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Proc. nº 931/2010
(recurso Cível e Laboral)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 15 de Dezembro de 2011
Descritores:
-Arrendamento comercial
-Fim da caução
-Imputação do cumprimento

SUMÁRIO:
I- A caução funciona como antecipação do pagamento da renda (art. 994º, nº2, do CC), mas também pode servir de “cláusula penal” de tipo compensatório (art. 799º do CC), dependendo do que a tal respeito for clausulado.
II- Se foi clausulado no contrato de arrendamento que o locador podia fazer sua a caução de dois meses prestada no início da relação locatícia pelo locatário, isso significa que as partes contratantes quiseram consagrar uma cláusula penal, caso o contrato cessasse antes do seu termo por iniciativa do locatário.
III- Nos casos de arrendamento comercial não se prevê a possibilidade de revogação unilateral do arrendamento comercial nos mesmos termos previstos para o arrendamento para habitação, devendo ela sujeitar-se às regras que foram contratualmente aceites pelas partes.
IV- Se na data da cessão do contrato o locatário comercial, que já não pagava ao locador quatro rendas consecutivas, entregar a este o valor de duas rendas sem imputar o cumprimento a nenhum dos meses já vencidos, deve entender-se que as dívidas estão no mesmo plano de onerosidade e, por isso, à luz do art. 773º, nº1, do CC, a imputação do cumprimento deve fazer-se às rendas (dívidas) mais antigas.




Processo nº 931/2010
(Recurso Cível e laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, intentou no TJB acção declarativo com processo ordinário contra “Fábrica de Artigos de Vestuário B, Limitada”, pedindo a condenação desta no valor de Mop$ 458.304,20 e juros respectivos, devidos a título de rendas não pagas e de despesas de diversa ordem suportadas pelo autor.
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O processo prosseguiu os seus trâmites normais, vindo a ser proferida sentença, a qual julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar à autora a importância de Mop$ 300.654,20.
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É dessa sentença que ora recorre a então ré, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
● O acórdão recorrido ignorou que no contrato de arrendamento não constam o tempo e o local para o pagamento da renda mensal;
● Pelo que, a ré só incorreu na falta de pagamento de renda mas não se constituiu em “mora”;
● Pelo que, ao presente caso não é aplicável o art.º 966º do Código Civil;
● O acórdão recorrido não classificou a natureza das rendas de dois meses já pagas pela ré em 1 de Dezembro de 2008 - quais os meses a que são destinadas as rendas já pagas;
● O acórdão não fez a liquidação da caução que deve ser retomada pela ré no valor de HK$54.000,00;
● O acórdão recorrido não especificou de forma precisa quando é que o contrato foi cessado, e se necessitava ou não de pagar ainda renda no tempo remanescente, bem como, as questões de restituição de caução e de denúncia unilateral;
● A recorrente, por sua vez, considera que uma das despesas - a de demolição de ranhura de ventilação no valor de MOP$12.000 não deve ficar a cargo da ré.
● A ré só deve assumir a sua responsabilidade devida no valor não superior a MOP$121.794,20, quanto aos seus títulos já foram indicados anteriormente.
● Pelo que, deve o acórdão recorrido ser revogado e deve o Tribunal de hierarquia julgar procedente o pedido da recorrente.
Pelo exposto, requer-se a V. Exa que seja revogado o acórdão recorrido por provado e pela insuficiência de matéria de facto para a sua decisão, bem como a descoberta do facto novo que é capaz de suportar as alegações e fundamentos da recorrente, e por fim, requer-se a absolvição da recorrente de todas as acusações.

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O então autor respondeu ao recurso nos seguintes termos conclusivos:
1. Considera a recorrida que a decisão do Tribunal a quo é correcta e razoável, quanto à matéria de facto e à aplicação da lei, concordando com o acórdão proferido.
2. Segundo o referido contrato de arrendamento, na sua observação (5), nela indica-se claramente que a Parte B (recorrente) concordou em depositar a renda antes do dia 10 de cada mês na conta da recorrida.
3. Quanto à supracitada matéria de facto, também ficou provada na decisão do Tribunal a quo.
4. Segundo a recorrente, as cartas de interpelação de pagamento de rendas em dívida não foram assinadas por representante legal da mesma.
5. Contudo, de acordo com os talões de recepção das cartas, neles demonstra claramente que as cartas dirigidas ao endereço já foram assinadas pela pessoa como representante. Nos termos do art.º 176º, n.º3 do Código de Processo Civil, “as pessoas colectivas consideram-se ainda pessoalmente citadas ou notificadas na pessoa de qualquer empregado que se encontre na sede ou local onde funciona normalmente a administração”.
6. Pelo que, nos autos já estão reunidas bastantes condições e fundamentos para provar que as rendas devidas pela ré se concontravam em mora.
7. Além do mais, de acordo com a decisão do Tribunal a quo, já foi julgado o facto que a cessação unilateral do contrato da ré não produz à recorrida efeitos jurídicos.
8. A partir de Agosto de 2008, a recorrente deixou de pagar à recorrida as rendas, contadas desde então até Janeiro de 2009, totalizando seis meses de renda.
9. Considera a recorrida que as rendas de dois meses pagas pela recorrente em 1/12/2008 são indubitavelmente as de Dezembro de 2008 e de Janeiro de 2009, pelo que, a recorrente está a dever ainda as rendas de quatro meses, contadas desde Agosto de 2008 até Dezembro de 2009.
10. Segundo a decisão do Tribunal a quo, as rendas de quatro meses que a recorrente foi condenada a pagar, também são indicadas para o período entre Agosto e Novembro de 2008, o que significa que a recorrida tem o mesmo entendimento com o do Tribunal a quo.
11. Nos termos do art.º 996º, n.º4 do Código Civil, “A recepção de novas rendas ou alugueres não priva o locador do direito à indemnização referida, com base nas prestações em mora.
12. Quanto às despesas a pagar pela ré à recorrida, a recorrente não tem nenhum fundamento para suportar o seu argumento, bem como, o seu modo de cálculo também carece de um critério e fundamento concreto, pelo que, a recorrida não está de acodo com o argumento da recorrente quanto ao pagamento das respectivas despesas.
Pelo exposto, a recorrente não tem nenhum fundamento para argumentar a decisão do Tribunal a quo, requer-se ao Tribunal de hierarquia superior que seja rejeitado c pedido da recorrente, mantendo a decisão do Tribunal a quo.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos

A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
A autora A é proprietária dos bens imóveis, fracções A e B do 4º andar do Edifício Industrial “XXX” sito em Macau, na Rua XX do Bairro da XXX, n.ºX a XX, e na Rua XX do Bairro da XXX, n.º5. (vd. documento n.º2 anexo à petição inicial) (A)
No dia 1 de Dezembro de 2008, a ré pagou à autora HK$54.000,00 a título de renda pela utilização das supracitadas fracções em dois meses. (B)
Para efeitos de contestação, a ré já pagou MOP$20.000,00 a título de honorário de advogado. (vd. documento n.º5 anexo à petição inicial) (C)
No dia 4 de Fevereiro de 2008, a autora e a ré Fábrica de Artigos Fábrica de Artigos de Vestuário B, Lda., no escritório de advogada Maria de Lourdes d' Assumpção, celebraram um contrato sobre os supracitados bens imóveis. (Quesito 1)
O referido contrato tem a duração de um ano, contada desde 1/2/2008 até 31/1/2009. (Quesito 2)
Tendo ambas as partes concordado em que, dentro do período contratual, caso qualquer uma das partes pretenda cessar o contrato, deve avisar a outra parte com antecedência de três meses. (Quesito 3)
Tendo ambas as partes fixado que a renda pela utilização das supracitadas fracções é HK$27.000,00 por mês. (Quesito 4)
Na celebração do contrato, a autora já recebeu a quantia de HK$54.000,00 entregue pela ré, para servir de “caução”. (Quesito 5)
Ambas as partes ainda concordaram que todas as despesas respeitantes à despesa de condomínio, à de água e energia eléctrica, e à de elevadores são suportadas pela ré. (Quesito 6)
Deve a ré, no término do contrato ou na desocupação, remover os objectos, torres de resfriamento de água existentes nas fracções, bem como realizar a manutenção de todos os equipamentos nelas existentes (incluindo janelas). (Quesito 7)
A ré também concordou caso ela pretenda cessar o contrato antecipadamente, a autora tem direito a fazer sua caução no valor de HK$54.000,00 já paga pela ré. (Quesito 8)
Deve a ré, no dia 16 de Março de 2008 ou data antes, concluir a manutenção das janelas das fracções, caso, no prazo de manutenção, não se consiga fazê-lo, todas as despesas pagas pela autora na manutenção das janelas ficam a cargo da ré. (Quesito 9)
A ré concordou em depositar HK$27.000,00, antes do dia 10 de cada mês, na conta do Sucursal do Banco de Construção da China (Macau) cujo titular é A e o respectivo número é XXXXXXX. (Quesito 10)
A partir de 1 de Agosto de 2008, a ré deixou de depositar mensalmente a referida quantia na conta bancária da autora. (Quesito 11)
A autora, nos dias 14/8/2008 e 5/9/2008, respectivamente enviou carta registada com aviso de recepção à ré para interpelar o pagamento da quantia em dívida. (Quesito 12)
Não tendo a ré, contudo, efectuado ainda o pagamento. (Quesito 13)
No dia 28 de Novembro de 2008, a autora, inesperadamente, recebeu uma notificação da ré de que esta, no dia 30 de Novembro de 2008, iria cessar unilateralmente o contrato. (Quesito 14)
Além disso, após a desocupação das fracções da ré (ou seja, depois de 1/12/2008), embora a autora tenha feito várias vezes interpelações, a ré ainda não pagou à autora as quantias em divida. (Quesito 15)
Em 1 de Dezembro de 2008, a ré, ao desocupar as fracções, abandonou grande quantidade de máquinas inúteis e lixos, mas não procedeu à manutenção dos equipamentos existentes nas fracções, nomeadamente as janelas de vidro foram danificadas em grande dimensão, os lixos não foram removidos, as mesas de corte, os artigos mecânico-eléctricos, os suportes metálicos existentes na parede exterior e as ranhuras de ventilação não foram demolidos, bem como, os caixilhos de portas não foram reparados. (Quesito 16)
Tendo a autora contratado a companhia de obras de decoração “XX” (XX裝飾工程) pelo valor total de MOP$82.020,00 para realizar, nos supracitados bens imóveis, a manutenção, a remoção de objectos e de torre de resfriamento de água, incluindo: a demolição de janelas danificadas, a remontagem de vidro para as janelas, a remoção de lixos, a demolição de mesas de corte, de artigos mecânico-eléctricos, de suportes metálicos existentes na parede exterior, a nova pintura e limpeza, a destruição do pavimento antigo, a colocação de areia para fazer o revestimento de pavimento, a demolição de ranhura de ventilação e a reparação de caixilho de portas. (vd. documento n.º6 anexo à petição inicial) (Quesito 17)
Na desocupação das fracções, a ré não liquidou as despesas de água e de energia eléctrica, de condomínio e de manutenção de elevador utilizados pela ré no período contratual, tendo a autora, por isso, pagado o valor total de MOP$14.754,20. (vd. documento n.º7 anexo à petição inicial) (Quesito 18)
***
III- O Direito
Depois de uma breve referência às disposições sobre locação aplicáveis ao caso, a sentença integrou no montante condenatório os seguintes valores parcelares:
a) – HK 108.000,00, equivalente a 4 meses de renda por pagar (HK 27.000,00x4);
b) – HK 108.000,00, equivalente a 4 meses de renda, a título de indemnização, nos termos do art. 996º, nº1, do CC;
somando o valor de HK$ 216.000,00 ou Mop$ 222.480,00.
c) – Mop$ 63.420,00, a título de obras, pintura, etc.
d)- Mop$ 14.754,20, a título de despesas de energia eléctrica, água, condomínio.
Tudo perfazendo a quantia global de Mop$ 300.654,20 (Mop$ 222.840,00+63.420,00+14.754,20).
No recurso jurisdicional interposto, a demandada defende que nada foi estipulado sobre o momento do pagamento das rendas. Logo, não podia considerar-se haver mora do locatário e, assim, inaplicável seria o art. 966º do CC.
Entende ainda não ter a sentença recorrida retirado quaisquer consequências para o facto de prestado caução no início do contrato e ter efectuado o pagamento de dois meses de renda em 1/12/2008.
Fora isto, e para o caso de improceder o que se acabou de sintetizar, impugna o valor, essencialmente baseada no facto de ter adiantado o valor da caução e do valor de 54.000,00 pagas em 1 de Dezembro de 2008.
Vejamos.
Quanto ao momento do pagamento das rendas, dispõe o art. 993º do CC que “o pagamento da renda ou aluguer deve ser efectuado no primeiro dia de vigência do contrato ou do período a que respeita…, se as partes não fixarem outro regime”.
Ora, de acordo com a observação 5ª à cláusula 10ª do contrato, foi acordado pelas partes contratantes um regime que foge à regra legal: o pagamento deveria ocorrer antes do dia 10 do mês a que dissesse respeito (cfr. fls. 23 dos autos e resposta ao quesito 10º).
Portanto, sendo assim, claudica o recurso na parte em que nele se defende a não existência de prazo estipulado para cumprimento dessa obrigação do inquilino. O que significa que, após esse prazo, o locatário incorre em mora, tal como decidiu a 1ª instância.
Em consequência, dado que desde Agosto o recorrente não mais pagou as rendas, incorreu em mora (arts. 400º, nº1, 752º, nº1, 787º e 793º, nº2 e 794º, nº2, al. a), todos do CC).
E uma vez constituído o locatário em mora por período que ultrapasse os 30 dias, o locador tem direito de exigir uma indemnização igual ao valor da renda1.
Consequentemente, e uma vez que entre Agosto e Novembro decorreram quatro meses sem pagamento, a dívida corresponde a 4 meses de renda, a que acresce outro tanto a título de indemnização. Logo, atinge tudo o valor de HK$ 216.000,00 (27.000,00x8) ou seja Mop$ 222.480,00, tal como decidido.
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A recorrente diz ainda que a sentença não tomou em consideração o valor da caução prestada no início do contrato. A sua intenção é, portanto, que ao valor da indemnização a arbitrar deva ser abatido o valor da caução.
Contudo, de acordo com a observação 2ª aposta na sequência da cláusula 10ª do contrato, ficou estabelecido que, se o inquilino lhe puser termo antes do fim previsto (como aqui sucedeu), pode o senhorio apropriar-se e fazer seu o valor da caução.
Isto quer dizer que, se em princípio a caução funciona como antecipação do pagamento da renda (art. 994º, nº2, do CC), também pode servir de “cláusula penal” de tipo compensatório (art. 799º do CC). Depende do que a tal respeito for clausulado. E no caso, as partes acordaram que a caução, em caso de cessação antes do termo do contrato, funcionasse como cláusula penal.
Por conseguinte, não tem o recorrente o direito de fazer abater o valor da caução.
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E será que pode fazer abater o valor de dois meses de renda pagos em Dezembro de 2008, tal como o defende a recorrente?
Na verdade, a sentença omitiu esse facto. Todavia, ele tem aqui particular importância.
Que rendas serão essas? São as de Dezembro de 2008 e Janeiro de 2009, pois o contrato só terminaria em 31/01/2009, conforme resposta ao quesito 2º?
Ou são as rendas de dois meses em atraso dentro do período de mora que vai de Agosto a Novembro? E quais os meses em concreto? Agosto e Setembro ou Outubro e Novembro?
Vejamos.
É preciso notar que o contrato em causa era para fins comerciais ou industriais. Depois, tem que se atentar que as causas de cessação estão previstas no art. 1013º do CC. E porque ao caso não se aplicam as denúncia e de resolução, nem a da revogação por acordo entre as partes, restaria aplicável a hipótese da alínea d), do nº1: revogação unilateral (ver art. 1044º do CC).
Ora, “nos casos de arrendamento comercial não se prevê a possibilidade de revogação unilateral do arrendamento comercial nos mesmos termos dos previstos para o arrendamento para habitação, devendo ela sujeitar-se às regras que foram contratualmente aceites pelas partes, não havendo qualquer lacuna ou situação de abuso de direito, entendido este como o exercício do poder conferido a certa pessoa em aberta contradição com o seu fim económico ou social ou com o condicionalismo ético-jurídico da comunidade jurídica”2. Efectivamente, a contrário, o art. 1044º do CC deve ser interpretado em conjugação com o art. 1024º, nº3 do mesmo Código, no sentido de apenas permitir a revogação unilateral com os efeitos ali previstos no caso do arrendamento para fins habitacionais. Sendo assim, e excluído da aplicação ao caso presente o art. 1044º citado, a revogação de arrendamento para fins comerciais implica que o inquilino tem que pagar as rendas até ao termo do contrato3.
Todavia, as partes clausularam no contrato que o efeito da cessação unilateral por parte do inquilino seria a perda da caução (ver resposta ao quesito 8º). E com isso, terminado o contrato em 30 de Novembro de 2008 e desocupado o locado em 1/12/2008, não teria o inquilino que efectuar o pagamento das rendas de Dezembro e de Janeiro de 2009.
Mantém-se então a pergunta: A que título se deve considerar o pagamento de HK$ 54.000,00 em 1/12/2008, conforme alínea B) da Matéria de Facto Assente?
Ora bem. A recorrente, nas suas alegações levanta expressamente a questão e diz:
- Se o contrato se tivesse que prolongar-se até 31/1/2009, isto é, se a cessação não fosse eficaz naquela data e o contrato tivesse que prosseguir até ao seu termo, então deve ser-lhe restituída a caução, porque aquele pagamento serviria para pagamento das rendas de Dezembro de 2008 e de Janeiro de 2009;
- Se a cessação for eficaz com efeitos reportados a 1/12/2008, então o pagamento verificado nessa data do valor de duas rendas serve para afastar a mora relativamente a dois meses e só passaria a haver “duas rendas em mora”. Nesse caso, a dívida não seria de 4 meses, como decidido na sentença, mas apenas de 2 meses.
Nós já vimos que a primeira hipótese vazada no raciocínio da recorrente não é correcta. Resta por isso indagar até que ponto a argumentação vertida no segundo ponto é mais adequada à situação.
O senhorio tinha o direito de recusar o pagamento (art. 996º, nº3, do Cod. Civ.), mas não o fez. Assim, a questão passou a ser, quanto a nós, de imputação do cumprimento.
E a este respeito, o art. 772º do CC reza:
Artigo 772.º
(Designação pelo devedor)
1. Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere.
2. O devedor, porém, não pode designar contra a vontade do credor uma dívida que ainda não esteja vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor; e também não lhe é lícito designar contra a vontade do credor uma dívida de montante superior ao da prestação efectuada, desde que o credor tenha o direito de recusar a prestação parcial.

Com base neste preceito, possível seria ao devedor livrar-se de parte das rendas em atraso, designando aquelas a que queria que o pagamento se reportasse (nº1).

Todavia, a ré devedora, pelo menos isso não resulta da matéria provada, nem sequer fora alegado por si na sua contestação, nenhuma imputação expressa terá feito acerca desse pagamento.

Se não fez expressa imputação de pagamento nos termos do nº1, do art. 772º, haverá que lançar mão das regras supletivas estabelecidas no art. seguinte.
Ei-lo:
Artigo 773.º
(Regras supletivas)
1. Se o devedor não fizer a designação, deve o cumprimento imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.
2. Não sendo possível aplicar as regras fixadas no número anterior, a prestação presume-se feita por conta de todas as dívidas, rateadamente, mesmo com prejuízo, neste caso, do disposto no artigo 753.º

Estudando a situação concreta em apreço, verificamos que ela se adequa melhor à previsão do nº1 do preceito. Na verdade, se o caso é de várias dívidas vencidas sem que nenhuma em particular esteja especialmente garantida, e antes estando no mesmo plano de garantia geral (art. 596º do CC), então deveria utilizar-se o critério da extinção das dívidas mais onerosas4para o devedor (art. 773º, nº1, 3ª parte, do Cod. Civil).

Ora, a verdade é que todas as dívidas em causa, a partir da constituição em mora, estão no mesmo patamar de onerosidade, na medida em que sobre cada uma, por igual, recai o “ónus” do pagamento da indemnização em igual montante.

A partir desta conclusão, a imputação deve ser feita às rendas (dívidas) mais antigas, ou seja, Agosto e Setembro, tal como resulta do nº1, 4º parte, do art. 773º do Código Civil.

Logo, o efeito deste pagamento em Dezembro, se não exclui a mora, nem o dever de indemnizar nos moldes do art. 996º, nº1, “in fine” do CC, ao menos faz descer o valor total da dívida. Quer dizer, ao valor apurado (equivalente a 4 meses de renda e quatro meses de indemnização) haverá que abater a importância paga de HK$ 54.000,00. Ou seja, ao valor de Mop$ 222.480,00 (4 meses de renda e 4 meses de indemnização) se deverá subtrair a importância de Mop$ 55.620,00, o que faz descer o valor para Mop$ 166.860,00.

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Falta resolver o diferendo quanto ao valor das despesas assumidas pelo locatário.

Tais despesas seriam:
a) As respeitantes ao condomínio, água, energia eléctrica e elevadores (quesito 6ª);
Estas importaram em Mop$ 14.754,20 (resposta quesito 18º) e a recorrente não as coloca em causa no presente recurso.

b) Remoção de objectos, torres de resfriamento de água, manutenção dos equipamentos, incluindo janelas (quesito 7º).
Para pagamento de tais despesas e outras que no serviço foram incluídas, a autora pagou a importância de MOP$ 82.020.00 (resposta ao quesito 17º).
Na sentença a esta importância descontou os valores referentes a nova pintura, destruição do pavimento e colocação de areia para o revestimento de novo pavimento, por considerar que não são da responsabilidade da recorrente (então ré). E assim, excluiu do valor pago (MOP$ 82.020,00) os valores parcelares de MOP$ 11.000,00 e MOP$ 7.600,00, tudo no total de MOP$ 18.600,00, fazendo descer a indemnização para MOP$ 63.420,00.

Todavia, a esta importância ainda pretende a recorrente que se subtraia o valor de MOP$ 12.000,00, correspondente ao trabalho de demolição de uma ranhura de ventilação, por já existir no momento em que tomou as fracções de arrendamento.

Tem razão a recorrente. Com efeito, o que fora quesitado foi a matéria da cláusula 3ª das Observações (ver doc. fls. 23 verso dos autos e apenso “tradução”), que passou a constar da Base Instrutória no quesito 9º. Contudo, a reparação das janelas representa algo completamente diferente da demolição de ranhura de ventilação e, por isso, a resposta afirmativa ao quesito não pode reverter contra a recorrente. Se esta é questão que não foi acordada no contrato, a despesa correspondente não pode ficar a cargo da recorrente. Daí que haja que subtrair também o valor de MOP$ 12.000,00, ficando a indemnização concernente a este capítulo reduzida a Mop$ 51.420,00 (63.420,00 – 12.000,00).

Em suma, o valor indemnizatório a fixar é de MOP$ 233.034,20 (166.860,00+14.754,20+51.420,00).

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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, revogando a sentença recorrida em igual medida, condenar a recorrente a pagar à recorrida (autora da acção) a indemnização no valor de MOP$ 233.034,20, acrescida de juros nos termos fixados no Ac. do TUI de 2/03/2011, Proc. nº 69/2010.

Custas por recorrente e recorrida na proporção do decaimento em ambas as instâncias.
TSI, 15 / 12 / 2011





1 Na 1ª parte da norma, diz-se que em caso de mora, indemnização é igual a metade do montante em dívida. E no caso de mora superior a 30 dias essa indemnização sobe para o dobro. Entende-se que o dobro neste caso funciona em medida igual à renda total (dobro de metade é a unidade).
2 Ac. do TSI, de 24/03/2011, Proc. nº 603/2010.
3 Assim foi decidido no acórdão citado.
4 Mais onerosas, aqui, em sentido lato, partindo da noção de custo ou gravame, como a existência e montante de juros, cláusula penal, maiores encargos da execução, etc, apud Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil anotado, II, pag. 36.
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