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Processo nº 6/2010
(recurso contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Date do acórdão: 01 de Dezembro de 2011
Descritores:
-Princípio do antiformalismo ou “pro actione”
-Erro manifestamente indesculpável
-Sanação do erro
-Estabilidade da instância
-Falta de objecto e irrecorribilidade

SUMÁRIO:

I- O princípio do favorecimento do processo ou “pro actione” deve conferir o primado do mérito sobre o da forma na condução do processo, sobrelevar as virtudes da substância e da matéria sobre os desmandos adjectivos e concretizar o acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, em vez de privilegiar decisões abrigadas em defeitos processuais.

II- Para efeito da rejeição liminar assente no erro na identificação do autor do acto recorrido (art. 46º, nº2, al. f), do CPAC), deve considerar-se manifestamente indesculpável o erro grosseiro, escandaloso, crasso, notório, aquele que em que uma pessoa diligente e medianamente atinada não deveria cair se colocada na posição do recorrente.

III- A sanação a que se refere o art. 59º, nº2, do CPAC, no que ao erro na identificação do autor do acto se refere, está limitado aos casos em que, não tendo havido rejeição liminar do recurso, o verdadeiro autor do acto impugnado vem ao processo apresentar contestação.
Já não serve para sanar os casos em que o erro não se limitou à identificação do autor do acto, mas também atinge a identificação do próprio acto.

IV- O art. 212º do CPC, dedicado à estabilidade objectiva e subjectiva da instância, admite as excepções “…consignadas na lei”, sendo que a sanação prevista no art. 59º, nº2 do CPAC, mediante a intervenção do verdadeiro autor do acto impugnado contenciosamente representa uma dessas excepções à estabilidade subjectiva.
Processo nº 6/2010
(Recurso Jurisdicional em matéria administrativa)

Acordam no tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

“A”, com sede na Estrada da Baía de Nossa Senhora da Esperança, in “B, Executive offices, L2”, Taipa, Macau, recorreu contenciosamente do acto do Ex.mo Subdirector dos Serviços de Turismo, de 23 de Fevereiro de 2009 que determinara o encerramento imediato do estabelecimento denominado “C” situado na Loja nº X, level 3, D, do B e lhe impusera a multa de MOP$ 30.000,00.
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Apresentada a contestação pelo Ex.mo Director dos Serviços de Turismo, foi proferido despacho pelo Ex.mo Juiz “a quo” a determinar a notificação da recorrente para se pronunciar sobre a promoção do Ex.mo Magistrado do M.P. quanto à eventual rejeição do recurso por falta de objecto (cfr. fls. 51 e 52 dos autos).
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Veio então a recorrente requerer a relevância do manifesto lapso cometido na petição quanto à identificação do acto e à sua autoria.
*
Foi, na oportunidade, decidido rejeitar o recurso nos termos do despacho de fls. 56 e 57 dos autos e é, agora, dessa decisão que vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente “A” formula as seguintes conclusões:
   1.a A Recorrente identificou na petição de recurso, como sendo o acto recorrido, o despacho do Subdirector dos Serviços de Turismo, datado de 23 de Fevereiro de 2009.
   2.a À petição de recurso juntou a Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, n.º 1, al. a) do CPTA (“Documento comprovativo do acto recorrido”), a notificação do despacho do Director dos Serviços de Turismo de 18 de Maio de 2009, proferido em sede de recurso hierárquico necessário.
   3.a É este último despacho que a Recorrente pretende efectivamente impugnar.
   4.a Existe, pois, manifesta contradição entre a identificação do despacho recorrido na petição de recurso e o documento junto com o qual a Recorrente faz a prova da existência do acto recorrido.
   5.a A Recorrente não foi notificada nos termos do disposto no artigo 59.º, n.º 1, do CPTA para corrigir a irregularidade da petição de recurso.
   6.a A contestação ao recurso contencioso de anulação foi apresentada pelo Director dos Serviços de Turismo, verdadeiro autor do acto recorrido, devendo dar-se por sanado o erro, ao abrigo do disposto no artigo 59.º, n.º 2, do CPTA.
   7.a A Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da RPC consagra, no seu artigo 36.º, o princípio do acesso efectivo à justiça.
   8.a O acesso ao Direito impõe a consagração do princípio do favorecimento do processo.
   9.a A imposição de obstáculos desproporcionados de ordem processual é incompatível com a efectividade da protecção jurisdicional.
   10.a O CPAC confere ao juiz, pelo seu art. 59.º, nº1, o poder de convidar o recorrente a corrigir deficiências ou irregularidades da petição, poder este que constitui uma manifestação, entre outras, do princípio do inquisitório, (princípio formalmente consagrado no art. 67º do CPAC).
   11.a Quando a lei diz que a petição pode ser corrigida a convite do tribunal, não significa com isso que o exercício do poder de convidar à correcção dependa de uma livre apreciação de oportunidade à luz do condicionalismo específico do andamento do processo; trata-se, pelo contrário, de um instrumento de concretização da garantia de recurso contencioso.
   12.a A inadmissibilidade insanável do recurso apenas deverá ocorrer nos casos em que o erro na indicação tenha provocado incerteza absoluta na individualização do sujeito ou do órgão.
   13.a A manifesta indesculpabilidade ou censurabilidade do erro deverá reflectir necessariamente uma incapacidade ou dificuldade de apreensão pelo julgador do real objecto do recurso.
   14.a Na interpretação das normas processuais deve privilegiar-se a interpretação que melhor garanta a tutela efectiva do direito e a concretização da justiça material.
   15.a A contestação foi apresentada pela verdadeira entidade recorrida, o Director dos Serviços de Turismo.
   16.a O erro na identificação do acto recorrido deveria, mesmo, considerar-se sanado sem necessidade de rectificação da petição, por força do disposto no artigo 59.º, n.º 2, do CPTA.
   17.a A douta sentença recorrida violou, pois, o disposto no artigo 36.º da Lei Básica da RAEM e no artigo 59.º, n.º 1 e n.º 2, do CPTA.
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Não houve contra-alegações.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido do improvimento do recurso, em termos que aqui damos por integralmente reproduzidos.

*
Cumpre decidir.
***

II- Os Factos

1- Teve lugar um procedimento sancionatório por funcionamento ilegal do restaurante italiano “C” no D, level 3, do B.

2- Por despacho do Ex.mo do Subdirector do Turismo datado de 23/02/2009, exarado sobre o Relatório nº 60/DI/2009, de 17/02/2009, no uso de competências delegadas pelo Despacho nº 13/DIR/2003, de 17 de Julho, foi determinado o encerramento do referido estabelecimento e aplicada a multa de MOP$30.000,00, nos termos do nº1 e da al.b), do nº2, do art. 67º do DL nº 16/96/M, de 1/04, por infracção ao art. 30º desse diploma (fls. 72 a 74 do apenso instrutor).

3- Desse despacho foi a recorrente notificada (mandado de notificação nº 81/2009, de 23/02/2009: fls. 75 do apenso instrutor).

4- Dessa decisão interpôs a recorrente recurso hierárquico para o Director dos Serviços de Turismo em 02/03/2009 (fls. 86 a 92 do apenso instrutor).

5- EM 18/05/2009, o Ex.mo Director dos Serviços de Turismo concordou com a proposta de negar provimento ao recurso hierárquico (fls. 109 a 111 e 112 a 114 do apenso instrutor).

6- Dessa decisão foi a recorrente notificada pelo mandado de notificação nº 158/2009 (fls. 115 do apenso instrutor e 18 dos autos.

7- A petição inicial dos autos de recurso contencioso indica como objecto do recurso o acto praticado pelo “…senhor Subdirector dos Serviços de Turismo, de 23 de Fevereiro de 2009…” que lhe impusera o encerramento imediato do estabelecimento denominado “C” situado na Loja nº X, level 3, D, do B e lhe aplicara a multa de MOP$ 30.000,00 (fls 2 do processo).

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III- O Direito

1- O recurso foi rejeitado com base no seguinte despacho:

“ Por petição de 24/06/2009, a recorrente A, vem interpor o presente recurso contencioso do despacho do Exmº Senhor Subdirector dos Serviços de Turismo, de 23/02/2009, pelo qual se determinou o encerramento imediato do estabelecimento denominado Restaurante “C” e a condenação da recorrente na multa de MOP$30.000,00.
*
O Mº Pº suscitou a excepção da falta de objecto, por entender que o acto recorrido foi absolvido pelo despacho do Sr. Director, de 18/05/2009, proferido em consequência do recurso hierárquico impróprio necessário, daí que o acto recorrido perdeu a sua autonomia.
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Devidamente notificada, a recorrente vem pedir que seja relevado o lapso manifesto da identificação do autor e da data do acto recorrido, requerendo ainda a rectificação do erro de escrita nos termos do art.º 244º do Código Civil.
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Cumpre agora decidir.
O acto recorrido foi praticado pelo Sr. Subdirector no uso da competência delegada pelo Sr. Director dos Serviços de Turismo, que se encontra sujeita a impugnação administrativa necessária, pelo que não é um acto contenciosamente recorrível nos termos do art.º 28º do CPAC.
Por outro lado, em consequência do recurso hierárquico impróprio necessário interposto pela recorrente, o Sr. Director dos Serviços de Turismo veio proferir o despacho de 18/05/2009.
Apesar o aludido despacho do Sr. Director manter a decisão do Sr. Subdirector de 23/02/2009, certo é que esta fica absolvida por aquele e perdeu assim a sua autonomia ao nível jurídico.
Quanto ao pedido da rectificação do erro de escrita nos termos do art.º 244º do CC, entende este Tribunal que não é de aceitar, por não estar em causa um erro na identificação do autor e da data do acto recorrido.
Vejamos.
Na sua petição inicial, o recorrente indicou, com toda a clareza, o acto recorrido e o respectivo autor, que é o despacho do Sr. Subdirector dos Serviços de Turismo, de 23/02/2009.
Além disso, justificou ainda a recorribilidade desse acto (v. o art.º 1 º da petição inicial), sem mínima referência do recurso hierárquico impróprio necessário por si interposto contra o acto recorrido.
Não existe, portanto, qualquer erro na identificação do autor e data do acto recorrido.
O erro reside na escolha do acto recorrido ou na identificação do próprio acto recorrido (e não o seu autor e data).
Mesmo que seja um erro na identificação do acto recorrido, rectificação do erro só é admissível antes da citação da entidade recorrida, pois, após a citação, a instância toma-se estável quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salva as possibilidades de modificação consignadas na lei (cfr. art.º 212º do CPC, aplicável aos presentes autos por força do art.º 1º do CPAC).
No caso em apreço, já foi feita a citação da entidade recorrida, que é o autor do acto recorrido, Sr. Subdirector dos Serviços de Turismo.
Não obstante o citado não ter apresentado a contestação, quem o fez foi o Sr. Director dos Serviços de Turismo, mas tal não afecta a estabilidade da instância acima referida, o que gera é simplesmente a ilegitimidade do autor da contestação, por não ser parte da relação controvertida.
Não é de aplicar o nº 2 do art.º 59º do CPAC, porque como já referimos anteriormente, não estamos em causa um erro na identificação do autor do acto recorrido.
*
Nos termos e fundamentos acima expostos, o Tribunal julga procedente a excepção suscitada pelo MºPº e consequentemente rejeita o presente recurso contencioso, por falta de objecto.
Custas pela recorrente com 6 UC de taxa de Justiça”

Pela transcrição acabada de fazer, vê-se que a decisão tomada de rejeitar o recurso assenta na circunstância de a recorrente ter escolhido para objecto de recurso um acto administrativo irrecorrível.

Mas, mesmo admitindo que a situação possa enquadrar-se na categoria do erro na identificação do acto impugnado e do seu autor, para o despacho recorrido ainda a rectificação da petição estaria fora de causa, face ao princípio da estabilidade da instância vertido no art. 212º do CPC, aqui aplicável “ex vi” art. 1º do CPAC.

Parte da questão decidenda é, pois, esta: Errou a recorrente na identificação do acto impugnado? Podia apresentar nova petição corrigida?

O tema equacionado é, como se adivinha, de índole processual e passa pela análise dos arts. 51º e 59º do CPAC.
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2- Como é sabido, um dos requisitos a que a petição inicial de recurso contencioso deve obedecer é a indicação do acto recorrido e o seu autor (art. 42º, nº1, al. c), do CPAC). No caso em apreço, a recorrente densificou o objecto do recurso como sendo a decisão de 23/02/2009 do Ex.mo Subdirector dos Serviços de Turismo. Portanto, não se pode dizer que tivesse incumprido a sua obrigação adjectiva/processual.

E como, por outro lado, a recorrente, nessa petição, nenhuma alusão tinha feito ao recurso hierárquico que, sabemos agora, interpôs daquele despacho, o Ex.mo Juiz da 1ª instância mandou citar a entidade demandada.

Se se reparar bem, o art. 47º, nº1 do CPAC confirma ao juiz o que vinha já prescrito no artigo anterior: o dever de rejeição liminar por ineptidão e por verificação da circunstância prevista na alínea f), do nº2 do artigo 46, ou seja, por erro na identificação do autor do acto recorrido ou por falta de identificação dos contra-interessados. Trata-se de um dever imperativo, este que a lei comina ao juiz, mas que carece da concomitância de uma condição: o de que tanto o erro, como a falta sejam “manifestamente indesculpáveis”.

Portanto, se ao juiz for possível dar-se conta do erro e da falta, não deixará de proferir despacho de rejeição sempre que a situação concreta for de tal ordem que se não possa conceder qualquer margem de desculpabilidade ao recorrente.

E, efectivamente, costuma girar em redor do conceito de desculpabilidade do erro ou da falta uma noção de “incerteza absoluta” (Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 3ª edição, pag. 275), ou seja, uma situação em que o recorrente manifestamente não pode de todo adivinhar qual o acto comunicado e a quem pertence a sua autoria. O contrário da ideia pressente-se logo: o problema é atirado para o plano da culpa do recorrente se, ante elementos que o deveriam induzir a não errar, em vez disso troca actos, troca conteúdos e troca autorias.

Nesse sentido, tem a jurisprudência exortado a que se deva considerar manifestamente indesculpável o erro grosseiro, escandaloso, crasso, notório, aquele que em que uma pessoa diligente e medianamente atinada não deveria cair se colocada na posição do recorrente (v.g. Ac. STA, de 15/10/1999/Pleno, Proc. nº 036891, de 24/04/2001, Proc. nº 047244 e de 18/03/2010, Proc. nº 045/10).

Ou ainda manifestamente indesculpável se o erro «for de tamanha evidência que só tenha sido possível por extremo descuido ou hostilidade perante o regime legal» (Acs. do STA de 2001.12.19, Proc. nº 048 874 e de 03/05/2005, Proc. nº 0183/05).

E tudo isto porque os princípios anti-formalista e pro actione postulam que, ao nível dos pressupostos processuais, se privilegie uma interpretação que se apresente como a mais favorável ao acesso ao direito e a uma tutela jurisdicional efectiva (Ac. do STA de 03/11/2005, Proc. nº 0299/05; tb. Ac. de 2/05/2001, Proc. nº 044163).

Princípios à luz dos quais, «a manifesta indesculpabilidade ou censurabilidade do erro, a que alude o art. 40º, nº 1, al. a) da LPTA, deverá reflectir necessariamente uma incapacidade ou dificuldade de apreensão, pelo julgador, do real objecto do recurso, ou seja, do acto a que o recorrente dirige efectivamente a sua censura, devendo considerar-se desculpável o erro de identificação sempre que dos termos da petição possa divisar-se, sem dúvida, o verdadeiro (ainda que incorrectamente designado) objecto da impugnação» (citado acórdão de 03/11/2005).

Ora, acontece que daquele despacho proferido pelo Subdirector dos Serviços de Turismo, recorreu hierarquicamente a interessada para o Ex.mo Director daqueles Serviços, sendo certo que esta entidade “ad quem” viria a proferir acto expresso de indeferimento de que deu a devida nota de notificação através do mandado nº 158/2009, que a própria recorrente juntou à petição como modo de justificar a sua pretensão reactiva.

E se assim é, torna-se incompreensível que, perante um ofício (ver fls. 18) que lhe descreve a decisão (de indeferimento do recurso), o informa da data respectiva (18/05/2009), lhe transmite a qualidade funcional do seu autor (o subscritor, Director dos Serviços, João Manuel da Costa Antunes), lhe comunica a consequência (manutenção da decisão recorrida de encerramento do estabelecimento e aplicação da multa), ainda assim a recorrente tenha acometido em recurso contencioso o acto que ela mesma tinha integrado no objecto do recurso hierárquico.

Portanto, estamos em crer que havia aqui largas razões para se dar por indesculpável este erro com rejeição liminar imediata.

O certo é que, mesmo estando ali o referido ofício, apesar disso foi proferido despacho de citação.
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3- E por ser assim, parece-nos que agora o problema se transfigura um pouco para reclamar o socorro do art. 59º do CPAC.

Esse artigo afirma que, não tendo havido lugar a rejeição liminar com esse fundamento, o erro na identificação do autor do acto recorrido se considera sanado, desde que o verdadeiro autor do acto tenha apresentado contestação. É um preceito que faz apelo aos princípios da cooperação e do favorecimento do processo ou “pro actione” que conferem o primado do mérito sobre o da forma na condução do processo, que sobreleva as virtudes da substância e da matéria sobre os desmandos adjectivos, que concretiza o acesso ao direito e à tutela judicial efectiva, em vez de privilegiar decisões abrigadas em defeitos processuais.

E nessa esteira, sustenta-se a ideia de que o processo deve prosseguir contra a verdadeira entidade autora do acto, aquela que realmente se apresentou a contestar (neste sentido, ver Ac. do STA de 27/01/1999, Proc. nº 043988), o que por maioria de razão se deve sufragar se a contestante nem sequer tiver suscitado a questão do erro para se defender exceptivamente.
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4- Mas, estará o problema completamente resolvido? Ou seja, pelo facto de o Ex.mo Director ter apresentado contestação, estará a se o erro sanado? Não está!

Não está por três razões.

1ª razão: Em primeiro lugar, porque o art. 59º ao permitir a sanação limita a hipótese aos casos em que o erro reside apenas na identificação do autor do acto.

Um exemplo: Pode acontecer que o acto X seja imputado ao autor Y, quando na verdade ele foi praticado pelo autor Z. Aí, a sanação está justificada se a legalidade do acto recorrido X vier a ser defendido pelo seu verdadeiro autor, Z. Para este caso, a norma ajusta-se perfeitamente e é totalmente compreensível a sua estatuição. Se a situação, afinal de contas, era de ilegitimidade passiva, a intervenção do verdadeiro autor do acto impugnado repõe a legitimidade e o processo está em termos de prosseguir.

Mas, diferente é o caso em que ao acto X, imputado ao autor Y, estarem desferidos vários vícios, e posteriormente se descobre que o acto que se quer pôr em crise é o acto W, praticado pelo autor Z. O erro aqui é duplo: acto e autoria. É o nosso caso. Ora, mal se aceitaria uma sanação nesta segunda hipótese porque o autor W só está em boas condições de defender a bondade do seu acto, não o acto praticado por outrem, mesmo que inferior hierárquico. E isso não permite a lei que se tolere, até porque pode dar-se o caso de não serem necessariamente coincidentes os vícios imputáveis ao acto praticado pelo inferior hierárquico e ao acto proferido pelo seu superior em sede de recurso, por diferentes os conteúdos de cada um e respectivas dispositividades.

2ª razão: Em segundo lugar, porque o despacho do M.mo Juiz da 1ª instância em causa só enveredou pelo caminho do erro em jeito de subsidiariedade. Disse, a propósito, que se o caso fosse de erro na identificação do acto e do seu autor, então o problema haveria de ser visto à luz da estabilidade da instância plasmado no art. 212º do CPC.

É claro que este argumento só em parte procede, porque o preceito invocado não cobre situações como aquelas que aqui discutimos e para as quais a lei prescreveu o remédio. Vejamos.

A estabilidade do art. 212º do CPC desdobra-se em estabilidade objectiva (a instância deve manter-se a mesma quanto ao pedido e causa de pedir) e a estabilidade subjectiva (a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas). Mas não deixa de contemplar excepções “…salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei”. No caso em apreço, a intervenção do verdadeiro autor do acto impugnado está permitida pela própria lei e, por isso, o caso está coberto pela excepção e não pela regra do art. 212º citado.

Mas já procede noutra parte. É que, efectivamente, a mudança de acto numa instância já em curso é uma modificação objectiva. E a modificação objectiva, embora seja tolerada dentro das “…possibilidades…consignadas na lei” (art. 212º, cit.), só é permitida na lei do processo contencioso nos casos de:

i) Revogação com efeitos retroactivos (art. 79º, nº1, do CPAC);
ii) Modificação ou substituição do acto (art. 79º, nº2, do CPAC);
iii) Revogação, modificação ou substituição sem efeitos retroactivos (art. 80º, nº1, do CPAC);
iv) Revogação, modificação ou substituição sem efeitos retroactivos mas com nova regulamentação (art. 80º, nº2, do CPAC);
v) Superveniência de acto expresso ou no caso de conhecimento posterior de acto expresso após a interposição de recurso de acto tácito (art. 81º do CPAC);
vi) Invocação de novos fundamentos pelo Magistrado do M.P. (art. 74º, nº4, do CPAC).

Ora, como se vê, nenhum dos casos citados dá cobertura à situação dos autos em que, num processo em andamento, o recorrente pretende mudar o acto por se ter apercebido de que o acto que escolheu para objecto do recurso era irrecorrível.

3ª razão: Em terceiro lugar, porque o despacho em crise acabou por assentar a sua fundamentação decisiva no facto de o acto impugnado já não ter autonomia jurídica e ter perdido natureza de acto recorrível, a partir do momento em que foi atacado em sede de recurso hierárquico e ser absorvido pela decisão do orgão “ad quem”.

Esta foi, sem dúvida, a razão principal invocada pelo despacho recorrido. Não foi um erro de escrita, nem de identificação do acto aquele que motivou o despacho sob censura. O erro que elegeu foi de escolha do acto recorrido. Uma má escolha, porque recaída sobre um acto primário irrecorrível contenciosamente, já que sujeita a recurso hierárquico necessário cuja decisão secundária deveria, essa sim, ser sujeita a recurso contencioso.

Este raciocínio está certo. Efectivamente, fosse por má, mas consciente, escolha do acto, fosse por distracção, desconhecimento ou deficiente percepção do conteúdo da notificação (mas ele era tão cristalino), a verdade é que o acto secundário foi bem comunicado à recorrente. E, porque o acto do Ex.mo Director foi praticado no âmbito de uma impugnação administrativa necessária, o que se deve concluir é que o acto do Ex.mo Subdirector (acto primário) era acto não definitivo. De modo que, mesmo sendo confirmativo do acto primário, só o acto praticado no procedimento de segundo grau se apresenta como definitivo e, portanto, contenciosamente recorrível.

Uma discordância temos, apenas, que manifestar em relação ao despacho recorrido: não se pode dizer que a circunstância de o recurso hierárquico ter sido decidido por acto expresso do Ex.mo Director envolve a perda de objecto do recurso contencioso feito ao acto do Subdirector. O recurso contencioso interposto tem objecto, sim, na medida em que o acto primário continua a existir na ordem jurídica por não ter sido revogado (foi até confirmado pelo secundário). O que se passa é que o acto escolhido para objecto de recurso contencioso é contenciosamente irrecorrível. Mas falta de objecto e irrecorribilidade são conceitos diferentes.
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5- Eis como no caso se conjuga um molho de argumentos contra o apelo concreto que nas alegações e conclusões do presente recurso jurisdicional a recorrente faz a normas e princípios que apontam para o acesso efectivo à justiça, ao favorecimento do processo e ao inquisitório, que assim se devem ter por improcedentes.

Nem sequer os princípios da cooperação e anti-formalismo se devem ter aqui por mais fortes do que as regras da lei a aplicar. O poder não é do juiz, nem o direito lhe pertence; ele é apenas a boca que profere as palavras da lei, como dizia Montesquieu. Daí que, apesar de nos rebelarmos contra embaraços processuais por razões meramente formais, não podemos deixar de observar as regras de disciplina processual, quando imperativas e impostergáveis.

***
IV- Decidindo

Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão contida no despacho recorrido.
Custas pela recorrente.

TSI, 01 / 12 / 2011




_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)


_________________________
Vitor Manuel Carvalho Coelho
(Magistrado do M.oP.o) (Presente)