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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, sociedade comercial constituída e com sede em Hong Kong, intentou acção de revisão e confirmação de sentença do exterior contra B, pedindo a revisão e confirmação de sentença proferida em 9 de Maio de 2000, pelo Court of First Instance of The High Court de Hong Kong, que condenou o requerido no pagamento de HK$364.613.769,60 à requerente, acrescido de juros, bem como em outras prestações.
Citado editalmente, por se encontrar ausente em parte incerta, o requerido não contestou.
Citado o Ministério Público, em representação do ausente, contestou.
Por Acórdão de 26 de Maio de 2005 (doravante designado por 1.º Acórdão), o Tribunal de Segunda Instância (TSI), decidiu rever e confirmar a aludida sentença do exterior, com custas pelo requerido.
O Ministério Público requereu a reforma do Acórdão quanto a custas, pedindo a isenção do requerido quanto a custas, o que foi indeferido por Acórdão de 23 de Junho de 2005 do TSI (doravante designado por 2.º Acórdão).
Não se conformando com o 1.º Acórdão, o Ministério Público, tanto em nome próprio, como em representação do ausente, interpôs recurso do Acórdão.
O Exm.º Relator do TSI apenas admitiu o recurso na parte relativa às custas, entendendo que o 1.º Acórdão, na parte restante, designadamente, quanto ao mérito da causa, transitara em julgado, por não ter sido objecto de recurso tempestivo.
O Ministério Público deduziu reclamação para o Presidente do Tribunal de Última Instância, impugnando o aludido despacho do Relator do TSI.
O Presidente do Tribunal de Última Instância deu provimento à reclamação, determinando a admissão do recurso da totalidade do 1.º Acórdão do TSI.

O MINISTÉRIO PÚBLICO, tanto em nome próprio, como em representação do ausente B, deduziu os seguintes pedidos na sua alegação de recurso para o Tribunal de Última Instância (TUI):
Deve ser negada a revisão ou - se assim não se entender - ser reenviado o processo, nos termos do art. 650.°, n.º 1, do C. P. Civil.
Se vier a ser confirmada a decisão, entretanto, deve condenar-se a requerente nas custas ou - se assim não for entendido - isentar-se o requerido da obrigação de as pagar.
Para tal, formulou as seguintes conclusões:
A - A decisão de confirmação exige, além do mais, que a sentença a rever tenha transitado em julgado e tenha sido efectuada a citação do réu para a respectiva acção - art. 1200.°, n.º 1, als. b) e e), do C. P. Civil;
B - Tais pressupostos, consubstanciando condições essenciais da revisão, integram factos constitutivos do direito, devendo ser alegados e provados pelo requerente - art. 335.°, n.º 1, do C. Civil;
C - A requerente fez a sua alegação, mas não logrou fazer a respectiva prova; e
D - Nem sequer invocou dificuldade ou impossibilidade de fazer essa prova; ora,
E - A falta dessa invocação afasta qualquer dúvida sobre a repartição do respectivo ónus probatório; além disso,
F - Tratando-se de factos positivos, que resultam do simples exame do processo em que foi proferida a sentença a rever, não existe qualquer fundamento legal para presumir que os mesmos ocorreram; aliás,
G - Conceder a revisão, sem a verificação de tais requisitos, equivale a dar eficácia a uma decisão que pode não ter força executiva e em que pode não haver sido cumprido o princípio fundamental do contraditório; de qualquer modo,
H - A lei impõe ao tribunal a especial obrigação de indagar da existência dos mesmos - art. 1204.º do referido C. P. Civil; e
I - Se o tribunal verificar a sua falta, deve negar a revisão;
Sem prescindir.
J - A decisão, sem tal indagação, ficou sem o necessário apoio factual; e
K - Face à insuficiência de matéria do facto para a decisão, impõe-se a anulação do douto acórdão;
No caso de vir a ser confirmada a decisão.
L - O acórdão recorrido, que confirmou a decisão revidenda, condenou o requerido nas custas;
M - Essa decisão desrespeitou, no nosso entendimento, princípios fundamentais do direito tributário judiciário; com efeito,
N - O requerido não deu causa à acção, sendo certo que foi oficiosamente representado pelo Ministério Público; além disso,
O - A requerente foi a única parte a retirar proveito do processo;
P - Daí que sobre ela deva recair a obrigação de pagar as respectivas custas, atento o disposto no art. 376º do C. P. Civil;
Sem prescindir.
Q - O requerido não foi citado para o presente processo, tendo sido, como se frisou, representado pelo Ministério Público;
R - Estamos, assim, perante a situação a que alude o art. 49º do citado C. P. Civil;
S - O que nos conduz à afirmação de que o requerido se encontra, juridicamente, nos termos desse normativo, equiparado a incapaz;
T - Tal equiparação decorre, também, do art. 406.°, al. b), do mesmo Diploma, que se refere à inoperância da revelia, bem como do subsequente art. 410°, n.º 4, que se reporta à não sujeição ao ónus da impugnação especificada; ora,
U - Encontrando-se o requerido nessa situação de equiparação e mostrando-se representado pelo Ministério Público, deve beneficiar da isenção de custas prevista no art. 2°, n.º 1, al. f), do mencionado Regime das Custas nos Tribunais;
V - O douto acórdão recorrido violou as supracitadas normas legais.

A requerente A defendeu a improcedência do recurso, tendo suscitado como questão prévia a intempestividade do recurso quanto à parte atinente ao mérito da causa, a parte não relativa às custas, em termos semelhantes aos decididos pelo Exm.º Relator do TSI, sendo certo que, como é sabido, a decisão do Presidente do TUI - que mandou admitir na totalidade o recurso - pode ser revogada pela conferência do TUI, por ter sido no sentido da admissão do recurso (n.º 3 do art. 597.º do Código de Processo Civil).

II – O Direito
1. As questões a resolver

A primeira questão a decidir é a de saber se o recurso é tempestivo, na parte do mérito da causa, a que não se refere à condenação em custas, já que quanto a esta parte não se suscitam dúvidas quanto à sua tempestividade.
O segundo grupo de questões respeita ao mérito da causa, concretamente se os requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior, previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem – têm de ser provados pelo requerente ou, pelo contrário, se se devem presumir verificados, cabendo ao requerido a prova da sua não verificação.
A terceira questão é a de saber quem deve suportar as custas da acção.

2. Tempestividade do recurso.

Comecemos por apreciar a questão prévia: a de saber se o recurso é tempestivo, na parte respeitante ao mérito da causa.
Notificado do 1.º Acórdão, o Ministério Público requereu, tempestivamente, a reforma do Acórdão quanto a custas.
Notificado do 2.º Acórdão, que indeferiu o requerido, o Ministério Público interpôs recurso da totalidade do 1.º Acórdão, no prazo de 10 dias a contar da decisão que indeferiu a reforma quanto a custas.
Quando o Ministério Público interpôs recurso já tinha ultrapassado largamente o prazo de 10 dias para interposição do recurso, contados da notificação do 1.º Acórdão.
Porém, dispõe o n.º 1 do art. 592.º do Código de Processo Civil que:

“Artigo 592.º
(Interposição do recurso quando haja rectificação, aclaração ou reforma da sentença)
1. Se alguma das partes requerer a rectificação, aclaração ou reforma da sentença, nos termos dos artigos 570.º e 572.º, o prazo para o recurso só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento.
2. ...”.

A tese do Ex.mo Relator do TSI e da requerente A é a de que a norma acabada de citar só se aplica ao segmento da decisão recorrida que for objecto de rectificação, aclaração ou reforma, pelo que, na parte restante, o prazo para o recurso da sentença se conta nos termos gerais, da notificação desta sentença.
Assim, para esta tese, como o Ministério Público requereu a reforma quanto a custas, só quanto a esta parte se aplica o disposto no n.º 1 do art. 592.º do Código de Processo Civil.
Já para o Ministério Público o diferimento do prazo para o recurso, a que a norma mencionada procede, aplica-se à totalidade da decisão, entendimento que foi sufragado pelo Presidente deste TUI, em reclamação deduzida ao abrigo do n.º 1 do art. 595.º do Código de Processo Civil.

3. A tese da requerente A não é sustentável.
Quando se requer a rectificação de erros materiais da sentença ou o seu esclarecimento (aclaração), que têm de ser deduzidos no prazo de 10 dias a contar da notificação (art. 103.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), o prazo para pedir a reforma quanto a custas e multa – que também é de 10 dias a contar da notificação (art. 103.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) – só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento de rectificação de erros materiais da sentença ou o seu esclarecimento (aclaração) (n.º 3 do art. 573.º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, nos termos do n.º 1 do art. 592.º do Código de Processo Civil, acima transcrito, se alguma das partes requerer a reforma da sentença quanto a custas ou multa, o prazo para o recurso da sentença só começa a correr depois de notificada a decisão proferida sobre o requerimento.
O que resulta da letra da lei é que se dá o diferimento do prazo para pedir a reforma quanto a custas e multa quando se pede a rectificação ou esclarecimento da sentença (ainda que estes não se refiram à parte atinente à reforma) e que se dá o diferimento do prazo para interpor recurso da totalidade da decisão quando é pedida a referida reforma.
Se a tese da requerente A fosse exacta poderia haver 3 prazos para interposição de recurso de uma mesma sentença, como se demonstra no exemplo utilizado no despacho do Presidente deste TUI. Bastava que a sentença, ao lado da decisão principal, condenasse uma parte em multa, como litigante de má fé e houvesse, como tem de haver, decisão sobre custas. Então, i) se fosse requerida a aclaração da parte relativa à decisão sobre custas e, ao mesmo tempo, ii) se pedisse a reforma quanto à multa e, subsequentemente à decisão de aclaração, iii) se pedisse a reforma quanto à decisão de custas, teríamos 3 prazos para o recurso. Um primeiro quanto à decisão principal começaria a correr após notificação da decisão. Um segundo prazo começaria a correr após a notificação da decisão que indeferisse a reforma quanto à multa. Um terceiro prazo para o recurso correria após a notificação da decisão que indeferisse a reforma quanto às custas, que não coincida com o anterior em virtude de ter sido precedido de decisão sobre aclaração. Teríamos, assim três alegações por parte do recorrente e três alegações por parte do recorrido, em recurso de uma só sentença. Isto se houvesse apenas duas partes no processo.
Não parece que esta possibilidade fosse a mais conveniente do ponto de vista da economia processual. Certamente por reconhecer a confusão que poderia derivar da multiplicidade de peças processuais é que, quando o recorrente se aprestava para apresentar, como lhe competia, a 2.ª alegação, de acordo com o entendimento do Ex.mo Relator do TSI, foi convidado, por este Ex.mo Relator, a juntar as duas alegações numa só peça.
Ora, não havendo nenhuma razão – antes pelo contrário, como vimos – para afastar a interpretação que resulta do elemento literal, a mesma tem de se impor.
Por outro lado, é pacífico que, quanto à decisão sobre custas, tanto se pode pedir a sua reforma ao tribunal que proferiu decisão, como interpor recurso dessa parte da decisão1, sendo que o recurso não é prejudicado por ter havido ou não ter havido prévio pedido de reforma2. Por identidade de razão, o facto de também se recorrer de outra parte da decisão, não altera a conclusão alcançada.
Conclui-se, portanto, pela tempestividade da totalidade do recurso.

4. O ónus da prova dos requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil

Examinemos, agora, se os requisitos necessários para a revisão e confirmação de sentença do exterior, previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem – têm de ser provados pelo requerente ou, pelo contrário, se se devem presumir verificados, cabendo ao requerido a prova da sua não verificação.
Foi proposta no TSI uma acção com processo especial de confirmação e revisão de sentença do exterior, mais concretamente de uma sentença proferida por um tribunal da Região Administrativa Especial de Hong Kong que condenou o requerido B a pagar uma quantia em dinheiro e ainda outras prestações.
O requerido foi citado editalmente, por estar ausente em parte incerta e não contestou. Fê-lo o Ministério Público, em representação do ausente, suscitando a questão de a requerente não ter feito prova dos requisitos previstos nas alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil – que a decisão a rever tenha transitado em julgado segundo a lei local em que foi proferida e que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local de origem.
Mas o TSI, por meio do 1.º Acórdão – seguindo, aliás, jurisprudência anterior uniforme na matéria – considerou que o tribunal de revisão só deve negar oficiosamente o exequatur quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil, pelo que não se verificando estes casos apontados, se presume que esses requisitos concorrem, estando, assim, o requerente dispensado de fazer a prova positiva e directa dos mesmos. E, ponderando a falta de demonstração concreta em sentido contrário pelo requerido, representado pelo Ministério Público, considerou preenchidos os dois requisitos que estavam em causa e procedeu à revisão e confirmação da sentença.
Deve acrescentar-se que esta também era a jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça, expressa, por exemplo, no Acórdão de 25 de Fevereiro de 1998, no Processo n.º 7863.
A tese do recorrente é diversa: entende que os requisitos para revisão e confirmação de sentenças constituem factos constitutivos do direito da requerente, nos termos do art. 335.º, n.º 1 do Código Civil, cabendo-lhe a ela a prova dos mesmos.

5. Sistemas de reconhecimento de sentenças do exterior ou estrangeiras

Ensina FERRER CORREIA4 que reconhecer uma sentença estrangeira é atribuir-lhe no Estado do foro (Estado ad quem) os efeitos que lhe competem segundo a lei do Estado onde foi proferida (Estado de origem ou Estado a quo). Esses efeitos são os próprios da sentença considerada como tal – os que derivam da sua natureza de acto de jurisdição – a autoridade de caso julgado e o efeito executivo.
É também sabido que, numa perspectiva de direito comparado, existem vários tipos de soluções possíveis no que respeita ao reconhecimento de sentenças estrangeiras5:
i) Sistemas em cujo direito não se reconhecem efeitos às decisões estrangeiras, tendo sempre de intentar de novo uma acção num tribunal do país ad quem. É o caso dos países nórdicos da Europa.
ii) Noutros países, o reconhecimento só opera mediante reciprocidade, como em Espanha.
Na Inglaterra após 1933, foi instituído um sistema de registo (registration) que permite equiparar uma sentença estrangeira a uma decisão de um tribunal inglês, como base na reciprocidade reconhecida by order in Council.
iii) Em algumas ordens jurídicas, as sentenças estrangeiras são reconhecidas sem necessidade de qualquer formalidade, é o chamado reconhecimento automático. É o que acontece em França com as sentenças estrangeiras em matéria de estado e capacidade das pessoas com certos actos de jurisdição voluntária.
iv) Há sistemas em que o reconhecimento das sentenças do exterior ou estrangeiras se dá por via do exequatur, controlo ou revisão.
a) Este controlo pode ser de mérito, no caso de haver um controlo da aplicação do direito, ou, em certos casos, podendo ocorrer uma reapreciação da matéria de facto;
b) O controlo pode ser meramente formal, como acontece em Macau e em Portugal (em ambos os casos na generalidade das situações), na Suiça e até há pouco tempo, em Itália.

6. O sistema de Macau de reconhecimento de sentenças do exterior

O nosso sistema é, em regra, de revisão meramente formal porque as condições da confirmação da sentença do exterior exigidas e enumeradas nas várias alíneas do n.º 1 do art. 1200.º do Código de Processo Civil - que no Código português corresponde ao art. 1096.º - “não respeitam senão à regularidade da decisão e do processo de que ela constitui o último termo”6.
Já existe, no entanto, revisão de mérito, de aplicação do direito, numa situação específica: quando a decisão tiver sido proferida contra residente de Macau, este pode impugnar o pedido de reconhecimento de sentença do exterior com fundamento em que o resultado da acção lhe teria sido mais favorável se tivesse sido aplicado o direito material de Macau, quando por este devesse ser resolvida a questão, segundo as normas de conflitos de Macau (n.º 2 do art. 1202.º do Código de Processo Civil).
No caso dos autos estamos perante a revisão formal, visto que não foi deduzida impugnação pelo requerido com fundamento nesta última norma, que protege um interesse meramente disponível e renunciável.

7. A prova dos requisitos do art. 1200.º do Código de Processo Civil

Vejamos, então, o que dispõe o art. 1200.º do Código de Processo Civil:

“Artigo 1200.º
(Requisitos necessários para a confirmação)
   1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
   a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
   b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
   c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
   d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
   e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
   f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
   2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser”.
   
Se fosse apenas este o preceito do Código de Processo Civil a ter em conta para resolver a questão em apreço, teria o recorrente, possivelmente, razão na sua tese, já que, de acordo com as regras gerais do ónus da prova, a prova dos factos constitutivos do direito alegado cabe àquele que invocar o direito (art. 335.º, n.º 1 do Código Civil).
Mas há que considerar ainda outro preceito, do Código de Processo Civil, que já vem, aliás, do Código de 1939, e que é o art. 1204.º:


“Artigo 1204.°
(Actividade oficiosa do tribunal)
   O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200.°, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
   
O Código de 1961 continha um preceito semelhante a este (o art. 1101.º) e o mesmo acontecia no Código de 1939 (o art. 1105.º), com uma diferença respeitante à revisão de mérito, a que há pouco se fez referência, mas irrelevante na matéria que nos ocupa.
Pois bem, o art. 1200.º contem seis requisitos necessários para a confirmação da decisão proferida por tribunal do exterior. Mas o art. 1204.º faz uma nítida distinção entre os requisitos das alíneas a) e f) do n.º 1 do art. 1200.º (respectivamente, que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão e que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública) – impondo a sua verificação oficiosa pelo tribunal – e os restantes requisitos do art. 1200.º - entre os quais os dois que estão em causa, a propósito dos quais o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum desses requisitos.
Foi por causa desta distinção que a doutrina começou a defender que o requerente está dispensado da prova directa destes quatro requisitos, que se devem presumir verificados. Assim é que ALBERTO DOS REIS7 defendeu o seguinte na vigência do Código de 1939:
“Desde que o tribunal só deve negar oficiosamente a confirmação quando o exame do processo ou o conhecimento derivado do exercício da função o convencer de que falta algum dos requisitos exigidos nos n.os 2.º, 3.º, 4.º e 5.º do art. 1102.º, segue-se que, não se verificando os casos apontados, presume-se que esses requisitos concorrem; entendida assim a disposição, é claro que o requerente está dispensado de fazer a prova positiva e directa dos requisitos indicados”.
Também FERRER CORREIA8, na vigência do Código de 1961, se pronunciou em idêntico sentido:
“36. 2.º - Trânsito em julgado. – O segundo requisito de confirmação é o que consta do art. 1096.º, al. b): “Para que a sentença seja confirmada é necessário que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida”.
Para que a sentença possa ser confirmada é necessário, portanto, que seja uma sentença definitiva, uma sentença da qual não caiba recurso ordinário, segundo a lei do tribunal de origem.
Mas será necessário que a parte interessada faça a prova do trânsito em julgado?
O tribunal só negará oficiosamente a confirmação se pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apurar que falta o requisito da alínea b), ou seja, se apurar que a sentença ainda não transitou em julgado.
...
O simples facto de não constar do processo a prova de que a sentença transitou em julgado não é, pois, suficiente para o tribunal recusar a confirmação. Em tal hipótese, há-de o tribunal presumir que o trânsito em julgado ocorreu”.
O mesmo autor, nas recentes lições do ano 20009, mantém o mesmo entendimento:
“O simples facto de não constar do processo a prova do trânsito em julgado não constitui impedimento à confirmação; tal impedimento existirá, contudo, se o tribunal, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, chegar à conclusão de que no caso vertente esse requisito falta. É esta a solução mais consentânea com o preceito do art. 1101.º”.
Também RODRIGUES BASTOS 10 se pronuncia no mesmo sentido.
E da mesma opinião é a restante doutrina internacional privatista.
Assim, MARQUES DOS SANTOS 11abonando o entendimento de Alberto dos Reis e Ferrer Correia, já mencionados, escreve:
“Tal doutrina parece-nos ser aceitável, na medida em que se entenda que, só por si, a não existência, no processo, de prova de que a sentença estrangeira transitou em julgado não é bastante para ser recusada a confirmação, podendo, porém, esta vir a ser negada sem que a parte contrária tenha de provar que não houve trânsito em julgado, desde que o tribunal português de revisão, por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta o requisito da alínea b) do artigo 1096.º do Código”.
LUÍS DE LIMA PINHEIRO12 emitiu idêntica opinião.
Em contrário só se conhece a doutrina de MACHADO VILELA13, expressa na vigência do Código de Processo Civil de 1876, para quem deve ser o requerente a provar todos os requisitos de confirmação de sentença estrangeira. Mas neste Código (arts. 1087.º a 1091.º) não havia preceito semelhante ao actual art. 1204.º, pelo que se aceita que, nesse caso, valessem as regras gerais do ónus da prova. Não é o caso do direito vigente, como já se disse.
Em conclusão, é de sufragar o entendimento tomado pelo Acórdão recorrido, na sequência da jurisprudência do Tribunal Superior de Justiça e abonado pela doutrina, de que se devem considerar verificados os requisitos das alíneas b) e e) do n.º 1 do art. 1200.º, na falta de prova em contrário, por parte do requerido, sem prejuízo de o tribunal dever negar a confirmação quando pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções apure que falta algum deles.

8. Custas

A última questão é a de saber quem deve suportar as custas da acção.
Em matéria de custas, a regra geral é a de que suporta as custas quem a elas deu causa, sendo que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for (n. os 1 e 2 do art. 376.º do Código de Processo Civil).
Só quando não há vencimento da acção é que paga as custas quem do processo tirou proveito (n.º 1 do mesmo artigo). Estão neste caso processos como o de divórcio por mútuo consentimento, inventário, acções de divisão de águas, divisão de coisa comum, demarcação14.
No processo de revisão e confirmação de sentença do exterior há que considerar o vencimento, tanto nesta acção, como na acção em que foi produzida a sentença a rever.
Num processo em que está em causa uma dívida ou um acto ilícito que é causa de indemnização, ainda que o devedor não conteste o pedido de reconhecimento da sentença, tem de entender-se que ele ficou vencido na acção que se pretende executar e, portanto, cabe-lhe suportar as custas no processo de revisão e confirmação de sentença, já que foi o seu comportamento ilícito, acompanhado da recusa de cumprimento da sentença que deu causa, no primeiro caso, à necessidade de interposição da acção e, no segundo, à respectiva execução e, portanto, à necessidade da revisão da sentença. É este o entendimento de ALBERTO DOS REIS15, que se subscreve, e que se aplica ao caso dos autos.
Já num processo em que não há vencido, como o divórcio por mútuo consentimento, e em que o requerido não contestasse o pedido de revisão de sentença, deveria ser o requerente a pagar as custas deste, por ser ele quem tira proveito do processo.

9. Custas em que o vencido é ausente em parte incerta representado pelo Ministério Público

O art. 2.º, n.º 1, alínea f), do Regime das Custas nos Tribunais isenta de custas nos processos judiciais “(o)s incapazes ou pessoas equiparadas, representadas pelo Ministério Público”.
O Ministério Público entende que esta isenção subjectiva de custas se aplica ao ausente em parte incerta quando representado pelo Ministério Público.
E tem razão.
Na verdade, em termos processuais, o ausente e o incerto, quando representados pelo Ministério Público, são equiparados ao incapaz, também quando representado pelo Ministério Público.
De facto, são duas as situações em que se dá tal equiparação:
- Na situação de revelia absoluta, a falta de contestação do incapaz, do ausente e do incerto não produz o reconhecimento dos factos articulados pelo autor [arts. 405.º, n.º e 406.º, alínea b) do Código de Processo Civil];
- Não se aplica aos incapazes, ausentes e incertos, quando representados pelo Ministério Público ou por advogado oficioso o ónus de impugnação dos factso articulados pelo autor (art. 410.º, n. os 1 e 4 do Código de Processo Civil).
A razão de ser em todos estes casos é a mesma: considera-se que a representação institucional do Ministério Público pode não assegurar uma defesa eficaz daquelas pessoas, por falta de conhecimento directo das situações, e portanto, a lei procura protegê-las, retirando consequências desfavoráveis à inacção processual e isentando-as de custas.
É este o entendimento de SALVADOR DA COSTA16a propósito de preceito idêntico da lei portuguesa, que foi entretanto, alterada.
De resto, na vigência do antigo Código das Custas Judiciais português nunca suscitou dúvidas que a referência a pessoas equiparadas aos incapazes abrangia os ausentes em parte incerta17. O problema é que neste Código a isenção destes (enquanto réus, como é evidente) apenas abrangia os processos de inventários, as interdições e as inabilitações, já que a isenção subjectiva geral dos equiparados a incapazes, representados pelo Ministério Público, era apenas para os autores, o que não abrangia os ausentes em parte incerta.
Mas, então, a questão não é de interpretação da lei, mas apenas de má lei, sendo esta uma matéria que escapa aos tribunais.
Procede, portanto, o recurso nesta parte.

III - Decisão
Face ao expendido:
A) Julgam improcedente a questão prévia da intempestividade parcial do recurso;
B) Negam provimento ao recurso no que respeita ao mérito da causa, confirmando o reconhecimento da sentença do Tribunal de Hong Kong;
C) Dão provimento ao recurso na parte relativa a custas, isentando a acção de custas;
D) No que se refere ao presente recurso, a requerente, ora recorrida, suportará custas por ter ficado vencida quanto à intempestividade parcial do recurso e quanto à questão de custas, já que defendeu em alegações que o requerido não deveria ser isento. Atento o seu parcial decaimento pagará 1/4 do que fosse devido.
Macau, 15 de Março de 2006

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

     1 ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Coimbra, Coimbra Editora, Vol. V, p. 155 e J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO e RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra, Coimbra Editora, 2001, p. 676.
2 J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Volume III, 3.ª edição, Lisboa, 2001, p. 197.
3 Tribunal Superior de Justiça de Macau, Jurisprudência, 1998, I Tomo, p. 118.
4 FERRER CORREIA, Lições de Direito Internacional Privado, I, Coimbra, Almedina, 2000, p. 454 e Lições de Direito Internacional Privado, Aditamentos, Coimbra, lições policopiadas, 1973, p. 4.
5 Nesta matéria seguimos o texto de ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Revisão e confirmação de sentenças estrangeiras no novo Código de Processo Civil de 1997 (alterações ao regime anterior), em Estudos de Direito Internacional Privado e de Direito Processual Civil Internacional, Coimbra, Almedina, 1998, p. 310 e seg. e em Aspectos do Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, p. 107 e seg.
6 FERRER CORREIA, Lições..., p. 466.
7 ALBERTO DOS REIS, Processos Especiais, Vol. II, Coimbra, Coimbra Editora, 1982, reimpressão, p. 163.
8 FERRER CORREIA, Lições... Aditamentos, p. 105 e 106.
9 FERRER CORREIA, Lições..., p. 477.
10 J. RODRIGUES BASTOS, Notas..., Volume IV, 2.ª ed., 2005, p. 256.
11 ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, Revisão..., em Estudos..., p. 324 e em Aspectos ..., p. 119.
12 LUÍS DE LIMA PINHEIRO, Direito Internacional Privado, Volume III, Competência Internacional e Reconhecimento de Decisões Estrangeiras, Coimbra, Almedina, 2002, p. 364 e 365.
13 MACHADO VILELA, Tratado Elementar (Teórico e Prático) de Direito Internacional Privado, Livro I, Coimbra, Coimbra editora, 1921, p. 666 e 667.
14 ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 3.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1981, reimpressão, p. 233 a 235 e J. RODRIGUES BASTOS, Notas..., Volume II, 3.ª ed., 2000, p. 209.
15 ALBERTO DOS REIS, Código..., Vol. II, p. 229.
16 SALVADOR DA COSTA, Código das Custas Judiciais, Coimbra, Almedina, 4.ª ed., 2001, p. 81.
17 MANUEL BARROS MOURO, Código das Custas Judiciais Actualizado e Anotado, 7.ª ed., Coimbra, Coimbra Editora, 1992, p. 88.
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Processo n.º 2/2006