Processo n.º 730/2011 Data do acórdão: 2011-12-15
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– passagem de moeda falsa
– burla
– uso de cartão de crédito falso
– meio enganoso de recebimento de dinheiro
S U M Á R I O
Como o arguido recorrente utilizou o cartão de crédito falso não como uma moeda propriamente destinada a pagar algo, mas sim para que a loja ofendida lhe entregasse dinheiro em numerário, ou seja, não o utilizou como um meio de pagamento que é função própria da moeda, mas sim como um meio para recebimento de dinheiro, deve decair a aplicabilidade, ao caso, do tipo legal de passagem de moeda falsa, e, em substituição, ser perfeitamente aplicável o tipo legal de burla, porquanto, de facto, a loja ofendida foi enganada pelo recorrente (por este lhe ter exibido um cartão de crédito falsificado como se fosse verdadeiro para lograr o seu intuito) a praticar acto de entrega de dinheiro a este, tendo sofrido, consequente e efectivamente, prejuízo patrimonial.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 730/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido em versão bilingue a fls. 241 a 250 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-11-0044-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou o 1.o arguido A (XXX), aí já melhor identificado, condenado como autor material, na forma consumada, de um crime continuado de passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador, p. e p., conjugadamente, pelos art.os 254.o, n.o 1, 252.o, n.o 1, 257.o, n.o 1, alínea b), e 29.o, n.o 2, do Código Penal vigente (CP), na pena de dois anos e sete meses de prisão efectiva, enquanto o 2.o arguido B (XXX), também já aí melhor identificado, ficou absolvido de quatro imputados crimes de passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador.
Incoformado, veio recorrer o 1.o arguido condenado para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a diminuição da sua pena para dois anos de prisão, invocando para tal a sua confissão integral e sem reservas dos factos e a falta de antecedentes criminais (cfr. a motivação apresentada a fls. 265 a 266v dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 271 a 273) no sentido de improcedência da argumentação do recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 286 a 287v), entendendo que não havia mais margem para a pretendida redução da pena, e que in casu não se verificava a figura de crime continuado, mas sim situação de concurso efectivo de crimes.
Feito o exame preliminar (em sede do qual se ordenou a notificação do arguido recorrente para se pronunciar sobre a eventual alteração oficiosa da qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância nos termos juridicamente opinados pela Digna Procuradora-Adjunta, ou, em alternativa, nos termos observados pelo relator, no sentido de os factos então provados poderiam eventualmente tornar o próprio recorrente penalmente responsável apenas pela autoria material de um crime consumado de burla de valor elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 3, e 196.o, alínea a), do CP), corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Consta da fundamentação fáctica do acórdão ora recorrido, o seguinte conteúdo (na sua versão portuguesa):
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O 1º arguido A trabalha para uma rede de falsificação de cartões de crédito actuando como "comprador" (usando cartões de crédito fornecidos pela rede de falsificação de cartões de crédito para efectuar transacções em diferentes estabelecimentos comerciais).
Em 6 de Dezembro de 2010, cerca das 03H06, o 1º arguido na companhia de um indivíduo apenas conhecido por "XXX", deslocou-se à "Joalharia e Relojoaria XX", onde disse ao trabalhador que pretendia efectuar o levantamento de HKD$10.000,00, em numerário, e na sequência disso, entregou o cartão de crédito falso número 4802 1325 4564 2400 e o seu bilhete de identidade de residente de Hong Kong ao trabalhador. Finalizada a transacção, o 1° arguido obteve com sucesso o montante de HKD$ 10.000,00, tendo, incluindo as despesas de formalidades, efectuado a transacção no montante de HKD$ 11.000,00, utilizando tal cartão. O interveniente "XXX" presenciou de longe o decorrer de toda esta transacção.
O 1º arguido, na companhia do interveniente "XXX", ainda conseguiu com sucesso 3 levantamentos de numerário através do cartão de crédito:
Em 6 de Dezembro de 2010, cerca das 3H20, o 1º arguido na "Casa de Penhor XXX" conseguiu levantar em numerário o montante de MOP$16.200,00 através do cartão de crédito falso n.º4802 1325 4564 2400.
Em 6 de Dezembro de 2010, cercadas 3H59, o 1º arguido na "Casa de Penhor XXX" conseguiu levantar em numerário o montante de MOP$43.200,00 através do cartão de crédito falso n.º4802 1325 4564 2400.
Em 6 de Dezembro de 2010, cerca das 4H08, o 1º arguido na "Casa de Penhor XXX" conseguiu levantar em numerário o montante de MOP$54.000,00 através do cartão de crédito falso n.º4802 1325 4564 2400.
Após o 1º arguido abandonar o local, a supracitada loja descobriu que o 1º arguido utilizou um cartão de crédito falso, pelo que foi apresentar queixa à polícia.
O 1º arguido, para obter interesses ilegítimos, agindo em conluio com a rede de falsificação de cartões de crédito e actuando como "comprador", utilizou várias vezes cartão de crédito falso fornecido por terceiros para proceder a transacções nos vários estabelecimentos comerciais de Macau, causando prejuízos a terceiros.
O 1º arguido agiu de forma livre, voluntário e consciente ao praticar a aludida conduta, bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
O arguido A era cozinheiro e auferia mensalmente cerca de oito mil a dez mil dólares de Hong Kong (HKD$8,000 – MOP$10,000).
Tem como habilitações académicas o 3º ano do ensino secundário e tem a mãe a seu cargo.
Conforme o CRC, os dois arguidos são primários.
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Factos não provados:
Não se provaram quaisquer outros factos relevantes da acusação e que não estejam em conformidade com a factualidade acima assente, nomeadamente:
O 2º arguido B é membro de uma rede de falsificação de cartões de crédito e actuava como "vigilante" (encarregue de ajudar os "compradores" e a rede de falsificação de cartões de crédito a entrarem em contacto e coordenação, bem como vigiar/observar os "compradores" no decurso da utilização do cartão de crédito).
Em Novembro a Dezembro de 2010, o 1º arguido obteve vários cartões de crédito falsos junto do 2º arguido e do interveniente "XXX", entre os quais um cartão de crédito de n.º 4802 1325 4564 2400.
No início de Dezembro de 2010, o 1º arguido deslocou-se de Hong Kong a Macau juntamente com o interveniente "XXX", trazendo os acima referidos cartões de crédito.
Em 9 de Dezembro de 2010, aquando o 2º arguido pretendia levar o 1º arguido para praticar crime em Macau, foi interceptado pelos guardas do posto fronteiriço do Porto Exterior.
O 2º arguido para obter interesses ilegítimos, agindo em conluio com a rede de falsificação de cartões de créditos, e actuando como "vigilante", encarregou-se em ajudar os compradores e à rede entrarem em contacto, vigiando os compradores durante o decurso da utilização do cartão de crédito, causando prejuízos a terceiros.
E demais elementos subjectivos do crime de passagem de moeda falsa de concerto com o falsificador imputado ao 2º arguido.>> (cfr. o teor literal de fls. 247 a 248v dos autos).
Por outro lado, do exame dos autos, não se detecta que a “Joalharia e Relojoaria XX” concretamente ofendida nos factos praticados pelo recorrente em 6 de Dezembro de 2010, cerca das 03:06, tenha apresentado queixa criminal.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, é de considerar que o recorrente só colocou a questão de exagero da pena como objecto do seu recurso.
Entretanto, antes de se debruçar sobre essa questão, cabe decidir da alteração oficiosa da qualificação jurídica dos factos.
Pois bem, do elenco de todos os factos descritos como provados no texto da decisão recorrida, resulta que o arguido recorrente utilizou o cartão de crédito aí referido não como uma moeda propriamente destinada a pagar algo, mas sim para que as lojas ofendidas lhe entregassem dinheiro em numerário, ou seja, não o utilizou como um meio de pagamento que é função própria da moeda, mas sim como um meio para recebimento de dinheiro.
Por isso, deve decair a aplicabilidade, ao caso concreto dos autos, do tipo legal de passagem de moeda falsa, e, em substituição, ser perfeitamente aplicável o tipo legal de burla, porquanto as lojas ofendidas foram enganadas pelo recorrente (por este lhes ter exibido um cartão de crédito falsificado como se fosse verdadeiro para lograr o seu intuito) a praticar actos de entrega de dinheiro a este, tendo sofrido, consequente e efectivamente, prejuízo patrimonial.
Entretanto, os mesmos factos provados só dão para condenar o recorrente como autor material, na forma consumada, de um crime (público) de burla de valor elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 3, e 196.o alínea a), do CP, concretamente por causa dos factos praticados em 6 de Dezembro de 2010, no período das 03:20 às 04:08, contra a “Casa de Penhor XXX”, no valor total de MOP113.400,00, entregues por esse estabelecimento comercial ao recorrente numa mesma deslocação deste àquele e naturalmente no contexto de um mesmo plano delinquente, embora formalmente à luz das três transacções electrónicas processadas por um mesmo cartão de crédito falsificado, fraccionadas em MOP16.200,00, MOP43.200,00 e MOP54.000,00, às 03:20, 03:59 e 04:08, respectivamente. Para constatar isto, basta atender a que foi provado que esse estabelecimento só descobriu que o recorrente utilizou cartão de crédito falso depois de este ter já abandonado o local, pelo que se trata, neste caso, e realmente, de um só crime consumado (e não continuado) de burla de valor elevado.
E quanto aos factos provados relativos à “Joalharia e Relojoaria XX”, já não se pode condenar o recorrente como autor de um crime de burla simples contra essa loja, visto que a mesma loja não chegou a apresentar queixa criminal desses factos, segundo os quais ela sofreu HKD10.000,00 de prejuízo patrimonial.
Assente assim a autoria, pelo arguido recorrente, de um só crime de burla de valor elevado, punível com prisão até cinco anos ou com multa até 600 dias (e não sendo de optar pela pena de multa, dadas as necessidades de prevenção, pelo menos, geral do crime em questão), é de impor-lhe, vistas todas as circunstâncias fácticas já apuradas em primeira instância e sob a égide dos critérios da medida da pena definidos nomeadamente nos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do CP vigente, dezoito meses de prisão, que não se suspende na sua execução atentas também as elevadas exigências de prevenção geral do crime, praticado com cartão de crédito falsificado.
Com o que já não se torna mister conhecer da questão do exagero da pena posta no recurso, por o tipo legal de crime a respeito do qual foi esgrimida a existência de excesso na medida da respectiva pena já se encontrar substituído por outro, ao qual acabará por ser aplicada uma pena de prisão mais leve do que a pretendida pelo próprio recorrente.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância, passando a condenar o arguido recorrente A como autor material, na forma consumada, de um só crime de burla de valor elevado, p. e p. pelos art.os 211.o, n.os 1 e 3, e 196.o, alínea a), do Código Penal vigente, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão efectiva, o que prejudica o conhecimento da questão de exagero da pena unicamente posta na sua motivação do recurso.
Sem custas nesta Segunda Instância.
Fixam em mil e seiscentas patacas de honorários a favor do Exm.o Defensor Oficioso do recorrente, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 15 de Dezembro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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