a omissão de um acto.

Ora, como se sabe, a doutrina tradicional ensina que dos despachos recorre-se e contra as nulidades reclama-se – cf. Alberto dos Reis, in Comentário ao Código de Processo Civil II, nº 70.

E é do despacho que decidir a arguição da nulidade é que se recorre.

Assim, em vez de arguir perante o tribunal a quo a nulidade pela omissão da notificação para contestar ou oferecer caução idónea nos precisos termos do disposto no artº 891º do CPC, a ora recorrente B, quando interveio no processo, optou por recorrer do despacho que ordenou a prestação da caução directamente para este tribunal de recurso.

Todavia, como este despacho não contém uma pronúncia expressa sobre a legalidade dos termos e da forma da notificação para cumprimento do contraditório inserida na tramitação conducente à prolacção desse despacho, o meio idóneo de reagir contra ele é a arguição da nulidade “derivada”.

Não pode portanto a ora recorrente reagir contra o despacho ora recorrido directamente por via de recurso.

Pelo contrário, tem de provocar primeiro uma decisão no tribunal a quo onde foi cometida a pretensa ilegalidade processual para depois, no caso de o tribunal não lhe der razão, recorrer dessa decisão.

Não o tendo feito assim, não é de conhecer directamente da pretensa nulidade em sede do presente recurso.

Por outro lado, apesar de, face ao disposto no artº 150º/2 do CPC, se tratar de uma nulidade de conhecimento oficioso em qualquer estado do processo, a pretensa nulidade do despacho recorrido igualmente não pode ser apreciada por este tribunal de recurso, uma vez que já ficou sanada em consequência da sanação da nulidade a montante.

Na verdade, por força do preceituado no artº 142º do CPC, a pretensa nulidade a montante (i.é, a nulidade pela omissão da notificação para contestar ou oferecer a caução idónea) ficou já sanada uma vez que a ora recorrente interveio no processo, no preciso momento em que interpôs o presente recurso, sem que tenha arguido logo perante o tribunal a quo a falta da sua notificação para os efeitos previstos no artº 891º do CPC.

Tendo ficado sanada essa nulidade a montante, cessa também a nulidade do despacho que ordenou a prestação da caução, nulidade essa que como vimos supra, é derivada daquela nulidade a montante, entretanto já sanada.

Assim, sem mais delongas, é de concluir, mesmo na hipótese de se ter que seguir a tramitação dos artº 891º e s.s. do CPC, fica desde há muito tempo já sanada a alegada nulidade por falta da notificação para contestar ou oferecer caução idónea, sanação essa que implica a sanação da nulidade do processado posterior a que se refere o artº 140º do CPC, ora invocada pela recorrente para fundamentar o pedido do recurso.

Tudo visto, resta decidir.
III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam negar provimento ao recurso mantendo na íntegra a decisão de 1ª instância que ordenou a prestação da caução a favor da recorrida A.

Custas pela recorrente.

Notifique.

RAEM,15SET2011

Lai Kin Hong

Choi Mou Pan

João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
Proc. 365/2011-1