打印全文
Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 27 / 2005

Recorrente: A
Recorrida: B








1. Relatório
   A recorrente do presente recurso A instaurou no Tribunal Judicial de Base uma acção sumária de execução de n.º CV2-99-0011-CAO-B. Por seu lado, a recorrida B apresentou a reclamação dos créditos na mesma acção na qualidade de credor.
   De acordo com a decisão proferida pelo juiz do Tribunal Judicial de Base nos autos de reclamação dos créditos de n.º CV2-99-0011-CAO-C (fls. 50), o crédito reclamado pela recorrida foi reconhecido e graduado em primeiro lugar, seguido pelo crédito da recorrente.
   Inconformada com a decisão, a recorrente recorreu para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 12 de Maio de 2005 proferido no recurso civil n.º 51/2005, foi negado provimento ao recurso e confirmado o despacho do juiz do Tribunal Judicial de Base.
   Novamente não conformada, vem agora a recorrente recorrer perante o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O direito de retenção é uma garantia real que decorre directamente da própria lei, não precisando sequer de ser reconhecido judicialmente.
   2. Resulta igualmente da lei que o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que anteriormente registada.
   3. A sentença que reconheceu o direito de crédito da recorrente e o seu direito de retenção sobre o imóvel hipotecado não afecta juridicamente o crédito da recorrida e a respectiva garantia.
   4. A recorrida deve ser considerada “terceiro juridicamente indiferente”, como consta dos ensinamentos do Prof. Manuel de Andrade, acima citado.
   5. A recorrida em nada vê afectado juridicamente o seu direito de crédito sobre o executado, nem a consistência jurídica da garantia hipotecária de que beneficia, apenas podendo, quanto muito, ficar economicamente prejudicada se a solvabilidade do executado for, por via da sentença em causa, reduzida a ponto de o bem não ter valor suficiente para pagamento do crédito.
   6. Ainda que essa sentença não constitua caso julgado em relação à recorrida, daí não resulta que a mesma recorrida não tenha a possibilidade de reagir judicialmente;
   7. A possibilidade de contraditar a existência do direito de retenção invocado pelo exequente tem a sua oportunidade no âmbito da fase da convocação de credores e verificação de créditos. Ou seja, o momento processualmente adequado para a recorrida impugnar o crédito da recorrente era o que decorria do art.º 759.º do CPCM.
   8. Não o tendo feito, como não fez, a recorrida perdeu a oportunidade de discutir a validade e consistência desse crédito e, consequentemente, do direito de retenção reconhecido à recorrente.
   9. Assim sendo, o crédito da recorrente teria de ser forçosamente graduado em primeiro lugar.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e graduando-se o crédito da recorrente com prioridade em relação a todos os créditos reclamados.
   
   Em resposta, a recorrida formulou as seguintes conclusões:
   “1. É com abuso de direito que a recorrente pretende ver atribuída prevalência do seu crédito sobre o da recorrida, pois só a intervenção prévia da recorrida – com a correspondente hipoteca – permitiu que a recorrente celebrasse, com intuitos lucrativos, o Contrato de Empreitada – de onde nasceu o seu crédito e o consequente direito de retenção.
   2. Em casos idênticos, já se pronunciou a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Portugal a favor da inoponibilidade do direito de retenção em relação a hipoteca com registo anterior.
   3. Neste sentido o Ac. STJ de 24.05.88 in BMJ, 377, pg. 510, onde, em situação análoga, se decidiu que “Havendo-se registado primeiro que o contrato de construção de navio as hipotecas relativas ao empréstimo para a construção deste, as quais estão na origem do privilégio creditório de que gozam os direitos resultantes desse empréstimo, preferem estes, na graduação de créditos, sobre o direito de retenção resultante do crédito de construção do navio.”.
   4. Logo, deve o direito de retenção que assiste à recorrente ser declarado inoponível à hipoteca da recorrida.
   5. Por outro lado, o facto de a recorrida não ter sido parte na acção de reconhecimento do direito de retenção faz com que a sentença aí exarada não vincule a ora recorrida, não sendo, por isso, o direito de retenção da recorrente oponível à hipoteca da recorrida.
   6. A recorrida é um terceiro juridicamente afectado com a sentença aí produzida, pelo que, de acordo com a eficácia relativa do caso julgado (cfr. art.ºs 574.º, 576.º, 416.º e 417.º, todos do CPC), a referida decisão não a vincula e não lhe é oponível.
   7. Neste sentido, e por todos, o Ac. STJ Português, de 21/11/2002 “(...) É princípio fundamental, relativamente aos limites subjectivos do caso julgado material, a sua eficácia relativa. (...) Os terceiros não têm que acatar a sentença quando aquela, a valer em face deles, lhes poderia causar um prejuízo jurídico, invalidando a própria existência ou reduzindo o conteúdo do seu direito. (...) Com efeito, (...) atendendo-se (...) à existência do direito de retenção, a hipoteca que garante o crédito da recorrida sai juridicamente enfraquecida pela prevalência do direito de retenção. (...) Da relação estritamente bilateral a que se reporta a sentença que reconheceu o direito de retenção, emerge um efeito que interfere directamente com outra situação jurídica anteriormente constituída, e cujo titular não interveio na acção, ficando fortemente limitado o alcance da garantia hipotecária (...) A extensão reflexa da eficácia do caso julgado a terceiros não pode afectar os direitos destes em casos deste jaez, sob pena de, através de mero conluio, duas partes poderem deliberadamente prejudicar um terceiro. (...). O direito de retenção em referência, (...) confronta-se com o direito de um terceiro juridicamente interessado, de certo modo incompatível com o direito de retenção, afectando-lhe a consistência jurídica por força do disposto no art.º 759.°, n.° 2 da lei substantiva (art.º 749.º, 2 do CCM) (tese do acórdão do STJ, de 10.10.89, no BMJ 390, pág. 363 e segs.) (...) Entre os dois créditos, um munido da garantia do direito de retenção, e outro da garantia hipotecária, há uma incompatibilidade jurídica, relegando o primeiro o segundo para uma posição jurídica secundária. Em suma, (...) isso obsta a que a sentença vincule a recorrida, porque o direito de retenção veio limitar fortemente a consistência jurídica da garantia hipotecária do crédito da recorrida, que desse modo cede perante aqueloutro direito”, (Ac. do STJ, de 11/21/2002, in www.dgsi.pt, doc. n.° JSTJ000).
   8. Mutatis mutandis, a sentença que reconheceu à recorrente o direito de retenção não vincula a recorrida, porque o direito de retenção veio limitar fortemente a consistência jurídica da garantia hipotecária do crédito da recorrida (cfr. art.ºs 574.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, 416.º, n.º 1 e 417.º, n.º 1, todos do CPCM).
   9. A sentença que reconheceu à recorrente o direito de retenção sub judice apenas poderia ser oponível à recorrida se esta tivesse sido parte na referida acção (cfr. art.ºs 547.º, 576.º, 416.º e 417.º todos do CPCM) e assim lhe tivesse sido conferida a oportunidade de deduzir defesa.
   10. É a própria lei que prevê uma norma de conflitos para a posição jurídica tutelada pelo direito de retenção e pela tutelada pela hipoteca registada.
   11. Se a própria lei prevê uma norma de conflitos para o direito de retenção e a hipoteca, é porque essas posições são incompatíveis e o reconhecimento de uma afectará a consistência jurídica da outra.
   12. Não pode, por isso, considerar-se o direito de retenção reconhecido por sentença, na qual a recorrida não foi parte, oponível à ora recorrida, porquanto a sentença in questio não tem força de caso julgado em relação à recorrida e não a vincula.
   13. Doutro modo se decidindo sairiam violados princípios tão básicos e elementares, como o princípio do contraditório (art.º 3.º, n.° 1 do CPCM) e o princípio do alcance do caso julgado (art.ºs 574.º, n.º 1, 576.º, n.º 1, 416.º, n.º 1 e 417.º, n.º 1, todos do CPCM), que regem todo o direito processual civil e que constituem pilares fundamentais de um Estado de Direito.
   14. Tanto o princípio do contraditório como o da eficácia relativa do caso julgado tem, indirectamente, dignidade supra legal, que lhes é conferida pelos art.ºs 25.º, 30.º e 36.º da Lei Básica que rege esta Região Administrativa (cfr. art.ºs 25.º, 30.º e 36.º da Lei Básica).
   15. Deve pois ser mantida a decisão recorrida.”
   Pedindo que seja negado o provimento ao recurso, mantendo a decisão do juiz a quo.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Questões a apreciar
   Segundo a posição com vencimento do acórdão recorrido, não é vinculativa ao Banco, credor reclamante, a sentença que reconhece o direito de retenção à exequente. Os fundamentos são os seguintes: a consistência jurídica do direito hipotecário da primitiva recorrida ficou fortemente abalada pela constituição do direito de retenção, ela não pode ser considerada como terceiro juridicamente indiferente; à mesma recorrida devia ter sido dada oportunidade de defesa na acção declarativa que confirmou tal direito de retenção; sendo inconciliável o direito de retenção e o direito hipotecário, existe no Código Civil regra de conflito dos dois direitos; por causa da força relativa do caso julgado, não é vinculativa à recorrida a sentença proferida na acção declarativa que reconheceu o direito de retenção à primitiva recorrente. Por isso, decidiu o Tribunal de Segunda Instância graduar o crédito da recorrida com prevalência ao da recorrente, negando, assim, o provimento do recurso.
   A ora recorrente tem as seguintes posições jurídicas: é vinculativa para a recorrida a sentença que confirmou à recorrente o direito de crédito e o respectivo direito de retenção; mesmo que essa sentença não constitua caso julgado em relação à recorrida, pode esta ainda apresentar impugnação nos termos do art.º 759.º do Código de Processo Civil (CPC); não tendo a recorrida impugnado em momento próprio, perdeu a oportunidade de questionar o crédito e o seu direito de retenção da recorrente; determinando a lei a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, o crédito da recorrente deve ser graduado com prioridade relativamente ao da recorrida.
   As posições jurídicas da recorrida são: o crédito e a garantia hipotecária da recorrida foram constituída com maior antecedência; se não houvesse o recurso financeiro proveniente da recorrida, não teria a recorrente celebrado o contrato de empreitada, donde nasceu posteriormente o direito de retenção, por isso, este não pode ser oponível à hipoteca da recorrida; a sentença que reconheceu o direito de retenção não vincula a recorrida porque esta não interveio na respectiva acção e o direito de retenção veio limitar fortemente a consistência jurídica do direito hipotecário.
   
   Cumpre-nos, assim, apreciar as seguintes questões:
   O âmbito de impugnações no processo de verificação dos créditos.
   A consequência jurídica da falta de impugnações.
   A graduação, em concreto, dos créditos dos presentes autos.
   
   
   2.2 O âmbito de impugnações dos créditos
   Na acção sumária de execução instaurada no Tribunal Judicial de Base pela recorrente A, a recorrida B apresentou a reclamação dos créditos na qualidade de credor com garantia real sobre o bem penhorado.
   Admitido liminarmente o pedido pelo juiz do Tribunal Judicial de Base, foi ordenada a notificação da exequente e dos executados para os termos previstos no art.º 759.º, n.º 2 do CPC, ou seja, para apresentar impugnações em relação aos pedidos de reclamações.
   Não tendo sido recebida nenhuma impugnação depois de terminar o respectivo prazo, o juiz do Tribunal Judicial de Base proferiu despacho (fls. 50) no sentido de reconhecer o crédito reclamado e a quantia exequenda, e graduar o crédito da B com prioridade sobre o da recorrente.
   Na apreciação do recurso deste despacho interposto pela exequente, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso com fundamento na falta de força vinculativa da sentença que reconheceu a garantia do crédito da recorrente pelo direito de retenção relativamente à parte reclamante, mantendo a decisão do juiz do Tribunal Judicial de Base.
   
   No entanto, no acórdão recorrido, o Tribunal de Segunda Instância apreciou os fundamentos do recurso com base na oponibilidade entre os dois créditos que estão em conflito, sem ter em conta as regras jurídicas processuais a que devem obediência os trâmites, no processo executivo, atinentes à convocação de outros credores para além do exequente para apresentar reclamações dos créditos, à verificação destes e a respectiva graduação, bem como a especificidade deste processo autónomo.
   A recorrente considera que a recorrida podia impugnar os créditos da recorrente nos termos do art.° 759.° do CPC.
   Dispõe assim o art.° 759.° do CPC:
   “1. Findo o prazo para a reclamação dos créditos, o juiz profere despacho a admitir ou a indeferir liminarmente as reclamações que tenham sido apresentadas.
   2. As reclamações podem ser impugnadas pelo exequente e pelo executado no prazo de 15 dias, a contar da notificação do despacho que as tenha admitido e que deve ser igualmente notificado aos restantes credores; dentro do mesmo prazo podem estes credores impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia.
   3. ...”
   
   De acordo com o n.° 2 deste artigo, além de os exequente e executado poderem impugnar as reclamações dos créditos, os outros credores também podem impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também direito real de garantia. Nestes créditos devem incluir-se o do exequente, objecto do processo executivo. Ainda conforme o n.° 2 do art.° 766.° do CPC, o credor citado para a execução só pode ser pago pelos bens sobre que tiver garantia segundo a ordem de graduação do seu crédito.
   
   Entendem e maioria dos autores1 2 que, na fase de convocação de credores, para estes reclamarem os créditos no processo executivo, os reclamantes podem impugnar o crédito do exequente e a respectiva garantia.
   
  Para Miguel Teixeira de Sousa, “os credores reclamantes também podem contestar o crédito do exequente. Qualquer credor pode contestar qualquer crédito que possa concorrer com o crédito que ele reclama.
   O concurso de credores baseia-se na oponibilidade recíproca das várias causas de preferência dos credores reclamantes, pelo que antes da respectiva graduação, nenhuma dessas causas – nem mesmo a do credor exequente – pode ser considerada indiscutível. Deste modo, apesar do silêncio legal, os credores reclamantes podem impugnar a penhora ou a garantia real do exequente (STJ – 11/10/1992, BMJ 420, 431), bem como as garantias reais invocadas pelos outros credores.”3
   
   Salvador da Costa tem a mesma posição: “No referido prazo, contado da notificação do exequente e do executado, os credores reclamantes admitidos ao concurso podem impugnar os créditos reclamados se tiverem garantia ou preferência de pagamento sobre os bens em relação aos quais outros credores também hajam invocado alguma garantia ou preferência de pagamento.
   A legitimidade ad causam dos credores no que concerne à impugnação deriva do facto de existir a prioridade de pagamento resultante da natureza e das circunstâncias da garantia real ou preferência de pagamento invocada por cada um deles.
   Assim, no caso de o direito de crédito exequendo estar assegurado por alguma garantia real ou preferência de pagamento, em termos de possibilidade de afectação dos créditos reclamados, poderão os credores reclamantes deduzir impugnação contra o próprio exequente.”4
   
   Eurico Lopes-Cardoso explica com pormenor: “A única razão de ser da faculdade conferida neste preceito é a de completar o direito de reclamação. As garantias reais constituídas sobre os mesmos bens funcionam segunda certa ordem de prioridade. A anterioridade dumas prejudica as outras; a garantia posterior é tanto menor quão maior for o crédito garantido com prioridade pelos mesmos bens.
   Para pouco serviria, portanto, o direito de reclamar um crédito com garantia real se não fosse acompanhado do direito de atacar a prioridade doutros.
   Ao impugnar créditos, o reclamante não defende os direitos do executado; defende os seus.”
   “Ora, entre os créditos garantidos por bens sobre os quais o credor reclamante invocou garantia real, figurará sempre o crédito exequendo.
   Se ao crédito exequendo for atribuída prioridade de pagamento sobre o crédito reclamado, com o seu reconhecimento pode ser prejudicada a satisfação deste. Se, tendo prioridade, lhe foi atribuído montante excessivo, também o pagamento do crédito reclamado pode ser afectado.
   Não pode deixar-se de permitir ao reclamante que ataque a referida prioridade e o dito montante, se eles não corresponderem à realidade e à lei. ...
   Tem-se por certo, pois, que o credor admitido a concurso pode impugnar todos os créditos (incluído o exequendo) que, sem tal impugnação, viriam a ser pagos com preferência ao seu pelo produto dos bens sobre que invocou garantia.
   Nesse caso, poderá impugnar o crédito exequendo, não só quando o executado não se tenha oposto à execução por conluio com o exequente, mas também quando ele se não tenha oposto por negligência ou, simplesmente, por indiferença quanto ao destino do produto dos bens, de qualquer maneira perdido.
   Quando tenha havido embargos de executado, em que o montante do crédito do exequente tenha sido discutido, não pode dizer-se que o caso julgado constituído obrigue os credores com garantia real sobre bens do executado. Não se verificará a identidade de sujeitos exigida pelo artigo 498.º, n.º 1.5
   E também parece que não pode falar-se em efeito reflexo desse caso julgado.”6
   
   Em consideração do caso idêntico ao do presente processo, José Lebre de Freitas afirma, sem qualquer dúvida, que no âmbito das impugnações estão abrangidos o crédito do exequente e a respectiva garantia: “Quando o exequente se arrogue um direito real de garantia que deva prevalecer sobre o do credor reclamante, é manifesto o interesse deste em o impugnar e, na medida em que a existência da garantia depende da existência do próprio direito de crédito, em impugnar também este direito. Por isso, o art.° 866.°, n.° 37 não distingue ao conceder aos credores reclamantes a faculdade de impugnarem os créditos (=todos os créditos) com garantia sobre os bens sobre os quais a sua incide.”8
   
   
   No início, o processo executivo é singular em que só o exequente é credor. Após a convocação de outros credores, o processo executivo passa a ser, em certa medida, colectivo, formando-se o grupo de credores, em que está incluído o exequente, para satisfazer os créditos mediante pagamento feito por meio dos bens penhorados segundo certa ordem ou proporção. Assim sendo, o exequente é apenas, no processo instaurado por ele mesmo, o primeiro credor a pedir ao executado solver a dívida. No entanto, isso não implica a indiscutibilidade do crédito do exequente.
   Na realidade, sendo possível ou até em certas situações com certeza de que os bens do executado penhorados sejam insuficientes para satisfazer todos os créditos na fase do pagamento, estão numa relação de conflito potencial os créditos do exequente e dos credores admitidos ao processo executivo após a convocação. Por isso, a validade jurídica e a ordem de graduação constituem elementos essenciais de susceptibilidade de satisfação dos créditos em confronto. É evidente que o crédito do exequente e a respectiva garantia podem provocar prejuízo prático ou económico aos créditos de outros credores, até abalam a sua consistência jurídica.
   Por outro lado, mesmo que o crédito do exequente seja considerado definitivo por improcedência dos embargos do executado, a respectiva sentença não produz, em princípio, efeitos de caso julgado em relação aos outros credores por vincular apenas as partes processuais, ou seja, o exequente e o executado. Se o crédito do exequente não for impugnado por falta de oposição do executado, também não significa que se torna oponível a outros credores.
   Perante os bens penhorados e para garantir a justiça material entre os credores, deve permitir a todos os credores, incluindo o exequente, e o executado, discutirem os créditos, nomeadamente os que têm garantia real, as respectivas garantias e a ordem de graduação no processo declarativo de convocação de credores e graduação dos créditos. Isto é, quando a garantia real dos créditos incidem sobre o mesmo bem penhorado, qualquer reclamante pode impugnar a validade jurídica, valor económico, a respectiva garantia e a ordem de graduação. Só assim se permite fixar definitivamente a validade jurídica dos créditos no âmbito dos credores e finalmente a ordem de graduação. A apreciação efectiva da relação jurídica material entre os créditos nesta fase processual destina-se a evitar a interposição de nova acção a fim de procurar a reparação dos prejuízos do credor prejudicado por falta de exame material.
   O entendimento garante não só o tratamento igual entre os credores, a protecção do seu direito de defesa e oportunidade do contraditório, mais ainda a concretização do princípio de economia processual.9
   Assim, na fase de impugnação das reclamações e quando incide sobre o mesmo bem penhorado, o reclamante pode impugnar o crédito do exequente e a respectiva garantia, bem como tomar posição sobre a ordem de graduação.
   No presente caso, a reclamante, ora a recorrida, podia impugnar o crédito da exequente e o direito de retenção como sua garantia no requerimento de reclamação e na referida fase.
   
   Quanto aos fundamentos de impugnação dos créditos, dispõe o art.º 759.º, n.º 3 do CPC:
   “3. A impugnação pode ter por fundamento qualquer das causas que extinguem ou modificam a obrigação ou que impedem a sua constituição; mas se o crédito estiver reconhecido por sentença ou decisão arbitral, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 697.º ou 698.º, na parte em que forem aplicáveis.”
   Nas causas que extinguem ou modificam a obrigação deve ser incluída a respeitante a garantia do crédito. Como parte integrante do conteúdo jurídico do crédito, essa garantia determina precisamente a ordem de graduação. A última parte deste número sobre a restrição dos fundamentos de impugnação do crédito reconhecido por sentença ou decisão arbitral deve ser válida apenas para o reclamante vinculado pela força de caso julgado das mesmas. Isso significa que, mesmo que os créditos do exequente ou de outros reclamantes, objecto de impugnação, sejam reconhecidos por sentença ou decisão arbitral, o reclamante pode na impugnação invocar qualquer causa de extinção ou modificação da obrigação ou que impede a sua constituição, sem ser limitada aos mencionados nos art.ºs 697.º e 698.º do CPC, se estiver fora dos efeitos de caso julgado das referidas sentença ou decisão arbitral.
   
   No entanto, a reclamante, ora recorrida, não impugnou, dentro do prazo legal, o direito de crédito da recorrente e o respectivo direito de retenção.
   Nos termos do n.º 2 do art.º 759.º do CPC, além de notificar aos exequente e executado, o despacho de admissão liminar das reclamações deve ser igualmente notificado aos reclamantes, de modo a permitir o conhecimento efectivo por parte destes do início do prazo de impugnações.
   Depois de ser proferido o despacho de admissão liminar (fls. 46), o Tribunal Judicial de Base, contudo, não procedeu à notificação à recorrida de acordo com a norma citada.
   Desde o conhecimento da decisão sobre o reconhecimento do crédito reclamado e a graduação dos créditos, a recorrida nunca suscitou a omissão da notificação em causa. Dado que a apreciação da irregularidade processual depende da arguição do interessado, fora do âmbito do conhecimento oficioso do tribunal, deve ser considerada sanada (art.º 148.º e 151.º, n.º 1 do CPC), o que não impede a conclusão da falta de impugnação do crédito e a sua garantia da recorrente por parte da recorrida.
   
   
   2.3 Consequência jurídica da falta de impugnação
   Prescreve, assim, o art.º 761.º do CPC:
   “1. Se nenhum dos créditos for impugnado ou a verificação dos impugnados não depender de prova a produzir, profere-se logo sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente.
   2. ...
   3. Têm-se como reconhecidos os créditos e as respectivas garantias reais que não forem impugnados, sem prejuízo do disposto no artigo 406.º ou do conhecimento das questões que deviam ter implicado indeferimento liminar da reclamação.
   4. ...
   5. ...”
   Segundo o n.º 3 deste artigo, fora das excepções ao regime de revelia previstas no art.º 406.º do mesmo Código e da necessidade de apreciação das questões conducentes ao indeferimento liminar de reclamações, são reconhecidos os créditos e as suas garantias não impugnados.
   
   Esclarece Salvador da Costa:
   “Na primeira das referidas situações, importa determinar se ocorre ou não alguma excepção ao efeito cominatório da revelia vigente em processo declarativo ou fundamento que devesse implicar a rejeição liminar da reclamação.
   A excepção ao efeito cominatório da revelia ocorre, nos termos adaptados do artigo 485.º do Código de Processo Civil10, nos casos de impugnação de factos por um dos sujeitos, de incapacidade do impugnante e de afirmação de factos cuja prova dependa, por força da lei, de documento escrito.
   Se não ocorrer qualquer excepção ao efeito cominatório da revelia nem houver fundamento que implicasse rejeição liminar de qualquer reclamação, proferir-se-á logo sentença que verifique todos os créditos reclamados e os gradue com o do exequente, caso em que, em jeito de efeito cominatório pleno, a decisão de verificação é automática, isto é, devem considerar-se reconhecidos os direitos de crédito e as correspondentes garantias reais ou preferenciais de pagamento.”11
   
   A consequência jurídica da falta de impugnação prevista no n.º 3 do at.º 761.º do CPC consubstancia, na realidade, o efeito cominatório pleno:
   “A falta de impugnação dos créditos reclamados produz um efeito cominatório pleno, pois que eles ficam imediatamente reconhecidos.
   Se todos os créditos deverem ser reconhecidos por falta de impugnação, nada mais importa averiguar, pelo que o tribunal deve proferir sentença que conheça da sua existência e os gradue com o crédito do exequente.”12
   
   Assim, no processo executivo e para os credores reclamantes, a impugnação dos créditos e garantias invocados pelos exequente e outros credores deve ser apresentada no requerimento de reclamação e no prazo estipulado no n.º 2 do art.º 759.º do CPC, mesmo que os créditos e as suas garantias fossem reconhecidos por sentença com efeitos de caso julgado para eles, com o objectivo de obter pagamento prioritário do produto do bem penhorado relativamente aos exequente e outros credores. Na fase de reclamações, o reconhecimento ou não do crédito e a sua garantia por sentença só releva para a limitação ou não dos fundamentos invocáveis pelo impugnante.
   Por causa da prescrição do efeito cominatório pleno para a falta de impugnação prevista no n.º 3 do art.º 761.º do CPC, a impugnação constitui ónus processual para os exequente, executado e credores.
   
   No parecer jurídico de autoria de José Lebre de Freitas juntado pela recorrida, entende-se que a impugnação é apenas uma faculdade do credor e não um ónus; o efeito cominatório pleno respeita só aos créditos reclamados, não também ao crédito do exequente, porque os credores nunca são notificados do conteúdo do crédito e a sua garantia do exequente. Por isso, a exequente deve apresentar provas para demonstrar os factos constitutivos do seu direito de retenção.
   Na fase de reclamações, o acto de notificação aos credores previsto no n.º 2 do art.º 759.º do CPC é, contudo, muito mais simples do que a citação do réu no processo declarativo. Até nem estava prevista no art.º 866.º do CPC de 1961 qualquer notificação aos credores reclamantes. De facto, o reclamante tem obrigação de consultar os autos para conhecer os outros créditos incluindo o do exequente.
   Os créditos previstos nos art.º 759.º, n.º 2 e 761.º, n.º 3 do CPC vigente não se limitam a referir aos reclamados nesta fase, nem excluem o do exequente e a sua garantia. Além disso, mesmo considerar que a impugnação do crédito do exequente e a sua garantia constitua a faculdade do credor, a lei não determina que o exequente tenha de comprovar novamente os factos constitutivos do seu direito nesta fase se o credor optar por não impugnar. Até nem o autor do referido parecer jurídico chegou a essa conclusão na sua obra13, para além de contrariar a função do título executivo. Deste modo, o efeito cominatório pleno previsto no último número acima citado incide necessariamente ao crédito do exequente e a sua garantia.
   
   No presente processo executivo, não existindo as situações previstas no art.º 406.º do CPC, nem as questões susceptíveis de provocar o indeferimento liminar das reclamações, devem ser reconhecidos o crédito da recorrente e o direito de retenção como garantia, bem como o crédito da recorrida, para efeitos de serem pagos através do produto do bem penhorado. Aqui chegado, até nem é necessário examinar a produção de efeitos da sentença que reconheceu o crédito da recorrente e o respectivo direito de retenção em relação à recorrida. Por causa da prescrição do efeito cominatório pleno, o crédito da exequente e o direito de retenção já foram reconhecidos no presente processo executivo, isso equivale à produção dos seus efeitos para a recorrida.
   
   Nos termos do art.º 761.º, n.º 1 do CPC, são imediatamente reconhecidos o crédito da recorrente, o seu direito de retenção e o crédito da recorrida por falta de impugnação.
   Uma vez que o direito de retenção sobre coisa imóvel prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, ao abrigo do art.º 749.º, n.º 2 do Código Civil, na inexistência da excepção prevista neste número, o crédito da recorrente deve ser pago com prioridade em relação ao da recorrida.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão do Tribunal de Segunda Instância e o despacho do juiz do Tribunal Judicial de Base recorridos, este último só na parte respeitante à graduação dos créditos das recorrente e recorrida, e passar a graduar, para efeitos do presente processo de reclamação de créditos, em primeiro lugar o crédito da recorrente, seguido pelo da recorrida.
   Custas nesta e na segunda instância pela recorrida.

   Aos 29 de Março de 2006.


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 O art.° 759.º do CPC de Macau tem conteúdo essencialmente idêntico ao do art.° 866.° do CPC de Portugal antes das alterações introduzidas pela Lei n.° 38/2003, pelo que as doutrinas dos autores portugueses adiante referenciadas têm por base a norma anterior às alterações.
Na realidade, tendo em consideração as posições praticamente unânimes da doutrina jurídica e da jurisprudência no sentido de permitir os reclamantes impugnarem o crédito do exequente, o art.° 866.° do CPC foi alterado segundo esta orientação na reforma do Código em 2003, que o seu n.° 3 passa a ter a seguinte redacção: “Dentro do prazo concedido ao exequente, podem os restantes credores impugnar os créditos garantidos por bens sobre os quais tenham invocado também qualquer direito real de garantia, incluindo o crédito exequendo, bem como as garantias reais invocadas, quer pelo exequente, quer pelos outros credores.”, em que se prescreve expressamente a inclusão do crédito do exequente no âmbito de impugnações de reclamantes; e procedeu-se ao correspondente ajustamento do n.° 5 do mesmo artigo: “Se o crédito estiver reconhecido por sentença que tenha força de caso julgado em relação ao impugnante, a impugnação só pode basear-se em algum dos fundamentos mencionados nos artigos 814.º e 815.º, na parte em que forem aplicáveis.”, para se tornar ainda mais claro que a restrição aos fundamentos invocáveis nas impugnações em relação ao crédito reconhecido por sentença (v.g. o crédito da exequente e o direito de retenção como garantia nos presentes autos) só é válida para os credores sujeitos à força de caso julgado daquela sentença. São, deste modo, removidas as dúvidas no entendimento e na aplicação do direito anterior.
2 De posições contrárias temos fundamentalmente: José Alberto dos Reis, Processo de Execução, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 270-272, com as normas algo diferentes que as vigentes; Artur Anselmo de Castro, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 1977, p. 272-273, em que defende que o reclamante prejudicado pela falta de oposição ou por oposição mal conduzida, para além do recurso extraordinário de oposição de terceiro, pode instaurar, já fora do processo executivo, a acção de restituição do indevido para obter a restituição do que lhe for devido através de demonstração da inexistência da obrigação; Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 2002, p. 256-257, apesar de sustentar que os credores não podem contestar o crédito do exequente, se o exequente aduzir garantia real diferente da penhora, os credores reclamantes podem impugná-la, a fim de serem pagos prioritariamente.
3 Miguel Teixeira de Sousa, Acção Executiva Singular, LEX, Lisboa, 1998, p. 342-343.
4 Salvador da Costa, O Concurso de Credores, 2ª ed., Almedina, Coimbra, 2001, p. 322.
5 Idêntico ao n.° 1 do art.° 417.° do CPC de Macau.
6 Eurico Lopes-Cardoso, Manual da Acção Executiva, 3ª ed., Almedina, Coimbra, 1992, p. 479-480.
7 Idêntico à última parte do n.° 2 do art.° 759.° do CPC de Macau.
8 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva, 3ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2001, p. 269, nota 31-B.
9 Cfr. José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, Coimbra Editora, Coimbra, 2003, p. 515.
10 Idêntico ao art.º 406.º do CPC de Macau.
11 Salvador da Costa, obra citada, p. 329.
12 Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, p. 344.
13 Ver José Lebre de Freitas, obra citada, p. 270-271.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------

Processo n.° 27 / 2005 22