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Processo n.º 3 / 2005
Recurso de Decisão Jurisdicional em Matéria Administrativa
Data da conferência: 29 de Junho de 2005
Recorrente: A
Recorrido: Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura


Principais problemas jurídicos:
– Processo disciplinar
– Nulidade da sentença por falta de fundamentos de facto
– Competência do TUI sobre o julgamento da matéria de facto pelo TSI
– Excesso de pronúncia
– Dever de isenção
– Princípio da igualdade
– Princípio da presunção de inocência
– Dever de lealdade



SUMÁRIO

   Em recurso jurisdicional de decisões de processo contencioso administrativo, o Tribunal de Última Instância só aprecia, em princípio, questão de direito e não de facto.
   
   Neste tipo de recursos, o Tribunal de Última Instância não pode, em princípio, censurar a convicção formada na apreciação de provas pelo Tribunal de Segunda Instância, mas apenas o processo de formação da convicção. Isto é, controlar a conformidade legal do processo de apreciação de provas e fixação de factos provados.
   
   No recurso contencioso, não devem ser tomados em conta os factos novos trazidos na fase das alegações que não sejam de conhecimento superveniente.
   
   Não há violação do dever de lealdade previsto no art.° 279.°, n.° 2, al. d) do ETAPM a prestação de falsas declarações por arguido no processo disciplinar com o objectivo de se eximir ou aliviar a sua responsabilidade, sem prejuízo de ser considerada como uma circunstância normal.


O Relator: Chu Kin
Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau




Recurso de decisão jurisdicional em matéria administrativa
N.° 3 / 2005

Recorrente: A
Recorrido: Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura






1. Relatório
   A recorrente A interpôs recurso contencioso perante o Tribunal de Segunda Instância do despacho do Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura de 28 de Outubro de 2003 que lhe aplicou sanção disciplinar.
   Por acórdão de 23 de Dezembro de 2004 proferido no processo n.° 299/2003, o Tribunal de Segunda Instância negou provimento ao recurso contencioso.
   Deste acórdão vem agora A recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões da alegação:
   “1. O Tribunal a quo não fez a especificação dos factos considerados provados, limitou-se a transcrever integralmente o despacho punitivo, uma exposição da arguida em que se defenda das imputações feitas, uma carta da arguida dirigida ao Sr. Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura em que dá a explicação de alguns factos por si alegados e o relatório do p.i.
   2. Esta reprodução integral não vale como especificação dos factos que se consideram provados e era necessário que o Tribunal indicasse quais os factos que deu por assentes, qual o substrato da operação de subsunção própria da sentença; sem esta fixação dos factos não era possível ao Tribunal fazer uma rigorosa aplicação do silogismo judiciário.
   3. Não tendo observado este requisito formal das sentenças, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 76.º do CPAC, e com isso fez inquinar de nulidade o acórdão recorrido, nos termos do art.º 571.º, n.º 1, al. b) do CPC, uma vez que à falta de norma específica no processo administrativo, se deverá aplicar aquela norma supletivamente nos termos do art.º 1.º do CPAC.
   4. Mas uma coisa é faltar à verdade numa situação em que apenas fica em causa o valor objectivo da verdade, outra bem diferente é fugir à verdade para defraudar a lei.
   5. Só a segunda hipótese é que assume gravidade necessária para ser considerada como infracção disciplinar e permitir a perseguição disciplinar do infractor, isto porque só nesta hipótese é que a recorrente não teria direito ao subsídio de família relativo ao seu pai e só o obteve por meios fraudulentos;
   6. Não era suficiente chegar-se à conclusão de que houve uma manifesta desconformidade entre os rendimentos auferidos pelo pai da recorrente e os que foram por esta declarados; era necessário ir mais longe e provar-se que os rendimentos do pai da recorrente eram de facto superiores ao valor de metade do índice 100;
   7. O acórdão recorrido, na parte e na medida em que dele resulta o entendimento de que basta esta desconformidade entre os rendimentos auferidos pelo pai da recorrente e os rendimentos declarados por esta, sem se apurar efectivamente se aqueles rendimentos eram ou não superiores ao valor estabelecido no n.º 1 do art.º 208.º do ETAPM para que se esteja perante uma infracção disciplinar, não pode deixar de incorrer em erro de direito por violação do n.º 1 do preceito acabado de referir, bem como do art.ºs 281.º e 279.º do mesmo diploma;
   8. Na hipótese de se considerar que o acórdão recorrido deu como provado que o rendimento efectivamente auferido pelo pai da recorrente era superior a metade do valor do índice 100 e, por conseguinte, que a recorrente apenas obteve a atribuição do subsídio por recurso a falsas declarações, e nessa medida tendo incorrido na infracção disciplinar com base na qual foi punida, então, também, não pode deixar de se afirmar que o acórdão recorrido violou o princípio geral do processo administrativo da repartição do ónus da prova objectivo, assim como o princípio in dubio pro reo.
   9. Deve caber à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais vinculativos da sua actuação, designadamente se estivermos no campo da administração agressiva, positiva e desfavorável; e, pelo contrário, deverá caber ao administrado a prova da ilegalidade do acto, quando se mostrem verificados aqueles pressupostos;
   10. No exercício do poder disciplinar e, portanto, no âmbito do que se designa por administração agressiva e desfavorável, o princípio in dubio pro reo e os princípios conformadores da actividade administrativa, maxime os princípios da legalidade e da juridicidade, não podem deixar de impor aqui uma repartição do ónus da prova no sentido de impor à entidade recorrida o encargo de provar os pressupostos legais da sua actuação agressiva e neste sentido de provar a legitimidade da sua actuação, sob pena de ser ela a sofrer os riscos da falta dessa prova, isto é, de não conseguir ver verificados os pressupostos da sua actuação e, consequentemente, de ter de suportar os efeitos de uma anulação do acto em causa;
   11. O Tribunal a quo, para afirmar que havia uma desconformidade entre o rendimento declarado do pai e o seu rendimento efectivo, fez recurso a várias presunções judiciais;
   12. Na medida em que se entenda que o acórdão deu por assente que o rendimento do pai era superior a metade do índice 100 da tabela indiciária da função pública, e ao fazê-lo com base nas presunções judiciais, para afirmar que a recorrente prestou falsas declarações para obter um subsídio a que não tinha direito, o acórdão recorrido violou o principio da repartição do ónus da prova objectivo, assim como o principio in dubio pro reo;
   13. E mesmo que se não aceite em toda a extensão o que se acaba de sustentar, ainda assim o acórdão recorrido, por uma outra razão, não pode deixar de merecer censura, dado que violou um princípio fundamental do processo em geral e do processo administrativo em particular, o princípio da estabilidade objectiva da instância.
   14. O tribunal a quo entendeu que: «A entidade recorrida elabora ainda, a partir do facto de o pai da recorrente, enquanto detentor de um consultório proceder anualmente em Hong Kong ao registo comercial e ao pagamento das taxas de registo e do tributo desde Outubro de 1990 até 31 de Maio de 2003. Ora, podendo o contribuinte, nos termos do disposto no Registo Comercial de Hong Kong, no caso de o volume de negócios não exceder HKD$10.000,00, pedir a dispensa do registo comercial, das taxas de registo e do respectivo tributo com o fundamento no pouco volume de negócios, não tendo o pai da recorrente pedido tal isenção, importa concluir no sentido do auferimento de rendimentos superiores». Este argumento serviu, a par de outros, para sustentar que o despacho punitivo não padecia do vício invocado pela recorrente de violação de lei por erro nos pressupostos de facto.
   15. Estes dados de facto foram apenas alegados pela entidade recorrida nas suas contra-alegações, no sentido de reforçar a sua argumentação no sentido de que o pai da recorrente auferia rendimentos superiores a metade do índice 100 da tabela indiciária da Função Pública;
   16. O Tribunal a quo aderiu acriticamente a esse argumento e aos dados de facto nele utilizados;
   17. De acordo com o princípio da estabilidade objectiva da instância, o pedido e a causa de pedir fixam-se, em regra, no início do processo; e se esta exigência vale para o recorrente, para aquele que submete o pedido de anulação de um acto ao tribunal, também não pode deixar de valer para a entidade recorrida, que no processo pugna pela legalidade do acto e por uma decisão de não provimento do recurso;
   18. O Tribunal a quo, sob pena de desvirtuamento completo do princípio da estabilidade objectiva da instância, não deveria ter considerado e utilizado este argumento, principalmente quando ele influiu decisivamente, como se vê pelo texto do acórdão, na decisão do Tribunal;
   19. Nessa medida o acórdão recorrido violou o princípio da estabilidade objectiva da instância, o que não pode deixar de inquinar de nulidade o acórdão recorrido.
   20. O mesmo segmento do acórdão, e numa outra perspectiva, não deixa de estar em conflito com regras relativas à repartição do ónus da prova e à produção da prova.
   21. O acórdão diz-se o seguinte: «podendo o contribuinte, nos termos do disposto no Registo Comercial de Hong Kong, no caso de o volume de negócios não exceder HKD$10.000,00, pedir a dispensa do registo comercial, das taxas de registo e do respectivo tributo com o fundamento no pouco volume de negócios, não tendo o pai da recorrente pedido tal isenção, importa concluir no sentido do auferimento de rendimentos superiores»;
   22. A entidade recorrida invoca «direito exterior à Região Administrativa Especial de Macau» e não prova a sua existência e conteúdo e tendo o Tribunal recorrido dado como provado aquele facto, sem que o mesmo tivesse sido provado pela entidade recorrida e sem que o Tribunal tivesse dado mostras de ter procurado obter, oficiosamente, o respectivo conhecimento, o acórdão recorrido violou as regras relativas à produção da prova constantes do art.º 341.º do CC;
   23. A recorrente quando pediu receitas médicas a médicos conhecidos e amigos não estava vinculada a nenhum dever funcional, sem ter marcado previamente a respectiva consulta, não cometeu qualquer ilícito disciplinar dado que ela intervinha na qualidade de utente dos serviços de saúde, como qualquer titular desse direito, e não como enfermeira;
   24. E a comprovar que a recorrente, com aquele seu comportamento, não cometeu qualquer infracção disciplinar, está o facto de os médicos que passaram as receitas à recorrente não terem sido perseguidos disciplinarmente; na verdade, se houve alguém que violou com a sua actuação deveres funcionais, esses, sim, só podiam ser os médicos, dados que esses é que intervieram no exercício da sua função de médicos;
   25. Razão por que, ao não ter aceitado o Tribunal a quo a alegação do vício de violação de lei por erro de direito nos pressupostos, padece o mesmo de erro de direito por errada interpretação das normas do art.ºs 281.º e 300.º do ETAPM;
   26. Se só os médicos intervieram como tais, isto é, praticando verdadeiros e se a enfermeira apenas obteve as receitas médicas com o concurso dos médicos que lhas passaram, a perseguição disciplinar apenas da recorrente sem a responsabilidade correlativa dos médicos, faz com que o acto punitivo não possa deixar de ser uma expressão do absurdo, totalmente carecida de razoabilidade, sem qualquer fundamento e, portanto, um arbitrário;
   27. Não está aqui em causa, como se afirma no douto acórdão, uma pretensão de igualdade na ilegalidade, mas antes a afirmação de uma decisão absurda, sem fundamento, irracional, arbitrária e, consequentemente a sua anulação com base neste fundamento;
   28. Razão por que se entende que, tendo o acórdão recorrido dado como improcedente o vício invocado, não pode deixar o mesmo de ter violado, nesta outra vertente, o princípio da igualdade, no seu sentido de proibição do arbítrio.
   29. O tribunal a quo procedeu à degradação da questão que lhe foi colocada em termos de considerar as falsas declarações prestadas pela arguida no âmbito do processo disciplinar, não como constituindo uma infracção disciplinar, como foi qualificada pela entidade recorrida, mas como uma circunstância a “ser levada em conta em termos de punição”;
   30. E não especificou quais as razões com base nas quais decidiu assim; nessa medida ao ter decidido como decidiu, não especificando como devia os fundamentos da decisão, o acórdão está eivado da nulidade do art.º 571.º, n.º 1, al. b) do CPC;
   31. Além disso, mesmo que assim não se entenda, ainda assim o acórdão comete uma grave violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do seu direito fundamental de defesa;
   32. O acórdão recorrido entendeu que as falsas declarações prestadas em processo disciplinar, ainda que não possam constituir matéria consubstanciadora de nova infracção, «poderá ser levada em conta em termos de punição, tal como, em sede penal, não é indiferente o arguido ter ou não confessado ou auxiliado o tribunal na descoberta da verdade»;
   33. Asserção esta que constitui uma gravíssima violação dos direitos conformadores do estatuto processual do arguido.
   34. Entre nós, e desde há muito que se entende que o princípio «nemo tenetur se accusare» e o consequente direito ao silêncio do arguido são peças essenciais do direito fundamental de defesa e que o arguido não pode ser juridicamente desfavorecido pelo facto de exercer o seu direito ao silêncio;
   35. E o mesmo se diz quanto à mentira por parte do arguido relativamente à matéria que lhe é imputada, a título algum, poderá prejudicar o arguido, isto pela simples razão de que a lei não impõe ao arguido o dever de colaborar com a justiça e o fim da descoberta da verdade;
   36. A confissão espontânea do arguido deve favorecê-lo, mas o seu silêncio ou a falta à verdade relativamente à sua culpa nunca o poderá prejudicar, apenas não o pode favorecer;
   37. Ao entender que as falsas declarações da arguida no âmbito do processo disciplinar podem ser tomadas em conta em termos de punição, tal como, em sede penal, e ao admitir, sem o censurar, que o despacho punitivo levou em linha de conta na punição da arguida aquelas falsas declarações, violou o douto acórdão recorrido frontalmente o princípio da presunção de inocência do arguido e os seus direitos fundamentais de defesa. Razão por que não pode deixar de estar, nessa medida, afectado de nulidade substancial.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso, ordenada a baixa do processo ao Tribunal de Segunda Instância para reforma da decisão anulada ou proferida a decisão que conheça os vícios invocados.
   
   O recorrido concluiu, na sua alegação, pela conformidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância com as disposições de direito substantivo e subjectivo, inexistência de qualquer factor conducente à nulidade do acórdão, pedindo a manutenção da decisão recorrida com a negação do pedido da recorrida.
   
   A Magistrada do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância emitiu o seguinte parecer:
   “No seu recurso interposto para este Alto Tribunal de Última Instância, a recorrente suscita as seguintes questões:
   1. Nulidade do acórdão recorrido por falta de indicação dos factos considerados provados;
   2. Errada interpretação das normas dos art.ºs 281.º, 207.º a 209.º e 300.º do ETAPM;
   3. Violação do princípio da repartição do ónus de prova objectivo;
   4. Violação do princípio da estabilidade objectiva da instância;
   5. Violação das regras relativas à repartição do ónus da prova e da sua produção;
   6. Violação do princípio da igualdade na sua vertente de proibição do arbítrio;
   7. Nulidade da al. b) do art.º 571.º do CPC; e
   8. Violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do seu direito fundamental da defesa.
   Vamos começar por analisar as nulidades invocadas pela recorrente (art.º 74.º n.º 2 do CPAC).
   
   É verdade que, nos termos do disposto no art.º 76.º do CPAC (também no art.º 562.º n.º 2 do CPC), na sentença devem ser especificados os factos considerados provados pelo tribunal, sob pena da nulidade.
   No entanto, não é verdade que no douto acórdão recorrido não foram indicados os factos dado como provados, como resulta da simples leitura do mesmo, pois na sua parte “III – FACTOS”, o Tribunal de Segunda Instância enumera os factos tidos como assentes, fazendo consignar que “com pertinência, tem-se por assente a factualidade seguinte: ... ”.
   Admitindo que se trata de reprodução do teor dos vários documentos juntos aos autos, certo é que através de tal reprodução se discriminam, assim, os factos que o tribunal considera assentes, e pertinentes, para a resolução do presente caso concreto.
   Por outro lado, a recorrente não chegou a indicar, concretamente, quais são os factos que no seu entendimento deviam ser dados como provados.
   Daí que nos parece a sem razão da recorrente.
   E também deve julgar improcedente a invocação da nulidade, nos termos da al. b) do art.º 571.º do CPC, pela alegada não especificação dos fundamentos da decisão. No douto acórdão ora recorrido, o Tribunal entende que, apesar de que a recorrente não pode ser punida pela prestação de falsas declarações no âmbito de processo disciplinar por não constituir por si matéria de nova infracção, tal conduta “poderá e deverá ser levada em conta em termos de punição, tal como, em sede penal, não é indiferente o arguido ter ou não confessado ou auxiliado a tribunal na descoberta da verdade.”
   Ora, não nos parece que daí se pode concluir pela falta de fundamentação da decisão, já que a consideração da conduta (de prestar falsas declaração) da recorrente em termos da punição é tão evidente que não carece de maior fundamentação.

   A recorrente imputa a errada interpretação das normas do art.º 281.º do ETAPM, conjugadamente com as normas dos art.ºs 207.º a 209.º do mesmo diploma. Ao lado de admitir não ter dito a verdade nas declarações sobre o rendimento dos seus pais para efeito de concessão de subsídio de família, alega a recorrente que “uma coisa é faltar à verdade numa situação em que apenas fica em causa o valor objectivo da verdade, outra bem diferente é fugir à verdade para defraudar a lei”, pois que só nesta segunda situação “assume a gravidade necessária para ser considerada como infracção disciplinar e permitir a perseguição disciplinar do infractor”.
   Salvo o devido respeito, não podemos acompanhar este entendimento. Sem necessidade de entrar aqui na discussão sobre o valor do rendimento auferido pelo pai da recorrente (se o mesmo é, ou não, superior ao limite fixado na lei para a concessão de subsídio), certo é que a recorrente, sob compromisso de honra, prestou efectivamente falsas declarações com vista a obter aquele subsídio, pondo em causa a dignidade e honestidade de que os funcionários públicos gozam bem como o prestígio da Administração Pública, violando os deveres gerais impostos para os funcionários públicos, o que já é, a nosso ver, bastante para instaurar processo disciplinar contra ela.
   Por outro lado, resulta dos autos que, aproveitando o facto de exercer funções de enfermeira no CHCSJ, a recorrente obteve, de forma irregular, consultas e receitas médicas para si e para os seus familiares.
   Os procedimentos adoptados pela recorrente para a acessibilidade aos cuidados de saúde decorrem das suas funções de enfermeira, qualidade esta que não lhe deixa de impor certos deveres funcionais.
   As condutas acima referidas são susceptíveis de processo disciplinar, pela violação dos deveres gerais imputada à recorrente nos autos.
   Não se verifica a violação das normas indicadas pela recorrente.

   Em relação à violação do princípio da repartição do ónus de prova objectivo, afigura-se-nos que se trata de uma questão nova, não suscitada pela recorrente no recurso contencioso. Como se sabe, “os recursos jurisdicionais para o Tribunal de Última Instância não visam criar decisões sobre matérias novas, pelo que se a questão não foi posta no recurso para a instância inferior, não se pode da mesma conhecer, a menos que se trate de matéria de conhecimento oficioso”. (cfr. Ac. do TUI, de 27-12-2002, proc. n.º 12/2002)
   Não sendo de conhecimento oficioso, a questão ora levantada pela recorrente não deve ser objecto do conhecimento do TUI.
   Se assim não for entendido, temos a dizer o seguinte:
   É verdade que existe uma repartição dos riscos da falta de prova, a suportar por quem alegar os factos, cabendo à Administração a prova dos factos que invoca como pressupostos do acto administrativo.
   Conforme Vieira de Andrade, “parece que há-de caber, em princípio, à Administração o ónus da prova da verificação dos pressupostos legais (vinculativos) da sua actuação, designadamente se agressiva (positiva e desfavorável); em contrapartida, caberá ao administrado apresentar prova bastante da ilegalidade do acto, quando se mostrem verificados esses pressupostos.
   Por outras palavras ainda, deve ser a Administração a suportar a desvantagem de não ter sido feita a prova (de o juiz não se ter convencido) da verificação dos pressupostos legais que permitem à Administração agir com autoridade (pelo menos, quando produza efeitos desfavoráveis para os particulares); deve ser o particular a suportar desvantagem de não ter sido feita a prova (de o juiz não se ter convencido) de que, no uso dos poderes discricionários, a Administração actuou contra os princípios jurídicos fundamentais”. – A Justiça Administrativa (Lições), 6ª Edição, pág. 456.
   No entanto, a questão tem que ser analisada no caso concreto.
   Ainda conforme aquele mestre, “a repartição do ónus da prova, para além dos casos em que o legislador opte por regras escritas, constituirá, também ela, um problema normativo, a decidir em última análise pelo juiz, a partir da aplicação das regras processuais básicas, de maneira que pode até representar, afinal, um aspecto diferenciado e motivável no processo de formação da convicção íntima (esclarecida) do juiz”.
   No caso sub judice, apesar de que alguns elementos que apoiaram a imputação à recorrente das infracções disciplinares não foram apresentados pela Administração, nada impede que a Administração faça analise dos mesmos, servindo-os para fundamentar a sua acusação.
   Sucede que dos elementos constantes do processo disciplinar, incluindo os apresentados pela própria recorrente, já se pode tirar conclusão no sentido de “a recorrente não reunir os requisitos para que lhe fosse atribuído o subsídio de família, ter prestado falsas declarações com o intuito de o manter, ter recorrido a expedientes conexionados com o exercício das suas funções para, no seu interesse e os seus familiares, obter acesso ilegítimo a cuidados de saúde, ter emprestado o cartão de acesso aos cuidados de saúde do pai a terceiros, a fim de ser usado na obtenção de receitas médicas e ter efectuado trocas de medicamentos prescritos por outros medicamentos, nas farmácias locais, ... ”, tal como foi frisado pelo Magistrado do MP no seu parecer dado no recurso contencioso.
   E o tribunal ora recorrido, depois de ter analisado devidamente os elementos carreados aos autos, também chegou à mesma conclusão.
   Acresce que da matéria dos autos se pode tirar ilações, através das regras de experiência.
   Não obstante a possibilidade de ser ilidida a presunção judicial, certo é que a recorrente não apresentou contraprova a fim de afastá-la.

   O princípio da estabilidade objectiva da instância é uma manifestação tradicional do princípio do dispositivo, “segundo o qual o pedido e a causa de pedir – que, juntamente com o objecto, delimitam a “instância” – são, em regra, determinados no início do processo, designadamente na petição inicial, mantendo-se a partir do despacho liminar de aceitação até à decisão final”.
   No entanto, este princípio não vale inteiramente no processo administrativo, sofrendo limitações importantes. (cfr. obra citada, pág. 435)
   Salvo o devido respeito, não nos parece que se pode colocar aqui a questão de violação do princípio em causa, que se refere à delimitação da “instância” pela iniciativa e actuação da recorrente.
   No caso sub judice, constata-se que o pedido e a causa de pedir inicialmente formulados se mantêm inalterados durante o decurso do processo.
   Nada impede que o tribunal utiliza os elementos constantes dos autos, mesmo aqueles suscitados pela entidade recorrida nas contra-alegações, servindo como meros argumentos para fundamentar a decisão.

   No que tange à violação das regras relativas à repartição do ónus da prova e da sua produção, a recorrente aponta para a falta de prova quanto à existência e ao conteúdo dum direito exterior à RAEM, não sendo provado que em Hong Kong e no caso de o volume de negócio não exceder HKD$10.000,00, é permitido ao contribuinte pedir a dispensa do registo comercial, das taxas de registo e do respectivo tributo.
   Ora, não nos parece que se está perante um elemento que necessariamente carece de provar, uma vez que basta uma simples investigação (por exemplo, no sistema informático) para apurar se existe a respectiva norma que confere a contribuintes tal direito.

   Com a invocação do princípio de igualdade, a recorrente pretende, no fundo, eximir à sua punição.
   No entanto, a argumentação por si deduzida não pode produzir o efeito pretendido.
   A responsabilidade da recorrente tem que ser vista autonomamente, desde que resulta dos autos matéria suficiente para a sua punição, sendo certo que, mesmo não seja imputada a médicos qualquer infracção disciplinar, tal não afasta a responsabilidade disciplinar da recorrente.
   Tal como frisa o Magistrado do MP no seu parecer dado no recurso contencioso, “não se quer com isto dizer que não possa, eventualmente, caber àqueles médicos alguma quota parte de responsabilidade nos factos detectados. Só que tal responsabilidade, a existir, não terá o condão de afastar a culpa própria da recorrente na violação dos deveres funcionais a tal propósito verificada”.

   Finalmente e relativamente à violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do seu direito fundamental da defesa, alega a recorrente que, ao levar em conta em termos de punição as falsas declarações prestadas no processo disciplinar, o Tribunal a quo violou os direitos conformadores do estatuto processual do arguido.
   É verdade que assiste ao arguido o direito de manter silêncio ou de prestar declarações, não tendo a lei imposto o dever de responder com verdade.
   No entanto, a circunstância da lei não ter exigido do arguido o cumprimento do dever de verdade não significa que lhe assista um direito de mentir.
   Se a confissão do arguido deve ser ponderada para efeitos de punição, evidentemente e pela mesma lógica, a conduta de prestar falsas declarações no processo também não pode deixar de ser levada em conta.
   Improcedem os argumentos da recorrente.
   Pelo exposto, e uma vez que não nos parece ocorridos nos autos os vícios invocados pela recorrente, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados os seguintes factos pelo Tribunal de Segunda Instância:
   É do seguinte teor o despacho de 28 de Outubro de 2003 do Exmo. Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura (ora como entidade administrativa requerida), do qual foi oportunamente interposto recurso contencioso, nos autos que correm neste Tribunal sob o n.º 299/2003 e a que estes se mostram apensos:
   “No Processo Disciplinar n.º 2/GAJ/2003 contra a enfermeira-graduada, A, foram apurados pelos Serviços de Saúde (SS) os seguintes factos (cfr. relatório constante de fls.318 a 326 dos respectivos autos):
   Tendo a enfermeira-graduada, A, prestado, desde Julho de 1990, falsas declarações sobre a situação dos seus familiares para enganar a atribuição dos respectivos subsídios de família e aproveitado as suas funções desempenhadas nos SS para arranjar facilidades no tratamento médico de si própria e dos seus familiares beneficiários, criando desigualdades para outras pessoas. Apesar de a enfermeira A ter confessado que tinha emprestado o cartão de acesso a cuidados de saúde do pai dela a outra pessoa para esta usar na passagem da receita médica e que sabia muito bem que este acto é proibido por lei, prestou, todavia, falsas declarações por várias vezes no processo disciplinar para eximir as suas responsabilidades.
   A actuante agiu de forma livre e voluntária, violando gravemente os deveres gerais estipulados no n.º 2, al.s a), b ), c) e d), n.ºs 3, 4, 5 e 6 do art.º 279.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), os actos por ela praticados constituíram já a infracção disciplinar prevista pelo art.º 281.º do ETAPM, os que correspondem aos actos de indisciplina e a pena de demissão consagrados n o art.º 315.º, al. b) do ETAPM.
   Tendo ponderado que a enfermeira A trabalhou nos SS há mais de 15 anos, sendo iguais a “Muito Bom” ou “Bom” as pontuações obtidas aos longos dos anos na classificação de serviço, a enfermeira dispõe das circunstâncias atenuantes consagradas no art.º 282.º, al. a) do ETAPM, porém, dispondo também das circunstâncias agravantes constantes do art.º 283.º, n.º 1, al. h) do ETAPM, isto é, a acumulação de infracções, pelo que, nos termos do art.º 316.º, n.º s 1 e 2; art.º 314.º, n.º s 1 e 4; art.º 303.º, n.º 1 e n.º 2, al. c); e do art.º 9.º do Decreto-Lei n.º 59/94/M, usando das competências conferidas pelo art.º 322.º do ETAPM e pela Ordem Executiva n.º 14/2000, exaro o seguinte despacho:
   (1) Aplicar a pena de suspensão de serviço à enfermeira-graduada, A, por um período de 300 dias;
   (2) Cessar imediatamente o direito da enfermeira-graduada, A, à obtenção do subsídio de família dos pais;
   (3) Devolver todas as importâncias indevidas recebidas pela enfermeira-graduada, A, dentro dos 15 dias após a tomada do conhecimento deste despacho; e
   (4) Arquivar a cópia deste despacho no processo individual da enfermeira-graduada, A.
   
Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura
Chui Sai On
Aos 28 de Outubro de 2003”

   No âmbito do processo disciplinar acima referido instaurado contra a recorrente foi proferida a seguinte acusação:
   “Ao abrigo do despacho do Director dos Serviços de Saúde, de 10 de Abril de 2003, fui nomeado como instrutor para instaurar o processo disciplinar contra A, enfermeira-graduada, de nomeação definitiva da secção Estomatologia do Centro Hospitalar Conde de São Januário.
   Observadas as devidas formalidades jurídicas e efectuadas as diligências necessárias previstas no art.º 329.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (designado abaixo como ETAPM), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M, de 28 de Dezembro, bem como consultados e analisados os referidos autos e sem necessidade de adoptar nenhuma outra diligência suplementar por terem sido os elementos suficientemente verificados, venho acusar a arguida nos termos do art.º 332.º do ETAPM :
   1. Na investigação realizada no início do corrente ano à arguida A pelo Comissariado contra a Corrupção, verificou-se que a arguida estava suspeita de trocar as receitas médicas, passadas por médicos, por produtos de uso quotidiano nos últimos dois anos e, além das receitas médicas da própria arguida, as dos seus beneficiários familiares também foram usadas para trocar produtos de uso quotidiano. Aliás, o Comissariado contra a Corrupção também verificou que a arguida A estava suspeita de praticar outros crimes, pelo que, após a investigação, o Comissariado contra a Corrupção considerou que há indícios que demonstram que a arguida cometeu o crime de burla, o crime de aproveitamento indevido de segredo, o crime de falsificação de atestado e o crime de violação de segredo previstos respectivamente nos art.ºs 211.º, 190.º, 249.º e 348.º do Código Penal e, com base nisto, os Serviços de Saúde efectivam oficiosamente as responsabilidades disciplinares pela infracção administrativa.
   2. A arguida A negou toda a acusação acima referida.
   3. Em primeiro lugar, conforme os elementos obtidos, a arguida A e os seus beneficiários familiares obtiveram, durante o período entre Março de 2001 a Março de 2003, mais de cem receitas médicas passadas pelos médicos do Centro Hospitalar Conde de S. Januário, entre as quais, 54 são suspeitas de ser usadas para trocar os produtos de uso quotidiano (fls. 72 a 126). Além disso, os elementos também demonstram que os medicamentos não foram obtidos pelos arguida e seus beneficiários familiares através de meios regulares.
   4. Os meios irregulares acima ditos incluem: as consultas médicas da arguida e dos seus beneficiários familiares foram feitas sem a marcação de consulta. Embora a arguida A declarasse nos autos de declaração (fls. 196 e 197) que ela tinha procedido à marcação de consulta conforme o procedimento normal, vários médicos (Dr. B, Dr. C, Dr. D, Dra. E, Dr. F, Dr. G, Dra. H e Dra. I) afirmaram nas suas declarações que as consultas médicas da arguida e dos seus beneficiários familiares não foram feitas conforme o meio regular. Por outro lado, a maior parte dos médicos referiram que foi a arguida A que lhes solicitou pessoalmente a passagem das receitas médicas, e a maior parte dos medicamentos passados pelos médicos nas receitas médicas não foram registados devidamente nos registos de história clínica da arguida A e dos seus beneficiários familiares. Por último, há dois médicos (Dr. B e Dr. J) que confirmaram que eles tinham passado medicamentos ao pai da arguida que não estava em Macau. O mais grave é que, os medicamentos não foram passados conforme o diagnóstico médico e só segundo a solicitação da arguida A.
   5. De facto, os elementos também revelam os medicamentos passados nas receitas médicas. Quanto aos seus tipos, a alta frequência com que um médico especialista passou medicamentos não pertencentes ao seu âmbito também revela a situação irregular. Embora os médicos tenham competência para passar medicamentos não pertencentes ao seu âmbito, esta situação não deve ocorrer frequentemente, pelo que, tal situação só pode ser considerada como uma irregularidade mas não infracção administrativa. Quanto à sua quantidade, em conformidade com a quantidade passada e a dose indicada pelos médicos, a quantidade passada excedeu a dose tomada, isto pode revelar que os medicamentos foram passados pelos médicos com base na confiança da colega e a passagem dos mesmos, em geral, não foi controlada.
   6. Grande quantidade de elementos revelam a possibilidade de que a arguida A trocou as receitas médicas por produtos de uso quotidiano. Contudo, como os Serviços de Saúde não têm competências para examinar as contas da farmácia suspeita (porque os SS não são órgão judiciário), não conseguem comprovar o facto de a arguida ter trocado as receitas médicas por produtos de uso quotidiano. Nestes termos, segundo o princípio de “in dubio pro reo”, o instrutor considera improcedente o crime de burla acusado à arguida pela troca das receitas médicas por produtos de uso quotidiano. Entretanto, os elementos fornecidos pela arguida demonstram que o seu pai K é um médico especialista com autorização de exercício das funções em Hong Kong (fls. 196, 197 e 199), as condições dos seus pais não reuniam manifestamente os requisitos da atribuição do subsídio de família previstos no art.º 208.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (designado abaixo como ETAPM), pelo que, a arguida não tem direito a receber o subsídio de família devido ao facto de alimentos dos ascendentes e também por esta razão, os pais da arguida não podem obter os cartões de beneficiário de acesso a cuidados de saúde passados pela Administração de Macau.
   7. A arguida A alegou que quando ela pediu o subsídio de família, o seu pai tinha mais de 65 anos de idade, pelo que, a Divisão de Pessoal considerou que o seu pai já era reformado e satisfazia os requisitos legais e por esta razão, a sua mãe também reunia os respectivos requisitos. Conforme os autos de declaração prestados pelo chefe substituto da Divisão de Pessoal, ele nunca ouviu isto durante tantos anos de trabalho, pelo que, isto não é a verdade (fls. 266). Aliás, a arguida A também alegou que embora fosse médico especialista em Hong Kong, o seu pai oferecia consultas gratuitas aos doentes à quarta-feira e ao Domingo nos mais de dez anos. Como o seu pai exercia actividades médicas com o espírito de salvação dos doentes através dos seus conhecimentos profissionais e de oferecimento dos serviços e medicamentos gratuitos, o rendimento mensal era inferior a $2,000.00 após o desconto dos custos necessários, pelo que, ele satisfazia os requisitos do pedido do subsídio de família. Contudo, face à sua alegação, a arguida não conseguiu apresentar os documentos comprovativos na altura (fls. 263). Como a arguida não conseguiu apresentar os documentos comprovativos de imediato, segundo a regra da experiência, mesmo que o seu pai tenha fornecido dois dias das consultas gratuitas a cada semana, é impossível nem é lógico que o salário dum médico especialista em Hong Kong é inferior a $2,000.00. Nestes termos, a explicação da arguida não é aceite.
   8. Os factos revelam que, quanto ao pedido do subsídio de família, a conduta de A já constitui o crime de burla e, como ela tinha declarado no pedido de subsídio de família ou em cada renovação do mesmo que o seu pai não tinha nenhum rendimento (fls. 219 a 260) (não é, como a arguida declarou, que o rendimento do seu pai era inferior a $2,000.00), isto pode comprovar suficientemente o cometimento do crime de falsificação de documento.
   9. O Dr. J declarou que os medicamentos referidos na receita médica por ele passada não foram destinados ao pai da arguida, K, mas sim ao marido da arguida, mas a arguida confessou que os medicamentos da referida receita médica não foram passadas ao seu pai e ela emprestou o cartão de beneficiário de acesso a cuidados de saúde do seu pai só para ajudar o pai do Dr. G. Contudo, posteriormente, o Dr. G negou a acusação acima referida. Assim, por quem foi utilizada tal receita médica? Tal receita médica já se trocou por produtos de uso quotidiano? Foi o pai do Dr. G que obteve a referida receita médica? Sobre isto, é impossível de ser comprovado neste processo disciplinar. Pelo exposto, conforme o princípio de “in dubio pro reo”, é improcedente a acusação do crime de falsificação cometido pelo funcionário público previsto no art.º 246.º do Código Penal (segundo os elementos obtidos, o instrutor considera que in casu, só é possível tratar-se de crime de falsificação de funcionário público e não de crime de falsificação de atestado acusado pelo Comissariado contra a Corrupção). Contudo, já que a arguida confessou o facto de empréstimo do cartão de beneficiário de acesso a cuidados de saúde do seu pai a alguém, ela infringiu o dever de zelo do funcionário público.
   10. Porém, quanto à acusação do crime de falsificação de atestado, do crime de aproveitamento indevido de segredo e do crime de violação de segredo previstos respectivamente nos art.ºs 249.º, 190.º e 348.º do Código Penal, não há, nos elementos obtidos na investigação deste processo disciplinar, prova suficiente que justifique o cometimento dos crimes acima referidos, pelo que, não se pode efectivar a responsabilidade administrativa da infracção da arguida.
   11. No processo disciplinar, a arguida tinha prestado dois autos de notícia, mas há muitos médicos que comprovam que as declarações da arguida não correspondem ao facto e, além disso, as suas declarações também são contraditórias uma a outra. Aliás, a arguida também deu muitas explicações quanto ao pedido do subsídio de família, mas as suas declarações foram também contestadas pelo chefe substituto da Divisão de Pessoal. O pior é que, para satisfazer os requisitos, a arguida explicou que o rendimento mensal do seu pai era inferior a $2,000.00 nos mais de 10 anos do exercício de actividade médica, contudo, sendo um médico especialista em Hong Kong, é impossível que o rendimento mensal era inferior a $2,000.00, pelo que, os factos acima referidos podem comprovar que a arguida prestou declarações falsificadas na fase de investigação.
   12. Pode-se concluir que desde 1988 até agora, a arguida tem auferido o subsídio de família sem reunir os requisitos da atribuição do subsídio de família previstos no 208.º do ETAPM e as condutas acima referidas foram praticadas na forma voluntária e dolosa pela arguida, pelo que, já está comprovada a conduta de burla da arguida A. Aliás, a arguida também infringiu a lei penal por ter preenchido dados falsificados no pedido de subsídio de família dos seus pais. Além disso, a arguida ajudou outrem a obter medicamentos através do cartão de beneficiário de acesso a cuidados de saúde do seu pai, o que viola o dever de zelo do funcionário público. Por último, também se comprova que a arguida prestou declarações falsificadas na fase de investigação, a fim de esquivar-se à responsabilidade. Nestes termos, a arguida A viola vários deveres gerais de funcionário público.
   A ré tem circunstâncias atenuantes na responsabilidade disciplinar.
   – Como já trabalha há 15 anos e as classificações são sempre “Muito Bom” ou “Bom”, A tem circunstâncias atenuantes (art.º 282.º, al. a do ETAPM).
   A ré tem circunstâncias agravantes na responsabilidade disciplinar.
   – Como A cometeu várias infracções disciplinares, existem circunstâncias agravantes previstas no art.º 283.º do ETAPM.
   13. Com tais condutas, a arguida A viola vários deveres gerais do funcionário público, ou seja, os deveres de isenção, zelo, obediência e legalidade de funcionário público previstos no ETAPM (art.º 279.º, n.º 2, al.s a) a d) e n.ºs 3 a 6 do mesmo artigo), pelo que, tais condutas constituem infracção disciplinar. Aliás, a arguida A prestou declarações falsificadas na fase de investigação, por isso, a infracção acima referida é a conduta da infracção disciplinar grave e, ao abrigo do art.º 315.º do ETAPM, pode-lhe aplicável a pena de demissão.
   14. Porém, considerando o disposto no art.º 316.º, n.º 1 do ETAPM, as penas graduar-se-ão de acordo com as circunstâncias atenuantes ou agravantes que no caso concorram, nomeadamente o grau de culpa do infractor e a respectiva personalidade, como a arguida já trabalha nos Serviços de Saúde há 15 anos, o instrutor usa a competência definida no art.º 316.º, n.º 2 do ETAPM, aplica à arguida A uma pena de escalão mais baixo: a suspensão de 1 ano.
   15. A aplicação da pena de suspensão é da competência do Chefe do Executivo (art.º 322.º do ETAPM), e ao abrigo dos art.ºs 1.º e 3.º da Ordem Executiva n.º 14/2000, publicada no n.º 9 do Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, Série II, de 28 de Fevereiro de 2000, a competência acima referida é delegada ao Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura.
   A arguida pode apresentar a sua defesa escrita no prazo de 10 dias (art.º 333.º, n.º 1 do ETAPM) e, a ré ou o seu advogado pode consultar os autos no gabinete do instrutor, situado na Sala 112 do Edifício da ex-Escola Técnica dos Serviços de Saúde de Macau junto do Centro Hospitalar Conde de S. Januário (para a marcação, faça o favor de contactar o Secretário deste Processo Disciplinar, Sr. L, através do telefone n.º XXXXXXX).
   Aos 4 de Agosto de 2003.
O Instrutor,
M
Técnico Superior de informática assessor”
   
   Em 12 de Agosto de 2003 a ora recorrente dirigiu à Administração a seguinte exposição:
   “Exmos. Senhores Dirigentes
   Em primeiro lugar, queria agradecer a V. Ex.a pela atenção dispensada ao meu assunto.
   Eu, A, enfermeira-graduada do Serviço de Consultas-externas de Estomatologia do Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ), ingressei na carreira de enfermeira em 1988. Sinto-me perplexa e não sei porque é que em Março de 2003, o Comissariado Contra a Corrupção (CCAC) pediu-me apoio à averiguação de uma causa. Quanto à averiguação feita há algum tempo pelo CCAC, o instrutor do processo disciplinar do CHCSJ, Sr. M, deu, finalmente, uma conclusão preliminar de improvimento. Sobre esta conclusão, venho por este meio responder e aproveitar esta ocasião para esclarecer o assunto: O Sr. M indicou que tanto eu como os meus familiares não fomos consultar o médico segundo as formalidades normais de marcação prévia de consultas, indicou também que alguns médicos provaram que não fiz a marcação prévia mas dirigi-me pessoal e directamente ao consultório para pedir aos médicos a consulta ou a passagem da receita médica. Eu e os meus familiares fomos consultar o médico por causa de doença (não crónica) e o médico fez a terapia ou passou a receita médica conforme o diagnóstico, e esses actos foram considerados como uma via anormal por falta de marcações prévias. Não fiz marcações prévias porque se tratam de doenças imprevisíveis, por exemplo, uma vez, tive herpes virais na epiderme que me causou uma dor insuportável, pelo que, fui consultar o dermatologista, Dr. E; como tive, um dia, um acidente de aviação, o que me causou a dificuldade de levantamento do braço esquerdo, por isso, logo no dia seguinte, um dia de trabalho, fui ao Serviço de Medicina Física e de Reabilitação para consultar a Dra. I para tirar radiografias. Todavia, a Dra. I não podia confirmar se eu teria a factura de ossos, por isso pediu ajuda ao ortopedista, Dr. D, e o Dr. D, depois de ter lido as radiografias, submeteu-me à fisioterapia e passou-me a receita médica. De facto, nunca consegui prever de que doença padecia. Quanto ao meu pai, este sofre de hipertensão e de doença cardíaca crónica, necessitando de tomar medicamentos por longo período, pelo que, quando os medicamentos acabaram, fui eu que o ajudava a fazer a prescrição de medicamentos junto dos médicos. A falta de marcação prévia, nesta situação, também foi considerada como uma via anormal. Quatro anos atrás, como fui submetida a uma operação ginecológica, o que me causou graves traumas espinais e tive graves inchaços, que me dificultou o andamento, só consegui recuperar-me agora depois de um tratamento de fisioterapia por longo período, por esta razão, tive de ir frequentemente aos Serviços de Ortopedia e de Ginecologia. Sou trabalhadora do hospital, o médico permite-me fazer consulta quando acabaram os medicamentos ou me sentia mal. Várias vezes, quando não tinha mais medicamentos, e estava no Serviço, não queria pedir licença para ir consultar o médico, pedi ao médico do Serviço onde trabalho para prescrever-me os medicamentos de ortopedia a fim de não afectar o meu trabalho ou aumentar a pressão ao trabalho dos médicos de consultas-externas, para que eles pudessem ter mais tempo dedicado a outros doentes. Acto como esse que é muito comum neste Hospital, porém, também foi considerado como uma via anormal.
   O meu pai K, actualmente com 84 anos de idade, não conseguiu andar por grave doença, foi internado neste hospital no início do ano e teve alta após um tratamento, mas não teve visível melhoramento. Actualmente, ele voltou para Beijing, onde ficou de cama, está submetido ao tratamento. Após o diagnóstico, verificou-se que sofre de cancro dos ossos da fase terminal que se expandiu para todo o corpo, sofrendo também de hipertensão, aeortovaricose e insuficiência valvular há mais de 40 anos, tem ainda grave factura compressiva, estenose do túbulo colunar que aperta os nervos dos troncos inferiores, o que lhe dificulta o andamento. Além disso, está com grave surdez e doenças oftalmológicas, tendo o olho esquerdo praticamente cego há cerca de vinte anos, e ainda com grave miopia, presbiopia e astigmatismo. Ele foi professor de classe superior da Universidade e médico especialista. Veio para Hong Kong após a aposentação, na altura, apesar das diversas doenças, estava bem lúcido e não se satisfazia com uma vida monótona e de tédio de um aposentado. Era médico e professor de categoria superior, mas, esta designação profissional não foi reconhecida pelo Governo de Hong Kong. Não conseguiu candidatar-se ao exame de reconhecimento da qualidade de médico por causa da idade avançada e das doenças, todavia, com a ajuda dos seus ex-alunos, arrendou com eles um local onde exercia, com autorização, as actividades de mestre de medicina tradicional chinesa como passa-tempo, ajudando os outros e passando os seus últimos tempos. Como não fala nem ouve cantonês, o meu pai limitava-se a ensinar a seus estudantes (médicos do consultório em Hong Kong) o diagnóstico das doenças dermatológicas e ajudava-os a resolver os casos mais difíceis e complicados. Além de dar consulta e medicamentos a título gratuito de vez em quando, todos os dias escrevia livros e apontamentos de aulas. Os medicamentos (pomadas e produtos farmacêuticos de medicina tradicional chinesa) dados aos doentes são preparados por ele próprio. Costumava passar as suas férias em Macau nos dias dos feriados e aproveitando a ocasião para fornecer consulta médica aos médicos e seus familiares deste Hospital. Nessas consultas, nunca recebeu nenhuma remuneração. Residia numa habitação económica do Governo há mais de dez anos, recebendo um subsídio concedido mensalmente à pessoa de idade avançada na quantia de cerca de HK$600,00 (não se sabe a quantia exacta). A minha mãe tem 75 anos de idade e nunca trabalhou nos mais de vinte anos de residência em Hong Kong, eu e as minhas irmãs sustentamos as despesas e custos da vida dos dois idosos. Todos os anos, o meu pai foi participar em reuniões promovidas pelo Ministério de Saúde. Se não tivessem o nosso sustento, não conseguiriam viver em Hong Kong. Quanto ao consultório criado por meu pai em Hong Kong, o imposto de rendimento foi isento pelo Governo daquela Região. Por causa dos cartões de acesso a saúde e aos subsídios de família subsídios de família dos meus pais, de pouco mais de cem patacas mensais para cada um, fui acusada de ter praticado o crime de burla e o crime de falsificação de documentos. Contudo, eles já têm mais de 65 anos de idade, mesmo que não tenham tais cartões de acesso a cuidados de saúde, usufruiriam o direito gratuito a cuidados de saúde. Além disso, temos que sustentar mensalmente as despesas de vida deles com milhares de patacas, perante estas condições, queria perguntar se ainda não se reúnem requisitos suficientes para a obtenção de subsídio de família?
   Na acusação contra mi feita pelo Dr. J do Serviço de Estomatologia há contradições surpreendentes. Seria que ele tem problema de memória ou outros motivos ocultos? E por esta razão que fui acusada pelo CCAC. O Dr. J, no seu depoimento, disse que ele prescreveu a receita médica para mi porque eu tinha dito que o destinatário da receita era o meu marido (mas o meu marido não tem necessidade de tomar tais medicamentos, pois que não tem hipertensão, nem doença cardíaca), alegando que não sabia porque a receita depois ficou com nome do pai (os dois têm o cartão de acesso a cuidados de saúde). Eu não precisava dizer tal mentira, mas, naquela altura quando notei que há questão naquela receita, informei o facto ao assessor jurídico do Hospital, Sr. M. Porém, o Dr. J pretextou que não se lembrou bem e já se esqueceu. Quanto ao Dr. G, como responsável do Serviço, além de não reconhecer o que tinha feito, recorreu a pretextos e mentiras ridículas. Este médico, além de dizer mentira, prestou falsas declarações, é uma pessoa de má qualidade nem tem a mínima deontologia médica. E estranho que não há indagação de responsabilidade aos médicos que prestam falsas declarações. Quanto a mim, apresentei os factos importantes ao assessor jurídico, indicando que o Dr. G pediu empréstimo do meu cartão de acesso aos cuidados de saúde para passar a receita médica para os familiares dele. Pelo contrário, o empréstimo do cartão para ele foi considerado como uma culpa. E no depoimento feito perante o assessor jurídico M, o Dr. G disse que não tinha necessidade de pedir empréstimo do cartão de ninguém. Já que ele não reconheceu que tinha pedido o empréstimo de cartão, porque se faz uma acusação contra mim de violação da lei.
   Exmos. Senhores Dirigentes:
   Queria agradecer a V. Ex.ª pela dispensa de seu precioso tempo para cuidar do meu assunto. Aproveito esta ocasião para apresentar a reclamação e recorrer à justiça. Trabalhei no hospital há mais de 15 anos, com zelo, dedicação na profissão e um espírito de servir a sociedade com o que aprendi na escola, todavia, com esta lição, comecei por olhar por outro ponto de vista a deontologia profissional dos médicos para pensar bem o meu trabalho de futuro. Acredito que há justiça e igualdade, sendo perpétua a verdade.
A
12 de Agosto de 2003”
   
   E em 19 de Agosto de 2003 a recorrente enviou a seguinte carta ao Exmo. Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura:
   “Exmo. Senhor
   Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura
   Dr. Chui Sai On
   
   Eu, A, enfermeira-graduada do Serviço de Estomatologia do Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ), ingressei na carreira de enfermeira desde 1988, venho por este meio apresentar esta carta a V. Exa para esclarecer a situação. O meu pai K emigrou para Hong Kong em 1985, tem hipertensão e sofre de grave doença cardíaca, grave miopia e presbiopia. Mora com a minha mãe e uma tia. Actualmente, o meu pai sofre de paralisia, não consegue andar, está internado num hospital de Beijing. O meu pai era professor de classe superior da Universidade, como não desejava levar uma vida monótona e de tédio de aposentado. Arrendou, a ajuda dos seus ex-a1unos um local para estabelecer um consultório de medicina tradicional chinesa (embora fosse médico de medicina ocidental, a habilitação profissional não foi reconhecida pelo Governo de Hong Kong). Por causa da idade avançada, do sofrimento de doenças e do desconhecimento do dialecto, não pode candidatar-se ao exame da licença de médico ocidental. Pelas mesmas razões, não conseguiu sustentar a vida de três pessoas. Nestes termos, eu requerei, em 1990, ao Governo o subsídio de família dos pais e o cartão de acesso aos cuidados de saúde. Naquela altura, o meu pai já tinha 70 anos. Actualmente, o assessor jurídico do CHCSJ, Sr. M, sem ter efectuado a averiguação, indicou que os meus pais não reúnem requisitos para a obtenção do subsídio, acusando-me da prática do crime de burla e do de falsas declarações, pelo que condenou-me na pena de suspensão de serviço por um ano.
   Os meus pais residem numa casa económica de Governo de Hong Kong, recebendo um subsídio concedido às pessoas de idade avançada. Embora tivessem um consultório de medicina tradicional chinesa, não consegue sustentar a vida, por esta razão os custos e as despesas de vida dos pais em Hong Kong são sustentados por mim e minhas irmãs. Venho por este meio apresentar a V. Exa. a certidão de residência na casa económica do Governo em Hong Kong, certidão de obtenção de subsídio concedido aos idosos, e certidão de isenção de impostos do consultório, para que a V. Exa. puder julgar com toda a justiça.
   Com os melhores cumprimentos.
A
2003/8/12”
   
   No âmbito do mesmo processo disciplinar veio a ser elaborado o Relatório do seguinte teor:
   “Assunto: Processo Disciplinar n.º 2/GAJ/2003 de A, enfermeira dos Serviços de Saúde
   Instrutor: M, Técnico superior de informática assessor
   Secretário: L (Técnico auxiliar de 1ª classe)
   
Parte I Prefácio
   1. Na investigação realizada no início do corrente ano à arguida A pelo Comissariado contra a Corrupção, verificou-se que a arguida estava suspeita de trocar as receitas médicas, passadas por médicos, por produtos de uso quotidiano nos últimos dois anos e, além das receitas médicas da própria arguida, as dos seus beneficiários familiares também foram usadas para trocar produtos de uso quotidiano. Aliás, o Comissariado contra a Corrupção também verificou que a arguida A estava suspeita de praticar outros crimes, pelo que, após a investigação, o Comissariado contra a Corrupção considerou que há indícios que demonstram que a arguida cometeu o crime de burla, o crime de aproveitamento indevido de segredo, o crime de falsificação de atestado e o crime de violação de segredo previstos respectivamente nos art.ºs 211.º, 190.º, 249.º e 348.º do Código Penal e, com base nisto, os Serviços de Saúde efectivam oficiosamente as responsabilidades disciplinares pela infracção administrativa.
   2. Neste termo, os Serviços de Saúde efectivam oficiosamente a responsabilidade disciplinar da sua infracção administrativa, pelo que, o Director proferiu o despacho em 10 de Abril de 2003, mandando a instauração do processo disciplinar (fls. 6 dos autos).
   3. No despacho acima referido, o assinante do presente relatório, M, foi nomeado como instrutor, em seguida, o Sr. L foi nomeado, pelo assinante, como secretário do presente processo.
   
Parte II Averiguação
   4. O processo disciplinar foi aberto formalmente em 16 de Abril de 2003 (Processo n.º 2/GAJ/2003) e, nos termos do art.º 328.º, n.º 3 do Estatuto dos Trabalhadores de Administração Pública de Macau (designado posteriormente como ETAPM) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21 de Dezembro, o instrutor informou o superior que o tinha nomeado, o participante e a arguida (fls. 7 a 15 dos autos).
   A arguida foi informada sobre as data do despacho de nomeação do presente processo e do início do processo disciplinar, a respectiva informação foi enviada ao local de trabalho da arguida e assinada pela arguida para efeito de confirmação. (fls. 10 e 11 dos autos).
   5. O assinante pediu à Divisão de Pessoal dos Serviços de Saúde o certidão de Registo Disciplinar da arguida e as informações dos seus beneficiários de tratamento médico, em seguida, o pedido em causa foi autorizado, a respectiva certidão foi apensada aos autos fls. 28 e 29.
   6. O assinante pediu, com base das informações acima referidas, ao Departamento de Organização e Informática, a emissão dos registos de consultas e medicamentos da arguida e dos seus beneficiários de tratamento médico nos últimos dois anos, os dados pedidos foram emitidos e apensados às fls. 31 a 46 dos autos.
   7. Além disso, o assinante pediu apoio do Director dos Serviços de Saúde, no sentido de pedir ao Comissário Contra a Corrupção mais informações concernentes (fls. 16 dos autos). Porém, devido ao segredo judiciário, o Comissário Contra a Corrupção forneceu apenas algumas informações (fls. 48 a 49 dos autos).
   8. Para verificar ainda mais os registos informáticos e os de história clínica, o assinante solicitou, nos termos do art.º 66.º do Código do Procedimento Administrativo, ao Director, que se digne autorizar a consulta dos registos de história clínica da arguida e dos seus beneficiários de tratamento médico, o pedido foi autorizado e apensado às fls. 22 dos autos.
   9. Após a autorização de consulta dos registos de história clínica, solicitou-se imediatamente à Divisão de Utentes cópias dos registos da história clínica das pessoas concernentes (fls. 51 a 52 dos autos), e a Divisão emitiu cópias dos registos de história clínica da arguida e dos seus beneficiários de tratamento médico (fls. 1 a 5 dos anexos dos autos ).
   10. O assinante percebeu que os respectivos registos informáticos não eram completos e, a maior parte dos registos de consulta e de medicamentos usados não estavam inscritos no registo de história clínica, pelo que, o assinante solicitou ao Chefe da Divisão de Contabilidade a emissão dos recibos dos medicamentos usados pelas pessoas concernentes (fls. 54 dos autos). A Divisão de Contabilidade emitiu os recibos em causa (fls. 69 a 126 dos autos).
   11. Para facilitar a averiguação, o assinante anexou o artigo do jornal relativo ao assunto aos presentes autos (fls. 64 a 66 dos autos).
   12. Devido à quantidade das informações e documentos do presente processo, bem como à complexidade do assunto, o assinante solicitou ao Director dos Serviços de Saúde que autorize, nos termos do art.º 328.º, n.º 1 do Estatuto dos Trabalhadores de Administração Pública de Macau (designado posteriormente como ETAPM) aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21 de Dezembro, a prorrogação do processo disciplinar pelo prazo de 45 dias, solicitação essa foi autorizada (fls. 61 dos autos).
   13. Segundo as informações, Dra. N foi a médica que emitiu, de maior quantidade, receitas de medicamento à arguida e aos seus beneficiários de tratamento médico. Porém, esta médica já deixou os Serviços de Saúde, facto esse foi verificado (fls. 130 dos autos).
   14. Em 27 de Maio de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Oftamologia, Dr. B, e este prestou autos de declaração (fls. 133 e 134 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 135 dos autos).
   15. Em 28 de Maio de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Pneumologia, Dr. O, e este prestou autos de declaração (fls. 137 e 138 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 139 dos autos).
   16. Em 10 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Cirurgia Plástica, Dr. C, e este prestou autos de declaração (fls. 141 e 142 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 143 dos autos).
   17. Em 10 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Otorrinolaringologia, Dr. P, e este prestou autos de declaração (fls. 145 e 146 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 147 dos autos).
   18. Em 11 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Ortotraumatologia, Dr. D, e este prestou autos de declaração (fls. 149 e 150 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 151 dos autos).
   19. Em 11 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Medicina Interna, Dr. Q, e este prestou autos de declaração (fls. 153 e 154 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 155 dos autos).
   20. Em 12 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Ortotraumatologia, Dr. R, e este prestou autos de declaração (fls. 157 e 158 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 159 dos autos).
   21. Em 13 de Junho de 2003, foi ouvido a Médica da Secção de Obstetrícia e Ginecologia, Dr. S, e esta prestou autos de declaração (fls. 161 e 162 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 163 dos autos).
   22. Em 13 de Junho de 2003, foi ouvido a Médica da Secção de Dermatologia, Dr. E, e esta prestou autos de declaração (fls. 165 e 166 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 167 dos autos).
   23. Em 13 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Cardiologia, Dr. F, e este prestou autos de declaração (fls. 169 e 170 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 171 dos autos).
   24. Em 13 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Pediatria, Dra. T, e este prestou autos de declaração (fls. 172 e 173 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 174 dos autos).
   25. Em 16 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Estomatologia, Dr. G, e este prestou autos de declaração (fls. 176 e 177 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 178 dos autos).
   26. Em 17 de Junho de 2003, foi ouvido o Médico da Secção de Estomatologia, Dr. J, e este prestou autos de declaração (fls. 184 e 185 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 186 dos autos).
   27. Em 17 de Junho de 2003, foi ouvido a Médica da Secção de Estomatologia, Dra. H, e esta prestou autos de declaração (fls. 180 e 181 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 182 dos autos).
   28. Em 17 de Junho de 2003, foi ouvido a Médica da Secção de Reabilitação, Dra. I, e esta prestou autos de declaração (fls. 188 e 189 dos autos), esclarecendo os registos de consulta e de passagem de receitas médicas (fls. 190 dos autos).
   29. Em 3 de Julho de 2003, a arguida compareceu no gabinete do instrutor, prestando autos de declaração (fls. 196 e 197 dos autos), fornecendo os documentos concernentes (constantes das fls. 198 a 216 dos autos).
   30. A arguida forneceu os respectivos documentos comprovativos, pelo que, o assinante procedeu à averiguação necessária, ou seja, solicita à Divisão de Pessoal passar o antigo requerimento do cartão de acesso aos cuidados de saúde e as cópias dos documentos (fls. 218 dos autos). A Divisão de Pessoal emitiu o antigo requerimento e as cópias (fls. 219 a 260 dos autos).
   31. Nas informações fornecidas, a arguida, declara que o seu pai, K, é um médico especialista com autorização de exercício das funções em Hong Kong (fls. 196, 197 e 199 dos autos). Por isso, é óbvio que as condições dos seus pais não corresponderam aos requisitos para o subsídio de família previsto no art.º 208.º do ETAPM. Portanto, a arguida não tinha o direito de receber o subsídio de família tendo como fundamento o facto de alimentar os seus pais. Além disso, sendo por causa disso, os pais da arguida não podiam, nos termos do art.º 148.º, n.º 1, al. b) do ETAPM, ter os cartões de acesso aos cuidados de saúde passados pela Administração. Pelo exposto, notifiquei, outra vez, a arguida para apresentar a sua defesa perante a infracção em causa (fls. 262 a 263 dos autos).
   32. Para comprovar a autenticidade da defesa da arguida, é necessário proceder a uma investigação complementar, razão pela qual, voltei a solicitar ao Director Substituto dos Serviços de Saúde, que autorizasse, nos termos do art.º 328.º, n.º 1 do ETAPM aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M de 21 de Dezembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M de 28 de Dezembro a prorrogação do processo disciplinar pelo prazo de 10 dias, solicitação essa foi autorizada (fls. 272 dos autos).
   33. Em 10 de Julho de 2003, foi ouvida a Chefe Substituta da Divisão de Pessoal, U, a mesma prestou autos de declaração (fls. 265 e 266 dos autos).
   34. Em 14 de Julho de 2003, foi ouvido, outra vez, o Médico da Secção de Estomatologia, Dr. G, o mesmo prestou autos de declaração (fls. 268 e 269 dos autos).
   35. Em 14 de Julho de 2003, foi ouvido, outra vez, o Médico da Secção de Estomatologia, Dr. J, o mesmo prestou autos de declaração (fls. 278 e 279 dos autos).
   36. Em 15 de Julho de 2003, foi ouvido o patrão de uma farmácia situada no NAPE, o mesmo prestou autos de declaração (fls. 280 e 281 dos autos).
   37. A Divisão de Pessoal fez a contagem da quantia total dos subsídios indevidamente recebidos pela arguida. Até ao dia 23 de Julho de 2003, a respectiva quantia é de MOP$47,730.00 (quarenta e sete mil e setecentas e trinta patacas) (fls. 218B a 281F dos autos).
   
Parte III Acusação
   38. Observadas as devidas formalidades jurídicas e efectuadas as diligências necessárias previstas no art.º 329.º do ETAPM, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 62/98/M, de 28 de Dezembro, bem como consultados e analisados os referidos autos e sem necessidade de adoptar outra nenhuma diligência suplementar por terem sido os elementos suficientemente verificados, venho acusar a arguida nos termos do art.º 332.º do ETAPM:
   39. A arguida recebeu a acusação acima referida em 4 de Agosto de 2003 e, assinalou-a para servir de prova (fls. 283 a 287 dos autos).
   
Parte IV Alegação
   40. A arguida apresentou a sua alegação ao instrutor em 12 de Agosto de 2003, porém, não apresentou nenhum documento comprovativo (fls. 289 a 290 dos autos), além disso, na alegação, o destinatário da respectiva alegação não foi o instrutor, por isso, o secretário do presente processo disciplinar pediu-lhe que corrigisse, mas o pedido foi recusado pela arguida.
   41. A arguida apresentou, em 18 de Agosto de 2003, a queixa ao Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura, junto com alguns documentos comprovativos. Embora os respectivos documentos não estão constantes na alegação, o assinante juntou o documento nas fls. 291 a 304 dos autos em 22 de Agosto do ano corrente.
   
Parte III (sic.) Conclusão
   42. Após a sintetização da situação acima referida, podemos chegar à seguinte conclusão :
   A. Segundo o princípio de segredo de justiça, mesmo que grande quantidade de elementos revelam a possibilidade de que a arguida A trocou as receitas médicas por produtos de uso quotidiano. Contudo, como os Serviços de Saúde não têm competências para examinar as contas da farmácia suspeita (porque os Serviços de Saúde não são órgão judiciário), não conseguem comprovar o facto de a arguida ter trocado as receitas médicas por produtos de uso quotidiano. Nestes termos, segundo o princípio de “in dubio pro reo”, o instrutor considera improcedente o crime de burla acusado à arguida pela troca das receitas médicas por produtos de uso quotidiano.
   B. Porém, quanto à acusação do crime de falsificação de atestado, do crime de aproveitamento indevido de segredo e do crime de violação de segredo previstos respectivamente nos art.ºs 249.º, 190.º, 348.º do Código Penal, não há, nos elementos obtidos na investigação deste processo disciplinar, prova suficiente que justifique o cometimento dos crimes acima referidos, pelo que, não se pode efectivar a responsabilidade da infracção administrativa da arguida.
   C. A arguida salientou que os médicos prestaram serviços de consulta aos trabalhadores pelo meio irregular, e esse facto é muito vulgar (3° parágrafo da alegação, fls. 289 dos autos). O instrutor sabe desse facto. Mesmo que admitamos tais consultas médicas como um beneficio dos trabalhadores (nos termos da regra natural), é evidente que os familiares beneficiários da arguida não têm este direito. Além disso, os funcionários públicos e os seus familiares têm o mesmo direito de acesso de cuidado médico que o de todo os cidadãos de Macau. Por isso, a arguida aproveitou-se das suas funções para obter conveniência, causando injustiça a outros. O seu acto violou o dever geral dos funcionários públicos, violando os deveres de isenção e de obediência previstos nos art.ºs 279.º, n.º 2, al.s a) e c) e n.º 3 e n.º 5 do mesmo artigo do ETAPM, deveres esses que devem ser cumpridos pelos funcionários públicos. Por isso, tal conduta constitui infracção.
   D. O ponto 9 da acusação assinala que, segundo o princípio de in dubio pro reo, a acusação do crime de falsificação efectuada pelo funcionário não é procedente. Além disso, na sua declaração, a arguida, manifestou expressamente que a mesma tinha emprestado o cartão de acesso aos cuidados de saúde do seu pai (fls. 197 dos autos) aos outros para efeitos de passar as receitas médicas. Como se sabe, os doentes só podem requerer a consulta e as receitas médicas em seu próprio nome, e este ponto é sabido de todos os cidadãos, para não falar da arguida que é uma enfermeira, portanto, violou o dever de zelo previsto no art.º 279.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do mesmo artigo do ETAPM, deveres esses devem ser cumpridos pelos funcionários públicos, violação em causa constitui também uma infracção disciplinar.
   E. Entretanto, os elementos fornecidos pela arguida demonstram que o seu pai K é um médico especialista com autorização de exercício das funções em Hong Kong (fls. 196, 197 e 199), as condições dos seus pais não reuniam manifestamente os requisitos da atribuição do subsídio de família previstos no art.º 208.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (designado abaixo como ETAPM). A arguida apresentou excepção, mas o assinante verificou, após o estudo e a análise, que a arguida recebia o subsídio numa situação não correspondente aos previstos no art.º 208.º do ETAPM, eis as razões:
   – A arguida refere que quando ela pediu, pela primeira vez, o subsídio de família em 1990, os funcionários da Divisão de Pessoal tratava o assunto da seguinte maneira: se os familiares do requerente têm mais de 65 anos de idades, o pedido, preenche automaticamente os dispostos no art.º 208.º (4º parágrafo de fls. 263 dos autos). Porém, a sua colega, U, a Chefe Substituta da Divisão de Pessoal, que tem trabalhado na Divisão de Pessoal há mais de 19 anos, negou que existisse o critério dito pela arguida (fls. 266 dos autos).
   – A arguida disse que o seu pai é médico especialista. Como ele ofertava sempre o serviço de consulta médica e os medicamentos gratuitamente nos últimos mais de dez anos, o seu rendimento mensal não ultrapassava 2,000.00 dólares (fls. 263 dos autos, 6° parágrafo). A arguida apresentou, dias atrás, uma queixa ao Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura (fls. 293 dos autos), junta-se um certificado da isenção de imposto na carta (fls. 295 e 296 dos autos), para provar que o rendimento total do seu pais era de HK$26,500.00 (vinte e seis mil e quinhentos dólares de Hong Kong) durante o período de 1 de Abril de 1989 e 31 de Março de 1990.
   a) Dos documentos acima referidos, podemos verificar que o rendimento do Sr. K no período de 1989 e 1990 era de HK$26,500.00. Por isso, este certificado é muito importante no presente processo, então, que tipo de documento é este certificado? Qual é o seu valor jurídico??
   b) O documento foi uma carta emitida pelo Hong Kong lnland Revenue Departmente ao Sr. K, o remetente é o Sr. V (Assistant Commissioner). Nos termos do art.º 51.º, n.º 1 do Capítulo 112 de antiga legislação dos impostos de Hong Kong, foi exigido o Sr. K que devia preencher o documento e devolvê-lo dentro de 30 dias, anexando-se o balanço e a conta de ganhos e perdas autentificados para comprovar o rendimento apreciado (fls. 295 dos autos).
   c) A antiga Legislação dos Impostos, Capítulo 112, art.º 51.º, n.º 1 faz parte da lei da Região Administrativa Especial de Hong Kong, à qual pode-se ter acesso através do sistema legislativo bilíngue da RAEHK (www.iustice.gov.hk). Nos termos do art.º 51.º do Capítulo 112 da legislação dos impostos de Hong Kong, “deve-se apresentar o boletim e informação para efeitos de declaração dos impostos”. O objectivo desta norma reside em tratar as dúvidas e situação suspeitosa de falsificação da declaração em relação aos dados apresentados pelos contribuintes, de forma que a norma regulamenta as situações que implicam a investigação obrigatória a ser feita pelo Chefe de Apreciação dos Serviços de Impostos, o Director Assistente, Sub-Director e Director (fls. 306 a 316 dos autos, partes fluorescentes).
   d) O documento apresentado pela arguida A não é “certificado de isenção do imposto”, pelo contrário, trata-se de um documento que comprova que o rendimento declarado pelo seu pai foi posto em causa pelos Serviços de Impostos de Hong Kong. Além disso, a arguida não apresenta, até agora, os documentos de pagamento de imposto do seu pais nos mais de dez anos, por isso, o que é realmente dubitável.
   e) É de salientar que, nos termos do art.º 208.º do ETAPM, a indiciária dos funcionários em 1990 era de 26 patacas, uma metade de 100 indiciária equivale a 1,300.00 patacas, a arguida não apresentou nenhum documento comprovativo para verificar que o rendimento do seu pai corresponde ao disposto no art.º 208.º do ETAPM.
   f) Por isso, o facto acusado à arguida no ponto 6 da acusação é procedente de forma que, com a alegação e documentos apresentados, a arguida não pode ilidir a acusação acima referida, A sua conduta violou o deve geral do funcionário público, ou seja, viola o dever de zelo previsto no art.º 279.º, n.º 2, al. b) e n.º 4 do mesmo artigo do ETAPM, constituindo a infracção.
   F. Mesmo que o certificado de isenção de imposto fosse verdadeiro, pode-se verificar que a arguida prestou falsas declarações, pois nos termos dos documentos apresentados pela arguida, a mesma declarou que o seu pai não tem emprego, nem nenhum rendimento. (fls. 224, 231, 235, 251, e 254 dos autos). O respectivo acto constitui crime de falsificação dos documentos previsto no art.º 244.º do Código Penal de Macau. Está suficientemente comprovado que a arguida violou o dever geral do funcionário público, ou seja, violou o dever de zelo estipulado no art.º 279.º, n.º 2 al. b) e n.º 4 do mesmo artigo (ponto 8° da acusação).
   G. Quanto ao facto de falsas declarações prestadas pela arguida durante a fase de investigação, o assinante fez uma comparação entre as actas de declaração da arguida e os depoimentos dos médicos (incluindo Dr. B, Dr. C, Dr. D, Dr. E, Dr. F, Dr. G, Dra. H e Dra. I). Como não existe nenhuma relação de interesses entre os médicos acima referidos e a arguida, verifica-se suficientemente que o depoimento da arguida não é acreditável.
   H. Para eximir-se da responsabilidade, a arguida alegou que o pessoal da Divisão de Pessoal adoptou um critério diferente do da lei, mas tal alegação foi negado pelo pessoal desta Divisão. Além disso, a arguida disse que o seu pai auferia, nos mais de dez anos, menos de HK$2,000.00 mensais (dois mil dólares de Hong Kong), todavia, nunca apresentou documentos comprovativos. Depois de receber a acusação, não apresentou documentos comprovativos ao assinante, pelo contrário, apresentou um certificado de isenção de impostos ao Secretário para os Assuntos Sociais e, este documento não foi realmente um certificado de isenção de impostos. Nestes termos, é procedente a prestação de falsas declarações da arguida, constituindo a violação do dever geral que os funcionários públicos devem cumprir, ou seja, violou o dever de lealdade previsto no ETAPM (art.º 279.º, n.º 2, al. d) e n.º 6 do mesmo artigo).
   I. A enfermeira A praticou a infracção grave acima referida, o que implica a impossibilidade da manutenção da situação jurídica da sua função, sendo-lhe aplicável, em princípio, a aposentação compulsiva ou demissão.
   J. Ao abrigo do art.º 316.º, n.º 1 do ETAPM, levando em consideração o serviço de 15 anos prestado pela arguida nos Serviços de Saúde, e no uso da competência conferida pelo art.º 316.º, n.º 2 do ETAPM, o instrutor aplica-lhe a pena de escalão mais baixo, ou seja, a pena de suspensão de função por 241 dias até um ano.
   K. Por fim, o instrutor salienta que, embora a acusação de CCAC não possa ser comprovada no direito, isto só por causa de que o instrutor não pode intervir na área de segredo judicial e, por isso, a acusação acima referida não pode proceder no presente processo pela falta de prova.
   
Parte IV (sic.) Proposta
   43. Nos termos dos fundamentos da conclusão, tenho as seguintes sugestões:
   A. Aplica a pena de suspensão da função à arguida por 300 dias.
   B. Cessação imediata do subsídio de família conferido pelos Serviços de Saúde à arguida A, informando-lhe que devolva, dentro de 30 dias, o montante indevidamente recebida.
   44. A aplicação da pena de aposentação compulsiva é da competência do Chefe do Executivo (art.º 322.º do ETAPM), a respectiva competência foi conferida ao Secretário para os Assuntos Sociais nos termos do art.ºs 1.º e 3.º da ordem administrativa n.º 14/2000, publicada no Boletim Oficial n.º 9, série I, em 28 de Fevereiro de 2000.
   À consideração superior.
   Macau, 22 de Agosto de 2003,
O Instrutor,
M
Técnico superior de informática assessor.”
   
   
   2.2 Nulidade da sentença por falta de fundamentos de facto
   A recorrente entende que o acórdão recorrido não tem indicado os factos provados, tal como é exigido pelo art.° 76.° do Código de Processo Administrativo Contencioso (CPAC), limitando-se a transcrever o conteúdo dos diversos documentos que constituem os autos do processo disciplinar. Salienta a recorrente que chegou a negar os factos a ela imputados ou prestar explicação sobre os mesmos com a junção de documentos. A falta de indicação dos factos consubstancia a nulidade do acórdão recorrido nos termos do art.° 571.°, n.° 1, al. b) do Código de Processo Civil (CPC).
   
   Tal como afirma a recorrente, a terceira parte do acórdão recorrido trata-se mesmo de matéria de factos provada, em que o tribunal recorrido indicou os factos provados que entendeu relevantes para a apreciação da causa. Embora seja o conteúdo dos acusação, cartas de defesa, relatório e decisão punitiva que integra esta parte do acórdão, aquele constitui formalmente a parte de fundamentação de facto do acórdão recorrido. Embora não tenha indicado conjuntamente todos os factos ligados às infracções disciplinares, mas exista efectivamente a parte de factos, nunca se verifica a nulidade da sentença prevista no art.° 571.°, n.° 1, al. b) do CPC por falta de especificação dos fundamentos de facto, independentemente da suficiência destes factos para suportar a decisão da respectiva sentença ou de existência de vícios próprios.
   Na realidade, alguns fundamentos de facto da decisão de punição disciplinar estão integrados no relatório do processo disciplinar e no despacho do Senhor Secretário para os Assuntos Sociais e Cultura. Por outro lado, também foram indicados os respectivos factos nos pontos 4 a 6 da parte IV do acórdão recorrido em que foram apreciadas as questões de prestar falsas declarações pela recorrente para obtenção de subsídio de família, receber tratamento e receitas médicos por meios irregulares e emprestar o cartão de acesso a cuidados de saúde do seu pai a terceiro. Por isso, não se pode afirmar que no acórdão recorrido não foram indicados os fundamentos de facto.
   Improcede esta parte dos fundamentos do recurso.
   
   
   2.3 Violação da norma de qualificação de infracção disciplinar – prestar falsas declarações. Poder de cognição do TUI.
   A recorrente alega que o Tribunal de Segunda Instância, ao apreciar o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto em relação às falsas declarações, bastou com a conclusão da manifesta desconformidade entre os rendimentos efectivamente auferidos pelo pai da recorrente e os que foram declarados de forma a poder beneficiar do subsídio de família, não apurou o valor concreto do rendimento auferido pelo seu pai, para poder afirmar que a recorrente cometera falsas declarações e com isso infringira um dever funcional, incorreu no erro de direito por violação do n.° 1 do art.° 208.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), bem como os seus art.°s 281.° e 279.°.
   
   O que a recorrente suscita consiste na questão de suficiência ou insuficiência de prova ao considerar como provado pelo tribunal recorrido o facto de a recorrente ter prestado falsas declarações. A existência ou não de diferença manifesta entre o rendimento efectivo do pai da recorrente e os elementos prestados pela recorrente ao requerer o subsídio de família não tem de ser necessariamente determinada através de comparação com o valor real do respectivo rendimento. Trata-se propriamente de uma questão de facto.
   O Tribunal de Última Instância tem entendido que em recurso jurisdicional de decisões de processo contencioso administrativo este Tribunal só aprecia, em princípio, questão de direito e não de facto.1
   Segundo o art.° 152.° do CPAC, o recurso dos acórdãos do Tribunal de Segunda Instância apenas pode ter por fundamento a violação ou a errada aplicação de lei substantiva ou processual ou a nulidade da decisão impugnada.
   Por isso, neste tipo de recursos, o Tribunal de Última Instância não pode, em princípio, censurar a convicção formada na apreciação de provas pelo Tribunal de Segunda Instância, mas apenas o processo de formação da convicção, isto é, controlar a conformidade legal do processo de apreciação de provas e fixação de factos provados.
   É de acrescentar que o ponto fulcral da questão reside na veracidade dos elementos prestados pela recorrente sobre o rendimento do seu pai, em vez do respectivo valor.
   Assim, improcedem os fundamentos do recurso nessa parte.
   
   
   2.4 Violação dos princípios da repartição do ónus da prova e in dubio pro reo
   Para a recorrente, o acórdão recorrido, na parte em que dê por assente que o seu pai auferia, desde Julho de 1990, rendimentos superiores a metade do valor do índice 100 da tabela indiciária de função pública, sem que a entidade recorrida tivesse conseguido provar directa e de forma inequívoca aqueles factos, violou o princípio da repartição do ónus da prova e o princípio in dubio pro reo.
   A recorrente alega que no presente caso se provou apenas, por documento, que foi junto pela mesma, que o seu pai passou a beneficiar do subsídio de velhice atribuído pelo Governo de Hong Kong desde Maio de 1994 no valor de HKD$500,00. Fora disso, não há nenhuma prova capaz de demonstrar o rendimento efectivamente auferido pelo pai da recorrente. Por isso, a conclusão do acórdão recorrido só pode ser obtida através de presunções judiciais, isto é, através das regras de experiência, dos princípios da lógica.
   
   Tal como a questão tratada no referido ponto 2.3, esta também é uma questão de facto. Conforme o mencionado, o Tribunal de Última Instância não pode censurar a convicção formada no presente processo pelo tribunal recorrido. O que a recorrente alega consiste precisamente no modo como o Tribunal de Segunda Instância devia apreciar as provas do processo, segundo o seu ponto de vista, e na conclusão de que não foi feita prova do valor efectivo de rendimento do seu pai.
   Aqui não há violação dos princípios da repartição do ónus da prova ou in dubio pro reo. Improcedem igualmente os fundamentos do recurso nessa parte.
   
   
   2.5 Violação do princípio da estabilidade objectiva da instância – conhecimento de factos de que não pode conhecer
   A recorrente considera que o tribunal recorrido considerou factos que foram alegados pela entidade recorrida apenas nas suas contra-alegações, não constantes do relatório do processo disciplinar nem do despacho punitivo, em violação do princípio da estabilidade objectiva da instância, conducente à nulidade do acórdão recorrido. A questão está relacionada com o segmento do acórdão recorrido em que da inexistência do pedido de dispensa de registo comercial e de pagamento das taxas de registo e do respectivo tributo por parte do pai da recorrente se infere que este tinha um rendimento superior a HKD$10.000,00.
   
   Relativamente ao rendimento do pai da recorrente, o tribunal recorrido teve em conta o seguinte facto: “... o pai da recorrente, enquanto detentor de um consultório proceder anualmente em Hong Kong ao registo comercial e ao pagamento das taxas de registo e do tributo desde Outubro de 1990 até 31 de Maio de 2003.”
   O facto foi alegado pela entidade recorrida nas suas contra-alegações a partir dos documentos (certificado de comércio de 1987 a 2003 e a comunicação de cessação de exploração de 1 de Junho de 2003) apresentados pela recorrente com as respectivas alegações. Nem no processo disciplinar nem no acto impugnado foi referido este facto.
   No recurso contencioso, a entidade recorrida deve deduzir na contestação todos os factos relativos à defesa (art.° 53.°, n.° 1 do CPAC). Não deve ser considerado, em consequência, o referido facto mencionado nas alegações. Para mais, não foi assegurado o contraditório à contra-parte, ou seja, à recorrente sobre o mesmo facto.
   De acordo com a al. d) do n.° 1 do art.° 571.° do CPC:
   “É nula a sentença quando o juiz ... conheça questões de que não podia tomar conhecimento.”
   Aplicada subsidiariamente esta regra de processo civil por força do art.° 1.° do CPAC, verificou-se o excesso de pronúncia por o tribunal recorrido ter tomado em conta facto que não podia considerar, tornando nula a parte do acórdão recorrido em que aprecia o vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto em relação às falsas declarações.
   Com o assim decidido, fica prejudicada a apreciação da questão suscitada em seguida pela recorrente sobre a prova de direito estrangeiro ligada com o referido facto.
   
   
   2.6 Violação da norma de qualificação de infracção disciplinar – arranjar facilidades com o exercício de funções
   Quanto à violação dos deveres de isenção e de obediência por a recorrente ter aproveitado das suas funções de enfermeira no CHCSJ para arranjar facilidades no tratamento médico de si própria e dos seus familiares beneficiários, criando desigualdades para outras pessoas, a recorrente entende que não existe tal violação disciplinar por duas razões.
   Em primeiro lugar, para que houvesse infracção disciplinar seria indispensável a existência de violação de um dever funcional e no caso em apreço a recorrente não estava vinculada a nenhum deste. Em segundo lugar, não estavam comprovados a existência e conteúdo dos procedimentos internos, directivas e procedimentos estabelecidos cuja violação o acórdão recorrido imputa à recorrente.
   A recorrente salienta que o acesso dela e dos seus familiares a consultas no Centro Hospitalar Conde de São Januário (CHCSJ) e a obtenção de receitas de medicamentos directamente dos médicos sem se registar as doenças diagnosticadas e os medicamentos prescritos, fora do procedimento normal da marcação prévia, era por causa do seu conhecimento de alguns médicos e da amizade com estes, só com base nisso tinha pedido a eles. Tal como acontece com as pessoas titulares do direito ao acesso a cuidado médico, não existe neste caso violação de qualquer dever funcional.
   Acrescenta finalmente a recorrente que, uma vez foram os médicos que lhe passaram as receitas, se houve alguém que violou com a sua actuação deveres funcionais, esses sim só podiam ser os médicos.
   
   O acto impugnado imputa à recorrente que tinha “aproveitado as suas funções exercidas para arranjar facilidades no tratamento médico de si própria e dos seus familiares beneficiários, criando desigualdades para outras pessoas.”. Segundo o ponto C da parte de conclusão do relatório do processo disciplinar, parece que tal imputação fundamenta no facto de a recorrente e os seus familiares ter obtido consultas por meio irregular e “aproveitava o seu próprio cargo para procurar facilidades”.
   Ora, nos termos do art.° 281.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM):
   “Considera-se infracção disciplinar o facto culposo, praticado pelo funcionário ou agente, com violação de algum dos deveres gerais ou especiais a que está vinculado.”
   Sobre os deveres a que os funcionários e agentes devem obedecer, prescreve o n.° 1 do art.° 279.° do mesmo Estatuto:
   “1. Os funcionários e agentes, no exercício da função pública, estão exclusivamente ao serviço do interesse público, devendo exercer a sua actividade sob forma digna, contribuindo assim para o prestígio da Administração Pública.”
   São elencados ainda no seu n.° 2 os outros deveres gerais de isenção, de zelo, de obediência, de lealdade, de sigilo, de correcção, de assiduidade, de pontualidade e de não exercer actividades incompatíveis.
   Segundo a norma do referido n.° 1, tais deveres vinculam os funcionários públicos enquanto no exercício das suas funções e estão ligados a estas.
   No relatório do processo disciplinar refere apenas que a recorrente aproveitou o seu cargo para procurar facilidades. Dele não constam, no entanto, factos concretos que descrevem como são esses actos e quais são essas facilidades. No presente caso, parece que a recorrente aproveitava as relações com os médicos para obter consultas no CHCSJ ou receitas de medicamento directamente dos mesmos. No entanto, tais condutas não foram praticadas pela recorrente no exercício das suas funções de enfermeira, nem tinham relação directa com o exercício de funções. O que a recorrente aproveitava era, de facto, a facilidade de fácil contacto com os médicos que trabalhavam no CHCSJ, decorrente do facto de conhecer deles. Isso não constitui a vantagem tirada das funções que tinha exercido, sem ligação aos deveres funcionais de enfermeira.
   Embora as condutas da recorrente consubstanciam manifestamente desigualdade para outros utentes, para além de que os médicos que satisfizeram os pedidos da recorrente também não obedeceram o procedimento normal de atender consultas e passar receitas médicas, por tais condutas não estarem relacionadas com o conteúdo das funções de enfermeira, não estão integrados no âmbito do dever de isenção a que deve obediência previsto no n.° 3 do art.° 279.° do Estatuto. Por outro lado, nos autos também não há factos que demonstram a existência de qualquer regulamento interno sobre o procedimento de consultas, não há, em consequência, a violação do dever de obediência constante do relatório.
   Além disso, também não constam do presente processo mais elementos capazes de demonstrar que a recorrente violou outros deveres gerais ou especiais, por exemplo, se os referidos actos foram praticados no período de trabalho, se as respectivas facilidades foram obtidas em troca de execução concreta das funções de enfermeira, etc.
   Deste modo e em relação aos referidos actos da recorrente, a decisão administrativa impugnada padece do vício de violação de lei por violação das normas constantes dos art.° 281.° e 279.°, n.°s 1, 3 e 5 do ETAPM, devendo ser anulada.
   
   
   2.7 Violação do princípio da igualdade na vertente de proibição do arbítrio
   A recorrente entende que o acórdão recorrido violou o princípio da igualdade no sentido de proibição do arbítrio, pois a perseguição disciplinar apenas da recorrente sem a responsabilidade correlativa dos médicos faz com que o acto punitivo não pode deixar de ser uma decisão arbitrária.
   
   Improcedem manifestamente estes fundamentos apresentados pela recorrente. Na realidade, se a conduta da recorrente de conseguir directamente tratamento e receitas médicos para ela própria e os seus familiares, fora do procedimento normal de marcação e consulta, possa constituir já responsabilidade disciplinar, que é individual e autónoma, sem dependência de apuramento de responsabilidade e punição disciplinar em simultâneo de outros participantes.
   Há necessariamente participação por parte de médicos nas mencionadas condutas da recorrente. A falta de instauração de processos disciplinares contra os médicos pode implicar a violação dos respectivos deveres da entidade com competência disciplinar. Mesmo que fosse assim, não alterava a natureza da actividade da recorrente.
   
   
   2.8 Nulidade de sentença por falta de fundamentação – prestar falsas declarações
   Discorda a recorrente do entendimento do tribunal recorrido de que a Administração considerou a prestação de falsas declarações pela recorrente no processo disciplinar como uma circunstância levada em conta na fixação da pena e não como uma infracção disciplinar. O acórdão recorrido é nulo por falta de indicar os fundamentos desta conclusão nos termos do art.° 571.°, n.° 1, al. b) do CPC.
   
   Segundo o acto impugnado, constitui também infracção disciplinar, na óptica da entidade recorrida, “prestar falsas declarações por várias vezes no processo disciplinar para eximir-se das suas responsabilidades.”.
   Do ponto H da parte da conclusão do relatório do processo disciplinar também consta:
   “Para eximir-se da responsabilidade, a arguida alegou que ... Nestes termos, é procedente a prestação de falsas declarações da arguida, constituindo a violação do dever geral que os funcionários públicos devem cumprir, ou seja, violou o dever de lealdade previsto no ETAPM (art.º 279.º, n.º 2, al. d) e n.º 6 do mesmo artigo).”
   Com toda a clareza, a entidade recorrida considerou a prestação de falsas declarações pela recorrente como uma infracção disciplinar autónoma, não sendo simplesmente uma circunstância agravante a ser levada em conta na fixação da medida concreta da pena.
   Mais ainda, foi referida expressamente no acto impugnado apenas uma circunstância agravante prevista na al. h) do n.° 1 do art.° 283.° do ETAPM, isto é, a acumulação de infracções.
   Assim, no acórdão recorrido não foi entendido correctamente o sentido do acto administrativo impugnado.
   
   Consubstanciam a violação de lei a qualificação e a consequente punição da prestação de falsas declarações pela recorrente como uma infracção disciplinar autónoma no acto impugnado.
   As normas de Direito Penal aplicam-se a processo disciplinar com a devida adaptação (art.° 277.° do ETAPM). Um dos princípios aplicáveis é o princípio da presunção de inocência, na vertente em que deve ser a entidade administrativa competente para o apuramento de responsabilidade e punição disciplinar a apresentar as provas de infracção disciplinar, em vez de exigir a arguido provar a sua inocência. Por isso, o arguido não tem apenas o direito ao silêncio, mas também a isenção do dever de dizer a verdade incumbido a testemunhas.
   Ao contrário do que acontece com as testemunhas, ao arguido no processo disciplinar não deve imputar mais uma infracção disciplinar com a respectiva punição acumulada por causa de prestar falsas declarações no processo com o objectivo de se eximir ou aliviar a sua responsabilidade. Pode ter, naturalmente, consequência na sua responsabilidade disciplinar a conduta de arguido durante a fase de instrução. Por exemplo, a confissão espontânea da prática de infracção disciplinar constitui precisamente uma circunstância atenuante (al. b) do art.° 282.° do ETAPM).
   Não há violação do dever de lealdade previsto no art.° 279.°, n.° 2, al. d) do ETAPM a prestação de falsas declarações pela recorrente na qualidade de arguido no processo disciplinar. Assim, o acto impugnado deve ser anulado por vício de violação de lei.
   
   Face ao decidido neste ponto, fica prejudicada a apreciação da questão de violação do princípio de presunção de inocência e do seu direito fundamental de defesa suscitada pela recorrente relativa às falsas declarações. Uma vez anulado o acto impugnado, fica também prejudicada a consequência jurídica da procedência dos fundamentos da recorrente tratados no ponto 2.5.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar procedente o recurso, revogar o acórdão do Tribunal de Segunda Instância, dando provimento ao recurso contencioso.
   Sem custas ambas as partes nas duas instâncias, a recorrente por procedência e o recorrido por ser legalmente isento.
   
   
   Aos 29 de Junho de 2005.


           Juízes:Chu Kin (Relator)
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai
A Procurador-Adjunta presente na conferência:
Song Man Lei
1 Cfr. acórdão do TUI no processo 12/2002, Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM 2002, p. 385, e os dos processos n.°s 17/2003 e 5/2004 respectivamente de 2/6/2004 e 24/3/2004.
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Processo n.° 3 / 2005 61