Processo n.º 133/2011 Data do acórdão: 2011-12-15
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– art.o 76.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– art.o 76.o, n.o 4, do Código de Processo Penal
– art.o 76.o, n.o 6, do Código de Processo Penal
– art.o 79.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– art.o 270.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– art.o 271.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– segredo de justiça
– conhecimento do inquérito
– arquivamento do inquérito
– preparação do requerimento de abertura da instrução
– consulta dos autos do inquérito
– autorização do Ministério Público
– momento de pedido de constituição de assistente
– justo impedimento na apresentação do pedido de instrução
S U M Á R I O
1. Por causa do comando do art.o 76.o, n.o 1, do Código de Processo Penal vigente (CPP) relativo ao segredo de justiça, o conhecimento do conteúdo de algum acto ou documento praticado ou constante do processo penal na fase do inqúerito, carece da prévia autorização do Ministério Público conforme mormente o disposto no n.o 4 ou n.o 6 do art.o 76.o do CPP, sem prejuízo da regra nomeadamente vertida no art.o 79.o, n.o 1, do mesmo Código.
2. É de entender, por identidade da razão latente na parte final desse n.o 1 do art.o 79.o do CPP, que no caso de preparação do requerimento de abertura da instrução dentro do prazo para tal estipulado pela lei, o assistente pode consultar os autos do inquérito independentemente da autorização prévia do Ministério Público.
3. Da redacção na segunda parte do n.o 1 do art.o 270.o do CPP, resulta congruente que é a própria lei processual penal que permite que a constituição de assistente até pode ser peticionada, no mais tardar, no próprio acto de requerimento de abertura da instrução. Daí que não se pode censurar minimamente a opção então feita pela ora recorrente, de não ter pedido a sua constituição como assistente em momento anterior.
4. Segundo o estatuído no n.o 1 do art.o 271.o do CPP, embora o requerimento para abertura da instrução não esteja sujeito a formalidades especiais, mas já deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância relativamente à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que o requerente desejaria que o Juízo de Instrução Criminal levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
5. Por isso, para a recorrente poder saber, e poder indicar no requerimento de abertura da instrução, quais os meios de prova que não tenham sido considerados no inqúerito, e indicar, no mesmo requerimento, quais os factos que, através de uns e outros, se espera provar em sede da instrução, ela precisa naturalmente de consultar primeiro os autos do inquérito, então arquivados pelo Ministério Público.
6. E como antes da sua constituição efectiva como assistente, a recorrente só pode consultar os autos do inquérito mediante prévia autorização do Ministério Público, verifica-se um autêntico justo impedimento na apresentação tempestiva do seu requerimento de abertura da instrução, no período compreendido entre a data em que pediu ela a consulta dos autos com vista à elaboração do requerimento de abertura da instrução e a data em que foi legalmente considerada notificada, na pessoa do seu advogado, da autorização da sua constituição como assistente, por nesse período todo, o pedido de consulta dos autos nunca ter chegado a ser deferido.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 133/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A
Recorrido: B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o despacho proferido pela Mm.a Juíza de Instrução Criminal a fls. 157 a 158 dos autos penais subjacentes que lhe indeferiu concretamente o pedido, então formulado a fls. 145 a 147, de admissão do requerimento de abertura da instrução com fundamento na verificação de justo impedimento na apresentação desse requerimento, veio recorrer a assistente A para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a revogação do referido despacho, com consequente determinação da admissão do seu requerimento de abertura da instrução, mediante a alegação, no seu essencial, das seguintes razões vertidas na sua motivação apresentada a fls. 161 a 168:
– sendo a própria pessoa da recorrente leiga em Direito, ela tinha vindo a confiar no Ministério Público na dedução da acusação contra B, pelo que não chegou a pedir a constituição de assistente;
– estando em causa nos autos um acidente de viação gerador da morte do marido da recorrente, e não estando ela própria presente no local do acidente quando este ocorreu, ela de facto não conheceu das circunstâncias do acidente, pelo que a ela como é exigível fornecer dados ao seu Advogado para efeitos de dedução do requerimento de abertura da instrução contra a decisão do Ministério Público de arquivamento dos autos do inqúerito em questão? Pela mesma razão, ao seu Advogado como é possível minutar o requerimento de abertura da instrução como uma peça que contenha os requisitos formais de uma acusação, sem consultar os elementos constantes do inquérito?
– ao decidir do pedido de constituição de assistente, formulado pela recorrente só depois de notificada do arquivamento do inquérito, a Mm.a Juíza de Instrução Criminal deverá não ter atendido à questão do prazo para a dedução do requerimento de abertura da instrução, pois demorou a mesma Mm.a Juíza num total de nove dias sem que tenha dado algum despacho sobre o pedido de constituição de assistente, o que levou a que o Ministério Público, com fundamento na ainda não constituição de assistente, não tenha deixado à recorrente consultar os autos do inquérito;
– aliás, o próprio Ministério Público também promoveu no sentido de dever ser considerado como tempestivo o requerimento de abertura da instrução;
– assim sendo, em prol dos princípios da colaboração e da boa fé, e tendo em conta que o requerimento de abertura da instrução acabou por ser apresentado dentro dos três dias posteriores à superveniente autorização, pelo Ministério Público, da consulta dos autos, deverá ser tido como tempestivo esse requerimento, por haver efectivo justo impedimento na sua apresentação.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público a fls. 176 a 177 no sentido de procedência da pretensão da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer a fl. 185 a 188, pugnando também pelo provimento do recurso.
Em sede do exame preliminar, foi ordenada pelo ora relator a fl. 189 a notificação de B, para este, querendo, vir responder ao recurso, tendo-lhe sido, pois, nomeado um Defensor Oficioso para o efeito.
Respondeu então o notificado B a fl. 195, oferecendo o merecimento dos autos.
Concluído o exame preliminar e corridos subsequentemente os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos, pertinentes à solução do recurso:
Segundo a participação policial a fl. 2 a 3 dos autos: ocorreu em Macau um acidente de viação em 10 de Abril de 2010, entre um veículo automóvel pesado conduzido por B e um motociclo conduzido por C, o qual, na sequência do incidente, morreu antes de ter sido transportado pela ambulância a hospital; e a mulher deste, chamada A, foi notificada do caso pela Polícia.
Por despacho de 19 de Outubro de 2010 a fl. 109 dos autos, foi decidido pelo Ministério Público o arquivamento dos autos do correspondente inquérito, por se entender que B não devia ser responsável criminalmente pela produção do acidente nem pelo resultado de morte de C.
Dessa decisão de arquivamento foi notificada pessoalmente em 27 de Outubro de 2010, a fl. 112, a mulher de C, no sentido de que tinha o prazo de dez dias, a terminar em 8 de Novembro de 2010, para reclamar dessa decisão para o Exm.o Senhor Procurador-Adjunto, e o prazo de quinze dias, a terminar em 11 de Novembro de 2010, para requerer a abertura da instrução.
Em 3 de Novembro de 2010, o Ilustre Advogado mandatado na procuração de 1 de Novembro de 2010 a fl. 114, outorgada pela mulher de C, pediu a fl. 113, em nome desta, então inconformada com a dita decisão de arquivamento, a constituição de constituinte e a autorização urgente da consulta dos autos, com vista à elaboração do requerimento de abertura da instrução.
Em 8 de Novembro de 2010, afirmou o Ministério Público a fl. 118 a sua não oposição ao pedido de constituição de assistente.
Recebidos os autos em 8 de Novembro de 2010 pelo Juízo de Instrução Criminal do Tribunal Judicial de Base, foi, em 10 de Novembro de 2010, notificado pessoalmente B a fl. 120 a 120v, para este, querendo, se pronunciar, em dez dias, sobre o pedido de constituição de assistente.
Em 23 de Novembro de 2010, por despacho judicial de fl. 121, foi autorizada a constituição de assistente da requerente A, tendo esse despacho sido objecto da carta de notificação dirigida ao seu Ilustre Advogado, registada no mesmo dia 23 de Novembro de 2010, que foi uma terça-feira (cfr. o processado a fls. 122 a 122v).
Remetidos os autos ao Ministério Público em 25 de Novembro de 2010 (cfr. o termo de remessa de fl. 124), foi materialmente autorizada a fl. 126 pela Digna Delegada do Procurador a pretensão de constulta do processo então formulada pelo Ilustre Advogado de A em 3 de Novembro de 2010 a fl. 113.
Dessa decisão do Ministério Público, foi feita comunicação, por telecópia de 26 de Novembro de 2010, ao Ilustre Advogado da já constituída assistente A.
No mesmo dia 26 de Novembro de 2010, foram facultados, conforme a cota exarada a fl. 129, os autos para consulta.
Em 29 de Novembro de 2010, foi apresentado ao Juízo de Instrução Criminal, o requerimento de abertura da instrução de fls. 133 a 136, formulado pelo Ilustre Advogado da assistente em nome desta.
Em 3 de Dezembro de 2010, a Digna Delegada do Procurador opinou a fl. 139 no sentido de não se opor ao requerimento de abertura da instrução.
Por despacho judicial de 13 de Janeiro de 2011 a fls. 157 a 158, foi indeferido concretamente o pedido de admissão do requerimento de abertura da instrução, então formulado pela assistente a fls. 157 a 158 com alegação de justo impedimento na apresentação desse requerimento, devido à entendida autorização não atempada do pedido de consulta dos autos.
E nesse despacho, a Mm.a Juíza de Instrução Criminal concluiu pelo seguinte (originalmente escrito em chinês, e aqui traduzido literalmente para português pelo ora relator):
– <<[...] a assistente A, desde o início do processo, já podia requerer que fosse constituída como assistente, a fim de poder intervir no processo e pedir a consulta dos autos. Mas, a assistente optou por pedir a constituição de assistente e pedir a consulta dos autos apenas depois de ter recebido o despacho de arquivamento, o que levou naturalmente a que o tempo da sua constituição como assistente e da consulta dos autos a que teria direito tenha sido adiado. Por isso, o facto de a assistente não ter conseguido, em momento anterior, consultar os autos foi por motivo imputável à própria pessoa.
Ademais, é sem dúvida que a consulta dos autos contribui para a apresentação do requerimento da instrução, mas a consulta dos autos não é pressuposto indispensável ao requerimento da instrução, pelo que a impossibilidade de requerimento da instrução não se deve à não consulta dos autos.
Termos em que este Tribunal entende que o motivo invocado pela assistente não constitui justo impedimento, pelo que não pode autorizar o requerimento da instrução, apresentado pela assistente fora do prazo>>.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Antes do mais, cabe notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal ad quem cumpre só resolver as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, é de entender que a questão nuclear posta no recurso da assistente tem a ver com a verificação, ou não, do justo impedimento na apresentação tempestiva do requerimento de abertura da instrução.
Como se sabe, por comando do art.o 76.o, n.o 1, do Código de Processo Penal vigente (CPP): “O processo penal é, sob pena de nulidade, público a partir do despacho de pronúncia ou, se a instrução não tiver lugar, do despacho que designa dia para a audiência, vigorando até qualquer desses momentos o segredo de justiça”.
Assim, em princípio, o conhecimento do conteúdo de algum acto ou documento praticado ou constante do processo penal na fase do inqúerito, carece da prévia autorização do Ministério Público (cfr. mormente o disposto no n.o 4 ou n.o 6 do art.o 76.o do CPP).
E isto sem prejuízo da regra nomeadamente vertida no art.o 79.o, n.o 1, do mesmo Código, segundo a qual “... o arguido, o assistente e a parte civil podem ter acesso a auto, para consulta, na secretaria ou noutro local onde estiver a ser realizada qualquer diligência, bem como obter cópias, extractos e certidões autorizados por despacho, ou independentemente dele para prepararem a acusação, a defesa ou o pedido de indemnização civil dentro dos prazos para tal estipulados pela lei”.
Sendo de entender, por identidade da razão latente na parte final desse n.o 1 do art.o 79.o, que no caso de preparação do requerimento de abertura da instrução dentro do prazo para tal estipulado pela lei, o assistente pode consultar os autos do inquérito independentemente da autorização prévia do Ministério Público.
Aplicado esse enquadramento jurídico-processual ao caso concreto dos autos, é de concluir que a ora recorrente:
– antes de ter a qualidade de assistente, não podia consultar os autos do inquérito sem obter autorização pelo Ministério Público como autoridade judiciária titular do mesmo;
– depois de constituída como assistente, já pode consultar, independentemente de despacho de autorização do Ministério Público, os autos do inquérito para preparar o requerimento de abertura da instrução dentro do prazo para tal estipulado pela lei.
Outrossim, perante os elementos coligidos dos autos na parte II do presente acórdão de recurso, é aplicável ao caso concreto dos autos, o seguinte disposto no art.o 270.o, n.o 1, do CPP:
– “1. Se o procedimento não depender de acusação particular e o inquérito tiver sido arquivado, apenas o assistente, ou quem no acto se constitua como tal, pode requerer a instrução.
2. O requerimento previsto no número anterior deve ser apresentado no prazo de 15 dias a contar da notificação do despacho de arquivamento [...]” (com sublinhado só agora posto).
E da redacção na segunda parte do n.o 1 desse art.o 270.o, resulta congruente que é a própria lei processual penal que permite que a constituição de assistente até pode ser peticionada, no mais tardar, no próprio acto de requerimento de abertura da instrução.
Daí que não se pode censurar minimamente a opção então feita pela recorrente, de não ter pedido a sua constituição como assistente em momento anterior.
Por outro lado, conforme o estatuído no n.o 1 do art.o 271.o do CPP, embora o requerimento para abertura da instrução (a ser deduzido pela ora recorrente) não esteja sujeito a formalidades especiais, mas já deve conter, em súmula, as razões, de facto e de direito, de discordância (dela) relativamente à não acusação, bem como, sempre que disso for caso, a indicação dos actos de instrução que ela desejaria que o Juízo de Instrução Criminal levasse a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar.
Por isso, para a recorrente poder saber, e poder indicar no requerimento de abertura da instrução, quais os meios de prova que não tenham sido considerados no inqúerito, e indicar, no mesmo requerimento, quais os factos que, através de uns e outros, se espera provar em sede da instrução, ela precisa naturalmente de consultar primeiro os autos do inquérito, então arquivados pelo Ministério Público.
E tal como já se concluiu acima, antes da sua constituição efectiva como assistente, a recorrente só pode consultar os autos do inquérito mediante prévia autorização do Ministério Público.
Termos em que, e tendo em conta os dados processuais concretos elencados na parte II do presente aresto, verifica-se um autêntico justo impedimento na apresentação tempestiva, pela recorrente, do requerimento de abertura da instrução, no período compreendido entre 3 de Novembro de 2010 (data em que ela pediu a consulta dos autos com vista à elaboração do requerimento de abertura da instrução) e 26 de Novembro de 2010 (data em que foi legalmente considerada – art.o 201.o, n.os 1 e 2, do Código de Processo Civil vigente, ex vi do art.o 4.o do CPP – notificada, na pessoa do seu Ilustre Advogado, da autorização da sua constituição como assistente), por nesse período todo, o pedido de consulta dos autos nunca ter chegado a ser deferido.
Procede, assim, o pedido formulado no recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em julgar provido o recurso da assistente A, revogando o despacho judicial recorrido, e considerando, pois, ainda tempestivo o seu requerimento de abertura da instrução, por haver justo impedimento na sua apresentação.
Sem custas.
Macau, 15 de Dezembro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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