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Processo nº 796/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 01 de Dezembro de 2011
Descritores:
- Trabalho doméstico
- Contrato de trabalho
- Salário
- Gorjetas
- Descanso semanal, feriados obrigatórios
SUMÁRIO:
I- A composição do salário, através de uma parte fixa e outra variável, admitida pelo DL n. 101/84/M, de 25/08 (arts. 27º, n.2 e 29º) e pelo DL n. 24/89/M, de 3/04 (arts. 25º, n.2 e 27º, n.1) permite a integração das gorjetas na segunda.

II- Na vigência do DL 24/89/M (art. 17º, n.1,4 e 6, al. a), tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”); mas se nele prestar serviço terá direito ao dobro da retribuição (salário x2).

III- Se o trabalhador prestar serviço em feriados obrigatórios remunerados na vigência do DL 24/89/M, além do valor do salário recebido efectivamente pela prestação, terá direito a uma indemnização equivalente a mais dois de salário (salário médio diário x3).










Processo nº 796/2010
(recurso Cível e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos intentou contra a STDM acção de processo comum de trabalho pedindo a condenação desta no pagamento da quantia total de MOP$ 180.804,00, a título de indemnização pelo não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso semanal, anual e feriados e de danos não patrimoniais e dos juros respectivos.
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Defendeu-se a ré STDM por excepção (prescrição) e por impugnação.
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No despacho saneador, foram julgados prescritos os créditos laborais do autor referente ao período compreendido entre 17/8/1986 e 14/04/1987.
Não houve recurso deste despacho.
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Prosseguiram os autos os seus normais trâmites, vindo a ser proferida sentença, que condenou a STDM a pagar ao autor a quantia de MOP $ 2.093,50 e juros respectivos.
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É desta decisão que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações foram formuladas as seguintes conclusões:
  1.Durante toda a relação contratual existente entre o Autor e a Ré, sempre o primeiro auferiu uma remuneração, composta por uma parte fixa e outra variável;
  2. Ademais, sempre o Autor, ora Recorrente, entendeu que o seu salário era integrado por duas quantias: uma fixa e outra variável composta pelas “gorjetas”;
  3. Acaso a quota-parte do valor das gorjetas não fizesse parte do seu salário, nunca o Autor, ora Recorrente, teria aceite estabelecer qualquer relação contratual com a Ré;
  4. Ao que acresce que, tal qual tem vindo a ser sublinhado pelo douto Tribunal de Segunda Instância para casos em todo similares aos presentes, a quota-parte de gorjetas distribuída ao Autor não pode deixar de integrar o seu salário, pois face à desproporção do montante variável pago a título de “gorjetas” em relação à retribuição fixa estabelecida no contrato, aquela nunca teria aceite estabelecer qualquer relação de trabalho com a Ré caso a sua quota-parte no valor daquelas não fizesse parte do vencimento;
  5. Não se olvide que foi justamente a soma das duas quantias - uma fixa e outra variável - que durante toda a relação laboral serviram para retribuir a prestação de trabalho do Autor para com a Ré;
  6. Acaso se entenda que o salário do Autor não era composto por duas partes: uma fixa e uma variável, então o mesmo será manifestamente injusto porque intoleravelmente reduzido ou diminuto - e, em caso algum, preenche ou respeita os condicionalismos mínimos fixados no Regime Jurídico das Relações Laborais da RAEM;
  7. As gorjetas dos trabalhadores dos Casinos e, em especial as auferidas pelo Autor durante todo o período da sua relação laboral com a Ré, em ultima ratio devem ser vistas como «rendimentos do trabalho», porquanto são devidos em função, por causa e por ocasião da prestação de trabalho, ainda que não originariamente como correspectivamente dessa mesma prestação de trabalho, mas que o passam a ser a partir do momento em que pela prática habitual, montantes e forma de distribuição, com eles o trabalhador passa a contar, sendo que sem essa componente o trabalhador não se sujeitaria a trabalhar com um salário que na sua base é um salário insuficiente para prover às necessidades básicas resultantes do próprio trabalho;
  8. O salário do Autor, ora Recorrente, não é diário nem determinado em função do trabalho efectivamente prestado, mas antes um salário mensal, ainda que em quantia variável;
  9. Ao contrário do que terá concluído o Tribunal a quo a parte variável do salário do Autor, ora Recorrente, deveria ter sido contabilizada nos montantes indemnizatórios devidos pela Ré ao Autor, em virtude da prestação de trabalho em dia de descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios.
  10. Ao não ter levado em conta o valor da parte da retribuição variável do salário do Autor, ora Recorrente, a douta decisão faz uma errada aplicação da Lei e do Direito (maxime do Regime Jurídico das Relações Laborais), o que conduz à sua nulidade;
  11. Para cálculo das quantias a pagar em virtude do trabalho prestado nos dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios, deverá seguir-se o que tem sido a jurisprudência unânime ao nível do Tribunal de Segunda Instância da RAEM;
  12. A douta decisão, na parte em que não aceita que o montante de “gorjetas” auferido pelo Autor, ora Recorrente, durante toda a relação de trabalho com a Ré fosse considerado como sendo parte variável do seu salário, fez uma interpretação incorrecta do disposto nos artigos n.º 5.º; 7.º, n.º 1, al. b); 25.º; 26.º e n.º do art. 27.º todos do Decreto-lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril, devendo ser substituída por outra que respeite o disposto na mesma Lei.
  Nestes termos, e nos demais de Direito que V. Exas. encarregar-se-ão de suprir, deverá ser anulada a douta Sentença do Tribunal Judicial de Base, na parte em que não aceita que as quantias variáveis - gorjetas - auferidas pelo Autor durante toda a relação laboral com a Ré não sejam consideradas como sendo salário, e substituída por outra que as considere como salário, bem como corrigidas as fórmulas de cálculo na mesma utilizada, pois só assim se fará JUSTIÇA!
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A STDM respondeu ao recurso, apresentando as seguintes conclusões alegatórias:
1 - As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.
2 - A retribuição ou salário, em sentido jurídico (laboral), encerra quatro elementos essenciais e cumulativos:
i. É uma prestação regular e periódica;
ii. Em dinheiro ou em espécie;
iii. A que o trabalhador tem direito por título contratual e normativo e que corresponde a um dever jurídico da entidade patronal;
iv. Como contrapartida pelo seu trabalho.
3 - No caso dos autos, estando em causa gorjetas comprovadamente oferecidas por clientes de casino, dependendo o seu recebimento do espírito de animus donandi de terceiros, estranhos à relação jurídicolaboral, nunca poderia a trabalhadora ter exigido à sua entidade empregadora o seu pagamento inexistindo aquela oferta por parte dos clientes.
4 - Se, por hipótese, em determinado mês, não existissem quaisquer gorjetas entregues pelos clientes da Recorrida a distribuir pelo A., ora Recorrente, e restantes trabalhadores, nenhum dever jurídico impendia sobre a Recorrida no sentido de suprir aquela falta e nenhum direito de crédito podiam os seus trabalhadores exigir a este respeito.
5 - Com efeito, é sabido que em anos em que o montante das gorjetas era inferior ao do ano anterior (variação que se constata pela análise dos rendimentos do A., ora Recorrente), nunca a Recorrente reclamou da ora Recorrida o seu pagamento.
6 - A Recorrente sabia que a parte do rendimento respeitante às gorjetas dependia exclusivamente das liberalidades dos clientes de casino, nada podendo exigir à ora Recorrida a esse título caso essa parte do seu rendimento fosse zero.
7 - Dispõe o artigo 25º, n.º 1 do RJRT que “Pela prestação dos seus serviços ou actividade laboral, os trabalhadores têm direito a um salário justo.”.
8 - Salvo o devido respeito por opinião contrária, analisando a certidão de rendimentos da Recorrente, não se pode dizer que ao A. não foi proporcionado um rendimento justo, maxime porque os rendimentos globais auferidos eram claramente superiores à média do rendimento / remuneração auferida por cidadãos de Macau com formação académica e profissional equivalente às suas que não trabalhassem em casino, os quais eram mais que bastantes para prover a uma vida digna e decente da Recorrente e sua família.
9 - A decisão recorrida não viola o princípio da igualdade, pois cada “sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga.” - cfr. artigo 576º n.º1 do C.P.C ..
10 - Deste modo, na esteira do entendimento do mais Alto Tribunal da RAEM, do douto tribunal Recorrido e, bem assim, da doutrina maioritária, entendemos que “As gratificações ou gorjetas recebidas pelos empregados de casino dos clientes não fazem parte do salário.”.
11 - Admitindo a Recorrida, apenas por cautela e por hipótese, que de forma alguma se concede, a obrigação de indemnizar o Recorrente tendo em conta o valor das gorjetas oferecidas pelos clientes de casino, devem ser as seguintes as fórmulas aplicáveis para aferir das compensações adicionais devidas:
i. Trabalho prestado em dias de descanso semanal:
1. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela j á foi pago);
2. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi pago);
3. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x0 (e não x0, porque uma parcela já foi pago).
ii. Trabalho prestado em dias de descanso anual:
1. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi pago);
2. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x3, porque uma parcela já foi pago e a R. não impediu ao A. de gozar quaisquer dias de descanso);
3. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x1 (e não x3, porque uma parcela já foi pago e a R. não impediu ao A. de gozar quaisquer dias de descanso).
iii. Trabalho prestado em dias de feriado obrigatório:
1. Decreto-Lei n.º 101/84/M: salário diário x0 (e não x1, porque uma parcela já foi pago);
2. Decreto-Lei n.º 24/89/M: salário diário x1 (e não x2, porque uma parcela já foi pago);
3. Decreto-Lei n.º 32/90/M: salário diário x1 (e não x2 porque uma parcela já foi pago).
12- Caso se entenda que as fórmulas supra expostas não são adequadas para o cálculo de uma indemnização eventualmente devida ao Recorrente, remete-se para as fórmulas adoptadas nos já referidos acórdãos do Tribunal de Última Instância, proferidos no âmbito dos Processos nºs 28/2007, 29/2007 e 58/2007, datados de 21 de Setembro de 2007, 22 de Novembro de 2007 e 27 de Fevereiro de 2008, respectivamente.

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Cumpre decidir.

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II- Os Factos

A sentença impugnada deu por assente a seguinte factualidade:
  Desde o início da década de 60 que a ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros jogos em casinos por adjudicação do então Território de Macau. (A)
  Durante o período compreendido entre 01/08/1986 e 21/03/1992, o Autor manteve uma relação de trabalho com a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L., exercendo funções de (table attender) e (croupier). (B)
  No contrato de trabalho celebrado entre a Ré e o Autor, ficou acordado que o Autor ia receber em contrapartida do seu serviço, para além de uma dada importância diária como retribuição fixa, uma outra quantia variável vulgarmente designada por “gorjetas”. (C)
  As “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos trabalhadores que lidavam directamente com os clientes de casinos. (D)
  O Autor não podia ficar com quaisquer (sic.) “gorjetas” que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (E)
  As “gorjetas” recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente por funcionários da Ré, sob vigilância da Direcção de Coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela Ré. (F)
  Sobre os rendimentos incidiu imposto profissional nos termos que constou da certidão de rendimentos de fls. 26, de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (G)
  O Autor prestou serviços em turnos, conforme os horários fixados pela Ré. (H)
  Nos dias em que não prestou serviços efectivos, o Autor não recebeu da Ré qualquer remuneração. (I)
  O Autor auferiu entre 1986 e 1992 uma retribuição média diária com os seguintes valores:
  a) Ano de 1986 MOP$253,00
  b) Ano de 1987=MOP$157,00
  c) Ano de 1988=MOP$236,00
  d) Ano de 1989 MOP$302,00
  e) Ano de 1990=MOP$ 364,00
  f)Ano de 1991-MOP$266,00
  g) Ano de 1992 MOP$29,00 (1º)
  A componente fixa da remuneração do Autor referida na alínea c) foi de MOP$ 4,10 por dia aquando da contratação até 30 de Junho de 1989, de HKD$ 10,00 por dia de 01 de Julho de 1989 até à data da cessação do contrato de trabalho com a Ré. (2º)
  O Autor, enquanto prestou serviços à Ré, trabalhava sob as ordens, direcção, instrução e fiscalização desta. (3º)
  Durante o período de duração da relação de trabalho com a Ré, o Autor não gozou quaisquer dos dias de descanso anual, de descanso semanal e de feriados obrigatórios. (4º)
  Sempre que um trabalhador quisesse gozar de um ou mais dias de descanso preenchia um formulário donde constavam os seus elementos, a sua identificação e o n.º de dias que queria gozar. (6º)
  Este requerimento era instruído pela secretaria. (7º)
  Os trabalhadores da STDM podiam requerer até 40 dias seguidos de descanso não remunerados, desde que para tanto preenchessem um formulário e apresentassem o requerimento com 10 dias de antecedência. (8º)
  Podiam, ainda, os trabalhadores da STDM, requer um sem número de dias de descanso não remunerado, desde que interpolados. (9º)
  Desde a data em que a Ré iniciou a actividade de exploração de jogos de fortuna e azar e até à data em que cessou a sua actividade as gorjetas oferecidas a cada um dos seus colaboradores pelos seus clientes eram reunidas e contabilizadas e depois distribuídas, por uma comissão paritária com a seguinte composição: um funcionário do Departamento de Inspecção de Jogos de Fortuna ou Azar, um membro do departamento de tesouraria da Ré, um “floor manager” (gerente do andar) e um ou mais trabalhadores da Ré, por todos os trabalhadores dos casinos que explorou, de acordo com a categoria profissional a que pertenciam. (10º)
  Os rendimentos do A. têm uma parte fixa e uma parte variável. (15º)
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III- O Direito
A sentença recorrida, para o cálculo da indemnização a que procedeu, apenas considerou o salário composto pela parte fixa referida na resposta ao art. 2º da Base Instrutória. Ou seja, não considerou as gorjetas como sendo parte da massa salarial. Daí que tivesse apurado uma valo indemnizatório relativamente baixo.
O presente recurso intenta demonstrar a ilegalidade da decisão quanto a esse aspecto e ainda quanto aos factores incluídos nas fórmulas de cálculo respeitantes ao descanso semanal, anual e feriados obrigatórios no âmbito de vigência do DL nº 24/89/M.
Vejamos, então.
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O recorrente começou a trabalhar para a recorrida como empregado do casino, recebendo como contrapartida diária uma quantia fixa, desde o início até á cessação da relação laboral. Para além disso, recebia uma quantia variável em função de gorjetas recebidas dos clientes do casino, que a recorrida reunia, contabilizava e posteriormente distribuía por todos os seus empregados. E tanto a parte fixa, como a variável, faziam parte dos rendimentos do autor.
Ora, tal como o TSI tem defendido, o contrato em causa é de trabalho, porque reúne todas as características próprias deste.
Socorramo-nos do Ac. do TSI de 19/03/2009, Proc. n. 690/2007 (mas todos têm até ao presente momento seguido este entendimento):
“Em face do artigo 1079.º do Código Civil, artigos 25º e 27º do anterior RJRL - cfr. artigos 1º, 4), 9º, 2), 57º da actual LRT, Lei 7/2008, de 12 de Agosto, em princípio não aplicável aos contratos findos, face à redacção do disposto no art. 93º -, art. 23°, n.º 3 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, art. 7º do Pacto sobre Direitos Económicos Sociais e Culturais e pela Convenção da OIT n.º 131, direitos que por essa via não deixam de ser tutelados pela própria Lei Básica no seu artigo 40º, decorre, face à factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho entre a autora e a ré, em que esta, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções daquela, começou a trabalhar na área de actividade ligada à exploração de jogos de fortuna ou azar”.
Concordamos com a posição e nada mais temos a acrescentar-lhe.
No que se refere ao valor do salário, pergunta-se: Será que ele apenas é constituído pela parte fixa ou também englobará a parte variável em resultado das gorjetas?
Também neste ponto estamos de acordo com a posição deste TSI, no sentido de que as gorjetas não foram sendo atribuídas a título de mera liberalidade. A liberalidade, em princípio, para assim ser entendida, não deveria ter sido atribuída com carácter de regularidade. E o que está demonstrado nos autos é, precisamente, o contrário.
Depois, não eram gorjetas que o trabalhador do casino guardava para si vindas directamente do cliente apostador. Se assim fosse, poderia dizer-se que o empregador a elas era totalmente alheio, que nenhuma interferência exercia nem na sua distribuição, nem no seu quantitativo e que, portanto, apenas pagava ao seu subordinado o valor remuneratório previamente determinado. Mas não. Eram somas de dinheiro que o trabalhador recebia, sim, mas que tinha que entregar à sua entidade patronal, de quem, posteriormente, apenas recebia uma parte. Locupletamento à custa alheia seria a situação se, tendo o jogador entregue pessoalmente o dinheiro ao trabalhador, a entidade patronal dela, sem mais, se apropriasse totalmente. Mais, haveria aí uma manifesta superioridade de parte a roçar a ilicitude se, contra a vontade do empregado, este fosse obrigado a abrir mão daquilo que o jogador voluntariamente lhe tinha dado. Nenhuma relação laboral assente numa base lícita toleraria tal atitude de ingerência na vida do trabalhador por parte do empregador se não tivesse havido entre ambos um acordo que permitisse a distribuição das gorjetas, que não haviam sido dadas a este, mas àquele. Só um modelo de distribuição pré-determinado confere licitude à acção do empregador. Mas, ao mesmo tempo que assim acontece, não podemos deixar de pensar que, afinal, a entidade empregadora tinha alguma margem de superioridade nessa relação, pois era ela quem geria o dinheiro e, posteriormente, o distribuía segundo um esquema para o qual nenhuma contribuição o trabalhador dera. Ou seja, há aqui assim uma atitude que é própria da supremacia do empregador e que revela bem que este não era um simples “guardador” ou mero “depositário” do dinheiro proveniente das gorjetas.
De resto, mal se compreenderia que qualquer trabalhador aceitasse trabalhar por tão poucas patacas diárias (a parte fixa), se não soubesse que, a elas, acresceria uma quantia bem mais razoável em resultado da distribuição da soma de todas as gorjetas recebidas por si e pelos restantes colegas do casino. Se o salário tem uma função social, que visa conferir dignidade de vida ao trabalhador e ao seu agregado familiar, e de que o empregador dos tempos modernos já não pode alhear-se, então parece que esta entrega permanente ao trabalhador de dinheiro recebido do jogador não pode deixar de ter um sentido remuneratório.
E neste quadro, todos – jogadores, trabalhadores e empregador - ficam bem. Os primeiros, porque satisfeitos, cumprem o seu desejo de generosidade e altruísmo (mas é questão que aqui não tem valor jurídico); os segundos, porque, ao cabo e ao resto, vêem devidamente compensado o resultado do seu trabalho; e o último, porque vê feliz e empenhado o seu empregado, a quem vai pagar com dinheiro que nem sequer sai do seu bolso.
E, já agora, não deixaria de ser contraditório e injusto, e por isso mal se perceberia, que a reclamada “unidade do sistema” consentisse que, para efeito de salário, a gorjeta assim distribuída ficasse de fora do conceito, enquanto para efeito tributário já passasse a ser considerada como “rendimento do trabalho variável” (cfr. art. 2º, Lei n. 2/78/M, de 25 de Fevereiro).
Tudo isso, para concluir que a composição do salário, através de uma parte fixa e outra variável, admitida pelo DL n. 101/84/M, de 25/08 (arts. 27º, n.2 e 29º) e pelo DL n. 24/89/M, de 3/04 (arts. 25º, n.2 e 27º, n.1) permite a integração das gorjetas na segunda.
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E se é para nós questão ultrapassada a de que o salário integra uma parte fixa e outra variável, o problema agora é como calculá-lo: se ao dia, se ao mês e qual o seu valor.
Verdade que o trabalhador recebia uma quantia fixa diária. Verdade também que nos dias em que não trabalhava não recebia remuneração. Todavia, a ausência de remuneração nesses dias não advém de qualquer acordo prévio.
Aliás, a questão está consolidada neste TSI em termos tais que deles não somos capazes de divergir. Veja-se, por exemplo, o que foi dito no Ac. de 14/09, no Rec. N. 407/2006:
  “…a “quota-parte” de “gorjetas” a ser distribuída ao Autor, em montante definido unilateralmente pela Ré, integra precisamente o salário mensal do Autor, pois caso contrário e vistas as coisas à luz de um homem médio colocado na situação concreta do ora Autor, ninguém estaria disposto a trabalhar por conta da Ré em tantos anos seguidos nos seus casinos em horários de trabalho por esta fixados…ou seja, em horários de turnos necessariamente árduos para qualquer pessoa humana, se tivessem de ser cumpridos continuadamente em anos seguidos, sabendo entretanto, de antemão, que a prestação fixa do seu salário era de valor muito reduzido”.
E também o Ac. de 15/07/2010, Proc. n. 928/2010:
“…o qual o trabalhador estava obrigado a trabalhar por turnos de seguinte forma:
1º e 6º turnos: das 07h00 às 11h00, e das 03h00 às 07h00;
3º e 5º turnos: das 15h00 às 19h00, e das 23h00 às 003h00 do dia seguinte;
2º e 4º turnos: das 11h00 às 15h00, e das 19h00 às 23h00
Como se sabe, é por imposição legal e pelos termos do contrato de concessão para exploração dos jogos de fortuna e azar que os casinos têm de funcionar ininterruptamente durante 24 horas. Ora, se é compreensível e justificável a fixação dos turnos, nos termos que vimos supra, pela entidade patronal para fazer face à necessidade de assegurar o funcionamento contínuo legalmente imposto dos seus casinos, já custa perceber como é quê é possível os seus trabalhadores afectados aos casinos, em vez de auferirem um salário mensal, que é única forma de pagamento conciliável com a organização dos turnos durante 24 horas para assegurar a continuidade do funcionamento dos casinos, auferirem antes um salário diário determinado em função do número de dias de trabalho em que quis trabalhar e efectivamente prestou serviço. Na verdade, basta dar uma vista de olhos aos turnos fixados e à forma como os turnos estão organizados e distribuídos durante as 24 horas, em especial o 5º turno que se inicia às 23h00 num dia e termina às 03h00 de madrugada no dia seguinte, já se apercebe da impossibilidade prática de determinar o período de trabalho diário para efeitos de cálculo do alegado salário diário”.
Assim sendo, tal como este TSI tem admitido em casos similares, é de considerar que o salário era mensal, para cujo apuramento médio diário entrará o valor conjunto da parte fixa e da variável, tal como feito nos autos.
Neste sentido, merece censura a sentença sob recurso.
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Como calcular, então, a compensação, tendo em atenção a prescrição acima decidida?
a) Descanso semanal
Na vigência do DL nº DL n. 101/84/M

Nada está em causa no recurso no que respeita ao período da relação laboral abrangido pelo DL nº 101/84/M. A sentença entendeu que nada era devido ao abrigo desse diploma e o recorrente conformou-se com o decidido.
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Na vigência do DL n. 24/89/M
Vale aqui o disposto no art. 17º, n.1, 4 e 6, al. a).
Assim:
N.1: Tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”).
N.4: Mas, se trabalhar nesse dia, fica com direito a gozar outro dia de descanso compensatório e, ainda,
N.6: Receberá em dobro da retribuição normal o serviço que prestar em dia de descanso semanal.
Ora, como o trabalhador trabalhou o dia de descanso semanal terá direito ao dobro do que receberia, mesmo sem trabalhar (n.6, al. a)).
Numa 1ª perspectiva, se o empregador pagou o devido (pagou o dia de descanso), falta pagar o prestado. E como o prestado é pago em dobro, tem o empregador que pagar duas vezes a “retribuição normal” (o diploma não diz o que seja retribuição normal, mas entende-se que se refira ao valor remuneratório correspondente a cada dia de descanso, que por sua vez corresponde a um trinta avos do salário mensal).
Numa 2ª perspectiva, se se entender que o empregador pagou um dia de salário pelo serviço prestado, continuam em falta:
- Um dia de salário (por conta do dobro fixado na lei), e ainda:
- O devido (o valor de cada dia de descanso, que não podia ser descontado, face ao art. 26º, n.1);
Portanto, a fórmula será sempre: AxBx2, diferentemente do que o concluiu a sentença, pois fixou o factor 1.
Posto isto, considerando o mapa de fls.18 da sentença, os dias a considerar ali estabelecidos, o valor diário fixado no art. 1º da Base Instrutória e o factor 2 aplicável, a indemnização apurada ascende a MOP $ 89.714,00.
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b) Descanso anual
A sentença procedeu ao cálculo da indemnização, aplicando o factor 1 tanto no caso do DL nº 101/84/M, como no do DL nº 24/89/M.
O recorrente não impugna a sentença no que concerne à fórmula de cálculo, aceitando assim o factor aplicado na fórmula. Todavia, haverá que, mesmo assim, reavaliar o valor indemnizatório, face à divergência que este TSI manifesta em relação ao valor salarial diário a considerar.
Assim, quanto ao âmbito de aplicação do DL nº 101/84/M, e levando em linha de conta o mapa de fls. 19 da sentença, no que se refere aos dias ali estabelecidos, bem como o valor diário de salário devido (resposta ao art. 1º da BI), temos o valor indemnizatório de MOP$ 2.497,00.
E quanto ao âmbito de aplicação do DL nº 24/89/M, partindo dos dados incluídos no mapa de fls. 21 da sentença (que apenas alteraremos no que concerne ao valor diário remuneratório, temos apurado o valor de MOP$ 5.182,50.
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c) Feriados obrigatórios
Na vigência do DL n. 101/84/M
A sentença não atribuiu qualquer valor indemnizatório. Ora, como o trabalhador interessado não recorreu da sentença nessa parte, está o TSI impedido de se pronunciar sobre o tema (cfr. art. 589º, nº4, do CPC).
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Na vigência do DL n. 24/89/M
Esta lei trouxe inovações: introduziu uma indemnização especial, chamemos-lhe assim, que a lei anterior não previa e alargou o leque dos dias feriados remunerados, pois aos previstos na lei anterior, somaram-se agora os três dias do Ano Novo Chinês (cfr. art. 19º, n.3). Portanto, o gozo desses dias é feito, não apenas sem perda de remuneração (já era assim na lei anterior), como ainda deve ser extraordinariamente compensado.
Se o trabalhador prestar serviço nesses dias, diz o diploma, além da remuneração normal, receberá ainda um acréscimo salarial não inferior ao dobro da retribuição normal (art. 20º, n. 1). O que quer dizer não inferior? Quer dizer que pode ser igual, mas não descer desse limite. E até pode ser superior, mas nesse caso só o empregador poderá fixar o valor, singularmente ou por acordo com o empregado. O que não pode é o tribunal, arbitrariamente subir acima dessa barreira.
Aqui chegados, de novo pensemos nas duas perspectivas acima avançadas: a de o trabalhador ter sido pago pelo valor do devido e a de ter sido remunerado pelo valor do serviço prestado. É bom que se equacionem estas duas acepções para se ver até que ponto a solução pode diferir.
1ª Perspectiva (pagamento do devido)
O empregador pagou ao trabalhador o valor remuneratório que, pela lei, sempre lhe seria devido (ou seja, pagou a “remuneração correspondente aos feriados…”: art. 19º, n.3, até porque não lhos podia descontar: art.26º, n.1).
Sendo assim, falta pagar ao trabalhador o seguinte: a remuneração do trabalho efectivamente prestado (um dia de salário), mais um acréscimo em dobro, nos termos do art. 20º, n. 1(mais dois dias). Tudo perfaz 3 (três) dias de valor pecuniário.
2ª Perspectiva (pagamento do prestado)
Nesta óptica, o empregador o que fez foi pagar ao trabalhador em singelo o valor do serviço prestado.
Todavia, falta pagar o acréscimo em dobro (2 x salário) e ainda o valor do devido (um dia). Tudo perfaz 3 (três) dias de valor pecuniário.
Como se vê, qualquer que seja o prisma por que se encare a situação, o resultado é o mesmo. A fórmula é, em ambas, salário diário x 3, ao contrário do que o decidiu a sentença recorrida, que aplicou o factor 2.
Assim, fazendo incidir o valor diário a considerar (resposta ao art. 1º da BI) e o factor 3 na fórmula de cálculo, tendo em atenção o mapa de fls. 19 da sentença), alcançaremos o valor indemnizatório de MOP$ 13.500,00.
O que tudo perfaz a quantia global de MOP$ 110.893,50.
***

IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, revogando a sentença na mesma medida e, em consequência, condenam a STDM a pagar ao autor da acção a indemnização global de MOP$110.893,50, a que acrescerão os juros de mora calculados pela forma decidida pelo TUI no seu acórdão de 2/03/2011, no processo n. 69/2010.
Custas pelas partes em ambas as instâncias na proporção do decaimento.

TSI, 01 / 12 / 2011



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José Cândido de Pinho
(Relator)

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Lai Kin Hong (Com declaração de voto)
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)




















Processo nº 796/2010
Declaração de voto

Subscrevo o Acórdão antecedente à excepção da parte que diz respeito à existência dos direitos do trabalhador à compensação e aos factores de multiplicação para efeitos de cálculos de indemnização pelo trabalho prestado nos descansos semanais e anuais e nos feriados obrigatórios, em tudo quanto difere do afirmado, concluído e decidido, nomeadamente, nos Acórdãos por mim relatados e tirados em 27MAIO2010, 03JUN2010 e 27MAIO2010, nos processos nºs 429/2009, 466/2009 e 410/2009, respectivamente.

RAEM, 01DEZ2011

O juiz adjunto


Lai Kin Hong