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Processo n.º 123/2011 Data do acórdão: 2011-12-07
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – burla
  – falsificação de documento
  – concurso efectivo
S U M Á R I O
Por serem distintos os bens jurídicos que se procura tutelar no tipo legal de burla e no de falsificação de documento, não se pode entender que este crime já fica absorvido por aquele, pelo que é de passar a condenar o arguido como autor destes dois crimes, em concurso efectivo.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 123/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente (arguido): A




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Acusado pelo Ministério Público como autor material, na forma consumada, de um crime de burla de valor elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.o 3, do Código Penal vigente (CP) e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea a), do CP, veio o arguido A condenado, por acórdão proferido a fls. 198 a 201 dos respectivos autos de Processo Comum Colectivo n.o CR1-07-0038-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, como autor material de um crime consumado de burla de valor elevado (na pena, finalmente achada sob o mecanismo de atenuação especial da pena, de nove meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos), e ao mesmo tempo absolvido do crime de falsificação de documento (aí judicialmente entendido como já absorvido pelo crime de burla).
Inconformado, interpôs o arguido recurso para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar, a título principal, a invalidação dessa decisão, por erro de identificação, com violação do art.o 105.o do CP, do nome da entidade ofendida nos autos, e, subsidiariamente, a redução da pena (a seis meses de prisão, ao máximo) e do período da pena suspensa (a um ano) (cfr. o teor da motivação do recurso apresentada a fls. 206 a 209 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fl. 213) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 222 a 223v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância (em que ficou o arguido também advertido da eventualidade da alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos para os termos inicialmente acusados), cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal recorrido deu como materialmente provado o seguinte:
– em finais de Julho de 2006, o arguido A foi contratado pela “B – Companhia de Materiais Limitada” (B材料有限公司) para exercer as funções de representante de venda;
– em 3 de Outubro de 2006, o arguido, dentro dessa companhia, e sem autorização pelo responsável desta, aproveitou-se de papel em uso da companhia, para escrever à mão dois recibos, no sentido de que ele próprio, em nome da companhia, recebeu a quantia entregue em numerário pela Companhia C Limitada (C有限公司) no valor total de MOP40.320,00 (quarenta mil e trezentas e vinte patacas) a título de preço de mercadorias, tendo ele assinado nesses recibos e carimbado os mesmos com o carimbo da sua companhia;
– no mesmo dia, cerca das 16 horas, o arguido, munido desses dois recibos, deslocou-se à dita Companhia para exigir o pagamento do preço de mercadorias então em dívida;
– o gerente dessa Companhia, depois de receber os dois recibos em questão, de imediato pagou ao arguido a quantia de MOP40.320,00 em numerário;
– contudo, o arguido não entregou de imediato tal numerário à sua companhia;
– na noite do mesmo dia, o arguido perdeu todo esse numerário nos jogos de casino;
– em 28 de Outubro de 2006, o arguido foi despedido pela sua companhia;
– na manhã de 8 de Novembro de 2006, uma empregada da “B – Companhia de Materiais Limitada” telefonou para aquela sociedade comercial para pedir a entrega do preço de MOP40.320,00, e foi assim informada de que tal preço já tinha sido recebido pelo arguido;
– por isso, tal empregada comunicou de imediato o caso ao responsável da sua companhia;
– o arguido sabia claramente que sem obter a delegação de poderes ou o mandato pela companhia, não podia representar a companhia para receber o preço de mercadorias a pagar por qualquer cliente, mas no período de exercício das suas funções, ele utilizou a qualidade de representante da companhia, para receber preço de mercadoria entregue “pela cliente em questão” (sic), tendo enganando assim “a companhia em questão” (sic), com o intuito de ofender o património de outrem;
– o arguido, para receber o preço de mercadoria à dita cliente, utilizou o nome de “B – Companhia de Materiais Limitada” para falsificar recibos de pagamento de preço, com o intuito de enganar a cliente em questão, tendo comprometido a fé dos documentos em causa, bem como de obter interesse ilegítimo;
– o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta não era permitida por lei e como tal era punível;
– o arguido é delinquente primário;
– o arguido já indemnizou os danos à ofendida;
– a ofendida declarou que não pretendia mais o procedimento criminal contra o arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesta ordem de ideias, é de conhecer primeiro do assacado erro de identificação da entidade ofendida nos autos.
O arguido entende que a ofendida no crime de burla por ele praticado foi a tal Companhia C, e não a “B – Companhia de Materiais Limitada”.
Entretanto, afigura-se ao presente Tribunal ad quem que não existe o alegado erro de identificação da entidade ofendida no crime de burla, porquanto as expressões “pela cliente em questão” e “a companhia em questão” empregues na descrição dos factos provados relativos ao crime de burla, dão perfeitamente para significar materialmente tal Companhia C.
E mesmo que assim não se entendesse, sempre se diria que não se vislumbra qualquer motivo plausível para o arguido vir suscitar a questão de erro de identificação da entidade ofendida no crime de burla, uma vez que o crime de burla de valor elevado por ele praticado é um crime público.
E agora antes de se decidir da subsidiariamente pretendida redução da pena de prisão e do período da pena suspensa, importa proceder à alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal dos factos provados em primeira instância para os termos inicialmente acusados: de facto, por serem distintos os bens jurídicos que se procura tutelar no tipo legal de burla e no de falsificação de documento, não se pode entender que este crime já tenha ficado absorvido por aquele, pelo que é de passar mesmo a condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de burla de valor elevado, e de um crime de falsificação de documento.
Assim sendo, para o crime de burla de valor elevado, e mantendo-se o juízo de valor já tomado pelo Tribunal recorrido no sentido de activação da atenuação especial da pena, é de aplicar ao arguido, à luz dos padrões plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, a mesma pena concreta de nove meses de prisão (dentro da respectiva moldura, especialmente atenuada, de um mês a três anos e quatro meses de prisão – cfr. as disposições conjugadas dos art.os 211.o, n.os 1 e 3, 41.o, n.o 1, e 67.o, n.os 1, alíneas a) e b), do CP) (e não se optando pela pena de multa, por necessidade de prevenção deste crime).
E no referente ao crime de falsificação de documento, e sendo de accionar também o mecanismo de atenuação especial da pena, é de aplicar ao arguido, em observância dos padrões plasmados nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP, a pena de cinco meses de prisão, dentro da respectiva moldura, especialmente atenuada, de um mês a dois anos de prisão – cfr. as disposições conjugadas dos art.os 244.o, n.o 1, alínea a), 41.o, n.o 1, e 67.o, n.os 1, alíneas a) e b), do CP) (e não se optando pela pena de multa, por necessidade de prevenção deste crime, nem é de substituir essa pena concreta de cinco meses de prisão por igual tempo de multa, devido às exigências de prevenção do mesmo crime).
E em cúmulo jurídico, é de impor ao arguido a pena única de onze meses de prisão, encontrada nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP, depois de ponderados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, pena única essa a ser suspensa na sua execução por dois anos e seis meses (nos termos permitidos pelo art.o 48.o, n.os 1 e 5, do CP).
Entretanto, por força do princípio da proibição da reforma para pior, consagrado no art.o 399.o do Código de Processo Penal vigente, é de tomar a pena de nove meses de prisão achada no acórdão recorrido como sendo a pena única de onze meses de prisão, e o período de dois anos de suspensão da execução da pena como sendo o período de dois anos e seis meses de suspensão dessa pena única.
Com o que fica logicamente prejudicado o conhecimento da questão subsidiária de redução da pena e do período de suspensão da pena.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso e passar a condenar o arguido como autor material, na forma consumada, de um crime de burla de valor elevado, p. e p. pelo art.o 211.o, n.os 1 e 3, do Código Penal, na pena de nove meses de prisão, e de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo art.o 244.o, n.o 1, alínea a), do mesmo Código, na pena de cinco meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, na pena única de onze meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos e seis meses, e, não obstante, tomar, por força do princípio de reformatio in pejus, a pena de nove meses de prisão e o período de dois anos de suspensão da pena, aplicada e achada no acórdão recorrido, como sendo a pena única dos ditos dois crimes e o período de suspensão da execução da pena única.
Custas do recurso pelo arguido, com três UC de taxa de justiça e mil e quinhentas patacas de honorários ao seu Exm.o Defensor Oficioso, a serem adiantados pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 7 de Dezembro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
(com declaração de voto em anexo)

Processo nº 123/2011 (Autos de recurso penal)
Data: 07/12/2011


Declaração de voto

Vencida por seguintes razões:

Não concordo com a decisão condenatória do arguido recorrente pela prática de um crime de falsificação de documento, p.p. pelo art.244º nº1 al.a) do Código Penal, por entender que os dois recibos “falsificados” pelo arguido só servem para a prática do crime de burla em causa, e carece a autonomia. Assim sendo, entendo que o crime de falsificação de documento deve ser absorvido pelo crime de burla de valor elevado, p.p. pelo art.211º nº1 e 3 do Código Penal, e devendo, nesta parte, ser mantido o decidido pelo Tribunal a quo.


A Primeira Adjunta

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Tam Hio Wa



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