打印全文
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
Por Acórdão de 18 de Janeiro de 2006, este Tribunal de Última Instância, nos termos da alínea 1) do n.º 2 do art. 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária e do n.º 4 do art. 167.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, uniformizou jurisprudência, fixando o seguinte entendimento:
A responsabilidade civil por actos ou omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos aos utentes referidos no n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M, de 15 de Março, tem natureza extracontratual.
O recorrente Serviços de Saúde veio, ao abrigo do disposto no art. 572.º do Código de Processo Civil, pedir que o Tribunal esclareça o seguinte:
O regime da responsabilidade extracontratual por danos causados aplica-se só e apenas aos utentes previstos no n.º 2 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M de 15 de Março ou se será também de aplicar aos utentes previstos no art. 15.º do mesmo Diploma.
Para tanto, invoca o seguinte:
1. Depois da análise das soluções proclamadas pela doutrina e jurisprudência portuguesas, em matéria de responsabilidade de instituições de saúde públicas perante os seus utentes, Vossas Excelências iniciam a análise concreta da situação do Direito de Macau para avaliar se, de acordo com os normativos em vigor, deve considerar-se existir, ou não, na base das referidas relações um contrato (fls. 37).
2. A fls. 38 do Douto Acórdão pode ler-se o seguinte:
“A universalidade dos cuidados de saúde está consagrada no art. 2.º do Decreto-Lei 24/86/M (...)”;
“Neste regime não há qualquer indício de que o acesso dos utentes aos cuidados de saúde nos estabelecimentos públicos se faça mediante qualquer contrato” (fls. 39).
3. Ou seja, no V/ douto e superior entendimento, aos danos causados aos utentes nos cuidados de saúde, prestados em serviços de saúde públicos, seria de aplicar o regime da responsabilidade civil extracontratual.
4. Mais adiante acordaram Vossas Excelências que
“Onde pode existir contrato é na situação particular do acesso de pessoal de empresas públicas ou privadas e familiares e dos beneficiários de sistemas Individuais de seguro doença aos cuidados de estabelecimentos de saúde públicos. (...) O Acordo é estabelecido entre a DSS e a empresa ou a entidade que gira o sistema de seguro doença, sendo o utente terceiro beneficiário de contrato.”,
5. E, em conformidade, superiormente concluíram o seguinte:
“Em conclusão, salvo. Quando, de acordo com a lei, o acesso aos cuidados de saúde nos estabelecimentos públicos respectivos se faça mediante contrato (é o caso previsto nas al.s a) e b) do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M) o regime da responsabilidade civil aplicável à acção de Indemnização por danos produzidos em hospitais públicos.”.
6. Ora, seguindo a linha de raciocínio que vinha sendo superiormente traçada tudo indiciava que, a final, Vossas Excelências fixariam jurisprudência com o âmbito subjectivo que haviam apreciado;
7. Ou seja, o regime da responsabilidade civil extracontratual seria sempre aplicável aos danos causados a todos os utentes - tanto aos referidos no n° 2 do art. 3°, como aos referidos no art. 15° - por ocasião de cuidados recebidos em estabelecimentos de saúde públicos, quando não existisse culpa de um terceiro ou quando essa responsabilidade não tivesse sido transferida para um terceiro (cfr. interpretação conjugada do disposto no art. 3°, nos. 1 e 2 com o disposto no art. 15°, e do disposto no n. 4° e 5 do mesmo art. 3°, com o disposto no art. 14°, todos do Decreto-Lei supra referido).
8. Porém, Vossas Excelências vieram, a final, a fixar jurisprudência obrigatória com um âmbito de aplicação subjectivo bastante mais restrito do que aquele que vinham doutamente desenvolvendo no Acórdão (tendo, a final, fixado jurisprudência obrigatória no sentido de o regime da responsabilidade por actos e omissões na prestação de cuidados de saúde em estabelecimentos públicos aos utentes referidos no n° 2 do art. 3º (apenas em relação a estes) do Decreto-Lei n. 24/86/M de 15 de Março ter natureza extracontratual)
9. Ora, no nosso modesto entender, não se vislumbra razão para, na esteira do raciocínio que Vossas Excelências vinham superiormente desenvolvendo, não ter-se concluído - como era de esperar - pela aplicação do regime da responsabilidade civil extracontratual a todos os utentes que não caiam no âmbito de aplicação do disposto nos nos. 3.º e 4.º do art. 3.º e do art. 14.º do referido Decreto-Lei.
10. Com efeito, na sequência lógica da tese em que Vossas Excelências doutamente acordaram, seria de concluir e, bem assim, fixar jurisprudência obrigatória, no sentido de aplicar o regime da responsabilidade civil extracontratual à todos os danos causados a utentes, no âmbito do acesso aos cuidados de saúde, prestados em estabelecimentos de saúde públicos, quando não se verifique nenhuma das situações previstas nos nos. 3.º e 4.º do art. 3.º e no art. 14.º do Decreto-Lei 24/86/M, de 15 de Março, a saber:
- Existência ou presunção de existência de responsabilidade de terceiro;
- Transferência da respectiva responsabilidade para terceiros;
- Acidente ou agressão em que se possa presumir um responsável ou responsáveis pelos danos causados.

II – Esclarecimento
A identidade da questão de facto no requisito da identidade da questão de direito
1. De acordo com o disposto no art. 572.º do Código de Processo Civil, pode qualquer das partes requerer ao tribunal que tenha proferido uma decisão o esclarecimento de alguma obscuridade ou ambiguidade que ela contenha.
Sucede que o Acórdão de 18 de Janeiro de 2006 não contém a ambiguidade apontada.
Na verdade, existia uma oposição de dois acórdãos do Tribunal de Segunda Instância sobre a mesma questão de direito. Para um, a responsabilidade civil decorrente de factos que produzam danos em utente de hospital público é regida pela responsabilidade contratual. Para o outro acórdão, o regime é o da responsabilidade civil extracontratual.
Foi fixada jurisprudência no segundo sentido.
Acontece que as lesadas nos dois casos eram puérperas, isto é, mulheres que haviam dado à luz há pouco tempo.
Ora, o regime dos cuidados de saúde das puérperas está previsto no n.º 2 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M, com outros grupos de utentes, sendo uma das características a gratuitidade dos cuidados prestados pelos serviços e estabelecimentos dependentes dos Serviços de Saúde.
Um dos requisitos do recurso de uniformização de jurisprudência é o da identidade da questão de direito. Ora, como este Tribunal decidiu no acórdão de 6 de Fevereiro de 2002, Processo n.º 17/2001, publicado na Colectânea de acórdãos deste Tribunal, de 2002, p. 517, “considera-se verificado o requisito da identidade da questão de direito quando estamos perante a mesma situação de facto a que foram aplicadas as normas jurídicas idênticas em sentidos opostos”.
Pois bem, a oposição da questão de direito referia-se apenas ao grupo de utentes referidos no n.º 2 do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M. Nenhum dos utentes em causa pertencia ao grupo de utentes referidos no art. 15.º do mesmo diploma legal, que são aqueles para quem os cuidados de saúde não são gratuitos.
Por esta razão, este Tribunal apenas fixou doutrina sobre o 1.º grupo de utentes, estando-lhe vedado uniformizar jurisprudência sobre matéria fora do âmbito apreciado pelos dois acórdãos em oposição.
Assim o Tribunal não se devia pronunciar, como não se pronunciou, sobre se a doutrina fixada se aplica aos utentes previstos no art. 15.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M.

2. A pronúncia do Tribunal
Acresce uma outra razão.
É exacto que no Acórdão que fixou jurisprudência se disse: “salvo quando, de acordo com a lei, o acesso dos utentes aos cuidados de saúde nos estabelecimentos públicos respectivos se faça mediante contrato (como é o caso previsto nas alíneas a) e b) do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M) o regime da responsabilidade civil aplicável à acção de indemnização por danos produzidos em hospital público é a extracontratual”.
Mas não se disse que só o acesso dos doentes previsto nas alíneas a) e b) do art. 14.º do Decreto-Lei n.º 24/86/M é feito ao abrigo de contrato e muito menos se disse que o acesso dos utentes referidos no art. 15.º do mesmo diploma legal aos cuidados de saúde não é efectuado mediante contrato.
Também por esta razão haveria que indeferir o requerido.

III - Decisão
Face ao expendido, indeferem o pedido de esclarecimento.
Publique no Boletim Oficial juntamente com o Acórdão de 18 de Janeiro de 2006.

Macau, 15 de Março de 2006

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (relator)
Sam Hou Fai
Chu Kin
Lai Kin Hong (Assino por mero cumprimento das exigências legais quanto aos requisitos da sentença, mantenho sempre a posição já assumida na minha declaração de voto vencido)
Choi Mou Pan

Fui presente:
Song Man Lei




9
Processo n.º 23/2005