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Processo nº 559/2010

I

Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM

A, Enfermeira-chefe dos Serviços de Saúde de Macau, devidamente identificada nos autos, vem recorrer do despacho do Senhor Chefe do Executivo da RAEM, que lhe recusou a pretendida actualização salarial com efeitos retroactivos no período compreendido entre 01JUL2007 e 17AGO2009, concluindo e pedindo:

TERMOS EM QUE FORMULA AS SEGUINTES CONCLUSÕES:
I. As valorizações indiciárias dos enfermeiros, decorrentes das transições de quadro e de quaisquer alterações contratuais, nos termos do regime da carreira de enfermagem aprovado pela Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto, retroagem a 1 de Julho de 2007, independentemente da natureza do vínculo contratual do trabalhador;
II. Visa a paridade-igualdade salarial entre o trabalhador com contrato individual de trabalho e os demais trabalhadores da Administração Pública, a cláusula incluída no contrato de trabalho individual celebrado entre aquele e a Administração Pública, nos termos da qual se prescreve que «a remuneração mensal será actualizada na mesma proporção que o forem os vencimentos da Administração Pública de Macau»;
III. A igualdade perante a lei prevista no artigo 25.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau implica que não possa haver qualquer discriminação salarial em razão do vínculo laboral dos trabalhadores, apenas podendo ser atendidas situações, nesta matéria, em função da sua experiência, antiguidade ou mérito;
IV. Não obstante a inexistência de norma no ETAPM que consagre expressamente o princípio da paridade-igualdade salarial entre os funcionários públicos, tal não significa que esse princípio não esteja consagrado;
V. Não sendo permitido que funcionários com a mesma categoria, escalão e índice remuneratório, aufiram diferentes vencimentos, está indirectamente consignado naquele Estatuto o princípio da paridade-igualdade salarial entre os diversos trabalhadores da Administração Pública, independentemente da natureza do seu vínculo;
VI. A atribuição de efeitos retroactivos diferenciados aos vencimentos dos funcionários públicos, em função da natureza do seu vínculo, é legalmente inadmissível, por tal implicar uma derrogação do princípio de que ao desempenho de uma mesma determinada função ou cargo corresponde a remuneração prevista na tabela indiciária;
VII. O Estado-Legislador não pode impôr às entidades patronais mais deveres do que impõe a si próprio enquanto Estado-Administração (empregador), ou exigir-lhes um comportamento mais oneroso;
VIII. O princípio "trabalho igual-salário igual" previsto no n.º 2 do artigo 57.° da Lei das Relações de Trabalho aplica-se mesmo nas relações jurídicas de emprego público;
IX. Viola os artigos 2.° e 3.° da Convenção n.º 111 da Organização Internacional do Trabalho sobre a Discriminação em Matéria de Emprego e Profissão, o despacho que faz retroagir a valorização indiciária de um trabalhador com uma determinada categoria e escalão a uma data diferente daquela aplicável a outro trabalhador com a mesma categoria e escalão;
X. Viola o artigo 7.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o despacho que faz retroagir a valorização indiciária de um trabalhador com uma determinada categoria e escalão a uma data diferente daquela aplicável a outro trabalhador com a mesma categoria e escalão;
XI. Padece do vício de falta de fundamentação, por violação do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 113.°; na alínea a) do n.º 1 do artigo 114.°; e, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 115.° do CPA de Macau, o despacho que manifesta concordância com a proposta para a qual remete, se essa proposta não contém os motivos, causas ou pressupostos da decisão que não fez retroagir a actualização salarial do trabalhador com contrato individual de trabalho à data a que alude a norma transitória do respectivo regime laboral para os demais trabalhadores do quadro, contratados além do quadro ou assalariados;
XII. A fundamentação por remissão obriga a que a informação, parecer ou proposta para que se remete contenha as razões de facto e de direito, ainda que de forma sucinta, mas que as contenha, de modo a que se perceba por que se decidiu naquele sentido;
XIII. A omissão, obscuridade e insuficiência da fundamentação do acto valem como falta de fundamentação; e a falta de fundamentação inquina o acto de ilegalidade, o que determina a sua anulabilidade.
XIV. Enferma do vício de violação de lei, por preterição do disposto no artigo 25.° da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau; nos artigos 174.° e 175.° do ETAPM (aplicáveis ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 1.° do Decreto-Lei n.º 60/92/M, de 24 de Agosto, e da cláusula 18.a do contrato individual de trabalho); no n.º 2 do artigo 57.º da Lei n.º 7/2008, de 18 de Agosto; no artigo 4.° do contrato individual de trabalho celebrado entre a Recorrente e os SSM; nos artigos 2.° e 3.° da Convenção n.º 111 da OIT; e, no artigo 7.° do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, o despacho do Chefe do Executivo que faz retroagir a valorização indiciária de trabalhador com contrato individual de trabalho a data diferente daquela a que alude o n.º 2 do artigo 40.° da Lei n.º 18/2009, de 17 de Agosto.
TERMOS EM QUE, contando com o muito douto suprimento desse Tribunal, deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se, pelas apontadas ilegalidades, resultantes dos indicados vícios, o acto recorrido, com todas as consequências legais.
Mais requer ainda a V. Exa. se digne ordenar a citação de Sua Excelência, o Chefe do Executivo da RAEM, com domicílio em Macau, na Avenida da Praia Grande - Sede do Governo da RAEM, para contestar, querendo, e enviar o respectivo processo administrativo existente junto dos Serviços de Saúde de Macau, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 55.º do CPAC.
Factos que a Recorrente considera provados: Todos, conforme prova documental constante do respectivo processo administrativo.
Valor: MOP$244.573,76 (duzentas e quarenta e quatro mil quinhentas e setenta e três Patacas e setenta e seis avos).
PROTESTA JUNTAR:
- 4 (quatro) Documentos;
- Procuração;
- duplicados legais.

Citado, veio o Senhor Chefe do Executivo da RAEM a contestar pugnando pela improcedência do recurso.

O Dignº Magistrado do Ministério Público opinou no seu douto parecer pugnando pelo não provimento do presente recurso.

Fica assente a seguinte matéria de facto com relevância à decisão do presente recurso:

A Recorrente iniciou funções nos Serviços de Saúde de Macau em 1 de Setembro de 1999, contratada além do quadro;
A partir de 1 de Setembro de 2000 foi contratada em regime de contrato individual de trabalho como enfermeira-chefe, 3.° escalão, estando afecta à Unidade de Cuidados Intensivos do Centro Hospitalar do Conde de São Januário, dos Serviços de Saúde de Macau;
Tendo o respectivo contrato sido objecto de renovação anual, nomeadamente, nos anos de 2006, 2007 e 2008;
Ou seja, entre 1 de Julho de 2007 e 17 de Agosto de 2009, a Recorrente encontrava-se a exercer funções de enfermeira-chefe, 3.° escalão, junto dos Serviços de Saúde de Macau;
Em 4 de Agosto de 2009 a Assembleia Legislativa da RAEM aprovou o regime da carreira de enfermagem, publicado no Boletim Oficial em 17 de Agosto de 2009, como Lei n.º 18/2009;
Nos termos do qual «as valorizações indiciárias decorrentes das transições (…) e das alterações (…) retroagem a 1 de Julho de 2007, e incidem, apenas, sobre o vencimento único (… )» ;
Em 30 de Outubro de 2009, a Recorrente propôs a revisão do seu contrato individual de trabalho, nomeadamente das cláusulas relativas à categoria, escalão e vencimento, com efeitos retroactivos;
A Recorrente foi notificada, em 26 de Maio de 2010, através da nota interna n.º 1298/NI/DP/2010 (da Divisão de Pessoal dos Serviços de Saúde de Macau), dos despachos de Sua Excelência, o Chefe do Executivo da RAEM, de 22 de Fevereiro e 27 de Abril de 2010, exarados nas propostas n.º 185/PP/DP/2010 e n.º 313/PP/DP/2010, respectivamente;
Nos termos dos quais foi, em súmula, autorizada: (i.) a actualização do escalão e índice salarial da Recorrente, com efeitos retroactivos «à data da entrada em vigor desta Lei. ou seja. 18 de Agosto de 2009 com referência ao disposto no n.º 3 do artigo 36.º da Lei n.º 18/2009» (cfr. despacho de 22 de Fevereiro de 2010), e (ii.) o averbamento, por aditamento, de cláusulas contratuais relativas ao subsídio de trabalho por turnos e ao regime de disponibilidade permanente, substituição e formação, com efeitos retroactivos a 18 de Agosto de 2009 (cfr. despacho de 27 de Abril de 2010).

Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.

Sobre as idênticas questões ora concretamente colocadas pela recorrente na presente lide recursória, este Tribunal de Segunda Instância já chegou a pronunciar-se, entre outros, no Acórdão tirado em 10NOV2011 no processo nº 525º/2010, que o Relator dos presentes autos subscreveu enquanto juiz-adjunto.

Diz ai que:

III- O Direito

A questão sob litígio nos presentes autos pode facilmente equacionar-se da seguinte maneira:

O recorrente, tendo sido contratado para desempenhar as funções de enfermeiro nos Serviços de Saúde de Macau, tem ou não o direito de ver satisfeita a sua pretensão em que a actualização salarial que decorre da Lei 18/2009, de 17/08/2009 (1ª parte) se lhe aplique e que, por essa via, seja colocado no 4º escalão de enfermeiro-graduado (2ª parte) com efeitos reportados a 1 de Julho de 2007, e não a 18 de Agosto de 2009 (como foi administrativamente decidido e, posteriormente, clausulado no instrumento contratual, conforme pontos 11 e 12 da matéria de facto assente)?

O recorrente defende que sim; a entidade recorrida não pensa o mesmo.

Vejamos.
O dissídio em apreço parte da publicação da Lei nº 18/2009, de 18 de Agosto (Estabelece o regime jurídico da carreira de enfermagem). Trata-se de um diploma, cujo âmbito pessoal de aplicação é o dos enfermeiros dos Serviços de Saúde da Região Administrativa Especial de Macau, ainda que, com as devidas adaptações, se aplique também aos enfermeiros de outros serviços e organismos públicos da RAEM (cfr. art. 2º). Não está aí o problema.
A dificuldade reside nas regras de transição previstas no diploma para os enfermeiros do quadro (cfr. art. 31º a 33º) e na eventual extensão de efeitos aos enfermeiros que do quadro não façam parte (arts. 34º e 36º).
Para se ser preciso, é preciso recordar que o caso em mãos começou por ser um problema de ordem subjectiva: Teria o diploma aplicabilidade à situação dos enfermeiros que apenas eram titulares de um contrato individual de trabalho? A Administração Pública, depois de alguma hesitação, resolveu a questão a contento dos interesses do recorrente e foi entendido que o seu reescalonamento se faria segundo as regras ali previstas. Ou seja, o recorrente viu alteradas as cláusulas contratuais relativas à categoria, escalão e vencimento.
Insatisfeito, porém, considera que o início dos efeitos se deveria reportar a 1 de Julho de 2007 e não somente a 18 de Agosto de 2009, data da entrada em vigor da lei. Este sim, é o problema a que urge dar solução.
Para tanto, alguns preceitos importa, desde já, transcrever.
O art. 34º dispõe o seguinte:
Artigo 34.º
Efeitos da transição
1. As transições a que se referem os n.os 1 a 3 do artigo 31.º produzem efeitos a partir da data de entrada em vigor da presente lei.
2. A transição a que se refere o n.º 4 do artigo 31.º produz efeitos a partir da data da publicação no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau da autorização do pedido pelo director dos Serviços de Saúde.
3. Para efeitos de progressão e acesso, após a transição, é contado como prestado na carreira, categoria e escalão do quadro o tempo de serviço prestado pelos enfermeiros, sendo igualmente considerada a sua avaliação de desempenho.

E o art. 36º preceitua:
Artigo 36.º
Contratos individuais de trabalho em vigor
1. Os contratos individuais de trabalho celebrados antes da data da entrada em vigor da presente lei e as suas renovações continuam sujeitos à disciplina emergente desses contratos.
2. As partes, por sua iniciativa e mútuo acordo, podem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela presente lei.
3. A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data.
4. Os contratos referidos no n.º 2 são celebrados tendo por referência o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da presente lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos.
5. Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos

E o art. 40º reza assim:

Artigo 40.º
Entrada em vigor
1. A presente lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.
2. As valorizações indiciárias decorrentes das transições a que se refere o n.º 1 do artigo 34.º e das alterações a que se refere o n.º 1 do artigo 35.º retroagem a 1 de Julho de 2007, e incidem, apenas, sobre o vencimento único, tendo os trabalhadores direito a receber um montante pecuniário equivalente à diferença entre os índices correspondentes à categoria e escalão resultantes da transição e os índices correspondentes à categoria e escalão detidos antes da transição.

O recorrente, defende que a sua situação se enquadra no nº2 do art. 40º, nº2, portanto.

Mas acontece que a retroactividade a 1 de Julho de 2007 da vantagem decorrente da lei, tal como literalmente se colhe do nº2 do art. 40º, apenas contempla:

a) As transições referidas no art. 34º (ou seja, por remissão expressa, as transições dos enfermeiros do quadro contidas nos nºs 1 a 3 do art. 31º);
b) As alterações a que se refere o nº1, do art. 35º (ou seja, as alterações que se consideram extensivas aos contratados além do quadro e aos assalariados).

Compreende-se a intenção do legislador, se relacionarmos a força prescritiva das normas citadas com a que emana do art. 36º do mesmo articulado legal! É que os contratos individuais de trabalho celebrados e renovados antes da data da entrada em vigor da lei continuam sujeitos à disciplina deles emergente (nº1), a não ser que as partes, por sua iniciativa e mútuo consenso, optem por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido já pela lei (nº2).

Daqui resulta que o art. 36º apresenta uma solução pensada para os enfermeiros com contrato individual de trabalho, definindo-lhes uma regra e uma excepção.

A regra vem no número 1: os contratos celebrados antes da entrada em vigor da lei e as renovações também anteriores a essa data mantêm-se incólumes e inalteráveis até ao seu termo. Isto é, o sinalagma que deles emerge não pode ser violado por nenhuma das partes a seu bel talante e, por isso, as cláusulas outorgadas obrigam e sujeitam os contratantes.

A excepção descobre-se no nº2: as partes contratantes podem afastar a regra, se ambas (o que implica consenso) optarem por um novo contrato individual de trabalho regido por todas as prescrições da lei.
Mas esta excepção abre logo uma dificuldade, que é esta: ao permitir que as partes possam celebrar um novo contrato “regido pela presente lei” será que o legislador quis que da lei se aplicassem somente as normas de regência do direito substantivo ali estabelecidas?

1ª Proposta de solução: Sim. O legislador realmente pensou dessa maneira. Tanto assim é, que no nº 4 estabeleceu que os novos contratos que as partes optassem por celebrar deveriam ter por “referência” o desenvolvimento da carreira constante do anexo I ou no anexo III da lei, tendo em conta, respectivamente, as habilitações académicas ou profissionais legalmente exigidas, mantendo os trabalhadores a categoria e escalão anteriormente detidos. Quer dizer, a lei não foi totalmente “liberal” ao ponto de deixar ao critério dos contratantes a dimensão da posição substantiva dos enfermeiros. Dito por outras palavras, o “regime” da lei só aproveita aos enfermeiros em igual situação à do recorrente nos estritos limites consentidos na lei.

2ª Proposta de solução: Sim. O legislador não deixou que fosse possível a utilização indiferenciada da norma que prevê a entrada em vigor reportada a 1 de Julho de 1007 (art. 40º, nº1), na medida em que essa retroactividade apenas respeita à alteração substantiva e valorativa do direito no que respeita às “transições” dos enfermeiros do quadro (arts. 34º, nº1 e 31º, nºs 1 a 3) e às “alterações” extensivas aos contratados além do quadro e aos assalariados (art. 35º, nº1). Ou seja, deixou de fora da previsão normativa, precisamente os enfermeiros com contrato individual de trabalho.

Por outro lado, o artigo 36º é muito claro sobre este aspecto pontual do eventual aproveitamento optativo das partes do “regime” da lei. Na verdade, o nº3 do artigo textua que:

“A opção referida no número anterior deve ser exercida no prazo de 180 dias a contar da data da entrada em vigor da presente lei, retroagindo os efeitos do novo contrato a essa data”.

Ou seja, o legislador foi claro em definir o marco temporal da extensão, não permitindo que os efeitos da opção retroagissem para além de 18 de Agosto de 2009, data da entrada em vigor do diploma.

E o próprio nº5, do mesmo artigo, com vista ao desenvolvimento futuro de efeitos asseverou que “Nos casos previstos no n.º 2 o tempo de serviço, para efeitos de progressão e acesso, é contado a partir da data de produção de efeitos dos novos contratos”, o que se nos afigura bem revelador da determinação do legislador em não dar às partes do novo contrato liberdade na densificação clausulativa, mas confinar os limites da outorga às balizas temporais que ele mesmo definiu.

O que, por outras palavras, significa que a permissão prevista no nº2 não abrange todo o regime da lei, mas somente o regime que a lei deixa aplicar.

Não há uma 3ª possibilidade de solução. E se nos é agora permitido refinar as hipóteses, seríamos mesmo tentados a dizer que ambas as propostas se podem fundir numa só, isto é, que as razões de uma andam de braço dado na outra, ao ponto de praticamente servirem de uma só vez para negar qualquer sucesso ao recorrente. Estão ali vertidos os motivos pelas quais, em nossa opinião, a posição defendida no recurso contencioso a respeito da má aplicação da lei não podem colher.
*
E se é assim que pensamos, então nenhum dos fundamentos com que o recorrente ilustra a violação do princípio da igualdade - como seja a invocação da violação do art. 25º da Lei Básica da RAEM, do art. 57º, nº2, da Lei das Relações de Trabalho, dos arts. 2º e 3º da Convenção nº111 da OIT sobre a Discriminação em matéria de emprego e profissão, do art. 7º do Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais – ou o da legalidade (ainda que sem expressamente assim o qualificar – como a cláusula 4º do seu contrato individual de trabalho de fls. 68 do apenso ou os arts. 174º e 175º do ETAPM – serve para sustentar a procedência do recurso no qual tanto denodo e brilho depositou.

É que neste caso, se, como pensamos, a Administração não podia satisfazer a pretensão do recorrente porque a lei o não permitia, então a actividade vinculada a que o Ex.mo Chefe do Executivo estava obrigado cumpre a lei e respeita todo e qualquer qualquer princípio de legalidade que tivesse que ser observado.

Mas, uma tal solução não ofenderá, no fundo e verdadeiramente, princípios de igualdade?

Atrevemo-nos, mesmo assim, a dizer que não. Porque um tal princípio só faz sentido perante situações exactamente iguais; a diversidade de situações – mesmo que com fortes pontos de contacto – não pode gerar a violação do princípio. É o que a mais representativa jurisprudência local vem defendendo (v.g., Ac. do TUI, de 12/05/2010, Proc. nº 5/2010)1. Ora, basta a circunstância de a situação do recorrente assentar em contrato individual de trabalho para logo se ver que o quadro em que ele se relaciona com a Administração é diferente do quadro de vinculação a que respeitam outras situações como as dos funcionários do quadro ou os assalariados. É uma relação em que, em nossa opinião, a Administração até pode contratualizar com o particular direitos diferentes e até superiores aos que possam resultar de uma relação jurídica própria de um lugar do quadro.

De resto, se o problema aqui fosse de desigualdade, e não nos parece que seja, então, a questão até mudaria de figura para passar a ser uma desigualdade, não na aplicação do direito, mas eventualmente uma desigualdade na criação do direito2.

Ora, como é sabido, o legislador ordinário pode introduzir discriminações positivas ou negativas, desde que nas situações de facto encontre razão séria e não arbitrária para diferenciar o tratamento. Desde que haja fundamento material bastante, sério, razoável e legítimo que não perigue com situações em que as condições objectivas imponham igualdade de regulação, a discriminação na criação da lei não é necessariamente violadora do princípio da igualdade (Pareceres nº 1/76 e 14/78 da Comissão Constitucional; Ac. do STA, de 26/03/98, Rec. nº 42.154; do T.C. nº 767/85, de 6/5/95, Rec. nº 72/84; T.C. nº 204/85, de 13/10/85, Proc. Nº 1/85; T.C. nº 221/90, de 20/06, BMJ nº 398/213, entre outros).

Por isso, é necessário ter presente a razão subjacente em sentido material, para que a igualdade se não confine a um postulado meramente formal.

Para ter pleno sentido prático, a criação de direito igual deve obedecer à previsão das mesmas situações, presentear todos os indivíduos com as mesmas características e a todos conferir os mesmos resultados jurídicos (J. GOMES CANOTILHO in Direito Constitucional, 5ª ed.. 2ª reimpressão, pag. 575; tb. in Direito Constitucional e Teoria da Constituição, pag.388; JOÃO MARTINS CLARO, in O Princípio da Igualdade, na obra Colectiva «Nos Dez Anos da Constituição», da INCM, pag.35 e sgs).

A violação doo princípio da igualdade só se realiza quando alguém é privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever num quadro de facto igual que devesse justificar uma mesma solução normativam (igualdade na criação do direito) ou administrativa( na aplicação do direito), de que neste segundo caso encontramos eco no art. 5º do C.P.A. ( sobre o princípio, vidé GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional, ed. 1992, pag. 574 e sgs). Quer dizer, portanto, que situações iguais têm que merecer iguais soluções e é aí que o princípio da igualdade encontra o seu nuclear fundamento, como é sabido.

Um princípio assim, que se rebela contra o arbítrio e as discriminações, contudo, não impõe absoluta uniformidade do regime jurídico para todos, antes permitindo diversidade de soluções perante justificada diferença de situações( Ac. do STA, de 26/3/98, Rec. nº 42.154; do T.C. nº 433/87, in BMJ nº 371/145).

A proibição do arbítrio constitui um limite externo da liberdade de conformação ou decisão do legislador e só deve considerar-se violado quando não exista o adequado suporte ou fundamento material suficiente para a medida legislativa tomada (Ac. T.C. de 1/12/85, nº 309/85; nº 103/87, de 24/3/87, in BMJ nº 365/318). É por isso que as diferenciações de tratamento às vezes se tornam legítimas se se basearem numa distinção objectiva de situações, se tiverem um fim legítimo segundo o ordenamento constitucional positivo e se se revelarem necessárias, adequadas e proporcionadas à satisfação do seu objectivo (Ac. T.C. - Plenário - nº 40/88, de 11/2/88, BMJ nº 347/156).

Ora, neste caso, terá encontrado o legislador razões sérias para introduzir alguma divergência de soluções no que respeita à extensão temporal dos efeitos da lei e nós não vemos em que medida alguma violação ostensiva da igualdade possa ter advindo dessa opção legislativa.

Em todo o caso, mesmo que estivéssemos perante um caso de desigualdade na criação do direito, então este não seria o meio próprio para contra ela reagir, por se tratar de um meio contencioso orientado para a anulação de um acto administrativo.

Para dizer, portanto, que não podemos sufragar a tese do recorrente quanto a este vício.
*
Falta analisar o vício de forma por falta de fundamentação também suscitado no recurso.

Como é sabido, a fundamentação serve propósitos de auto-controlo, impelindo a Administração a uma autodisciplina na análise e apreciação de cada caso, de forma a que pondere e reflicta bem sobre o assunto pendente e lhe dê o melhor tratamento factual e jurídico.

Mas a fundamentação também visa uma função de altero-controlo, permitindo que o particular administrado fique munido da necessária dose de argumentos com os quais possa atacar a justiça e a legalidade da decisão administrativa. É isto o que está implícito no art. 113º, nº1, al. e), bem como nos arts. 114º, nº1, al. a) e 115º, nºs 1 e 2, do CPA.

Para cumprir este desígnio, o art. 115º permite que se faça a chamada fundamentação por remissão, que visa encaminhar os fundamentos do acto directamente para os fundamentos expostos num texto prévio contido numa informação, num parecer, numa proposta, etc.

Aos olhos do recorrente, o acto em apreço não cumpre o intento da lei. Contudo, se prestarmos atenção ao acto em apreço - recorde-se, do Ex.mo Chefe do Executivo de 22/02/2010 - ele é de concordância com o parecer e proposta nº 187/PP/DP/2010 prévios, nos quais é muito clara e absolutamente compreensível a indicação dos motivos da decisão (para os quais remete), nomeadamente no tocante à retroacção dos efeitos da alteração contratual.

Posição administrativa que viria a ser reiterada na proposta nº 313/PP/DP/2010 (ver fls. 32 a 35 dos autos; fls. 101 a 104 do apenso instrutor; ver ainda factos 9 e 10 supra) através do despacho “Autorizo”. Obviamente, esta autorização recai sobre o teor dos elementos que foram apresentados ao Ex.mo Chefe do Executivo. Quer dizer, o objecto da autorização só podia ser a alteração contratual nos exactos termos em que lhe estava a ser feita a proposta, que mais uma vez apontava para 18 de Agosto de 2009 a data do início da produção dos efeitos do contrato que iria ser rubricado.

Este é o entendimento que decorre do contexto procedimental acerca da decisão impugnada, que se nos afigura de meridiana compreensão mesmo para o mais comum dos cidadãos. O próprio recorrente colheu essa exacta percepção ao impugnar com a mais perfeita lógica e brilhantismo o seu teor no presente recurso contencioso.

Cremos, pois, não haver falta, nem insuficiente fundamentação.

Mutatis mutandis, tudo quanto abordado ai mostra-se perfeitamente pertinente à apreciação e à decisão do presente recurso e é por nós dado por integralmente reproduzido aqui como fundamentação da presente lide recursória.

Tudo visto, resta decidir.

III

Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência negar provimento ao recurso.

Custas pela recorrente com 9 UC de taxa de justiça.

Notifique.

RAEM, 01DEZ2011

(Relator) Presente Lai Kin Hong Vítor Manuel Carvalho Coelho

(Primeiro Juiz-Adjunto)
Choi Mou Pan

(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
1 No sentido de que a violação da igualdade admite distinções, consoante o caso, ver, por exemplo, o Ac. do Tribunal Constitucional Português de 11/02/1998, Proc. nº ACTC8167, segundo o qual:” O princípio constitucional da igualdade, entendido como limite objectivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a realização de distinções. Proíbe-lhe, antes, a adopção de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias - desde logo, diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são os indicados exemplificadamente, no n.º 2 do artigo 13.º da Lei Fundamental -, ou seja, desigualdades de tratamento materialmente infundadas, sem qualquer fundamento razoável ou sem qualquer justificação objectiva e racional. Numa expressão sintética, o princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se na ideia geral de proibição do arbítrio”.
2 O que, até aí, é permitido dentro de certas circunstâncias, tal como decorre do aresto do TC citado. Circunstância admitida em certos casos
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