Processo nº 656/2011 Data: 07.12.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de “especulação de títulos de transporte”.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Contradição insanável de fundamentação.
Erro notório na apreciação da prova.
SUMÁRIO
1. O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.
2. Só ocorre o vício de “contradição insanável” quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão.
3. O erro notório na apreciação da prova”, apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
4. Provado estando que o arguido vendeu 1 bilhete de barco de Macau para Hong-Kong no valor de H.K.D.$176.00 por H.K.D.$300.00, e presentes estando também o elemento subjectivo de tal crime, correcta é a sua condenação como autor da prática de 1 crime de “especulação de títulos de transporte”, p. e p. pelo art. 1°, n.° 1 do D.L. n.° 30/92/M.
O relator,
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Processo nº 656/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, com os restantes sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenado como autor de 1 crime de “especulação de títulos de transporte” p. e p. pelo art. 1°, n.° 1 do D.L. n.° 30/92/M, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 período de 1 ano; (cfr., fls. 67 a 68 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado, o arguido recorreu, imputando à decisão recorrida os vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”, considerando também que se incorreu em “erro de direito” por violação ao art. 15°, n.° 1 do C.P.M.; (cfr., fls. 131 a 135).
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Em resposta pugna o Exmo. Magistrado do Ministério Público pela confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 185 a 190-v).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Sintetizando as conclusões ínsitas na Motivação (cfr. fls.132 a 135 dos autos), vemos que à douta sentença recorrida (cfr. fls.62 a 68 verso dos autos), O recorrente assacou 4 vícios, a saber:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista na alínea a) do n.°2 do art. 400.° do CPP;
- erro notório na apreciação de prova, consagrado na alínea c) do n.°2 do art. 400.° do CPP;
- erro de direito que se traduziria em infringir o disposto n.°1 do art. 15.° do CPM;
- erro de direito, por a graduação da pena concretamente aplicada violar os arts.4.° do D.L. n.°30/92/M ex vi 5° da Lei n.° 6/96/M;
- contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação de prova, consagrados respectivamente nas alíneas b) e c) do n.° 2 do citado art. 400.°;
Ressalvado o respeito pela opinião diferente, inclinamos ao não provimento ao presente recurso na sua totalidade.
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Concernente à «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada», a doutrina frisa que “Deve notar-se que a al. a) do n.° 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada indispensável à decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova art. ° 400.°), que é insindicável em reexame da matéria de direito”. (Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas-Santos: Código de Processo Penal de Macau - Notas, 1997, p.820)
No Acórdão decretado no Processo n.°17/2000, o Venerando TUI inculca: Para se verificar a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é necessário que a matéria de facto provada se apresenta insuficiente, incompleta para a decisão proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito adequada. Aparece o vício quando os factos dados como provados pelo tribunal sejam incompletos para chegar correctamente à solução de direito constante da decisão recorrida.
Analisando as conclusões 1ª a 3ª em sintonia com os ensinamentos supra citados, não vislumbramos dúvida alguma de que não se verifica in casu a «insuficiência para a decisão da matéria de facto provada».
Temos três razões:
- Com efeito, para a subsunção (decisão de direito) efectuada na douta sentença recorrida, é suficiente e adequado o seguinte facto dado por provado - o ofendido B comprou, pelo preço de HKD$300 ao arguido o bilhete n.°AXXXXXXX de preço facial de HKD$176,00 (因急需回港,B隨即以港幣300元向嫌犯買了一張編號為AXXXXXXX,標價為港幣的176元,船公司名稱為 “C”,開航時間為00時30分的船票).
- E, oficiar à Capitania dos Portos é apenas um dos vários meios de obtenção de prova para se certificar o preço autorizado, daí que a não expedição do ofício para tal efeito poderia gerar a eventual insuficiência da prova para a matéria de facto provada, nunca determinar a insuficiência para a decisão de direito.
- Por outra banda, o facto de o valor recebido pelo recorrente ser superior ao aprovado encontra-se provado por dois meios de prova: em primeiro lugar, o valor facial do bilhete n.°AXXXXXXX (HKD$176,00), e em segundo, a menção constante da Auto de Notícia n.°26/2011/C3, menção que reza (vide. fls.2 dos autos): 為進一步調查事件本處偵查員前往港澳碼頭並接觸D船務管理有限公司之職員(E),其向警員聲稱日航之票價為:港幣壹佰伍拾肆圓(HK$ : 154)、夜航之票價為:港幣壹佰柒拾陸圓(HK$ : 176).
Na parte “二、理由說明(Fundamentação)” da douta sentença recorrida, a Mema. Juiz a quo mencionou «船公司名稱為 “C”» e «船票公司名稱皆為“C”的船票».
O que denota que a “C” foi identificada pela Mesma. Juiz a quo como firma da companhia emissora dos bilhetes apreendidos.
Surge-se aqui um erro, visto a “C” não ser firma nem nome ou insígnia, mas sim marca de serviços de transporte marítima, registada em nome e a favor da «D Travel Shipping Investiments Led.» (doc. de fls. 102 dos autos).
Seja notório seja não, esse erro é irrelevante e não produz os efeitos referidos nas conclusões 7ª a 12 ª da Motivação, por não afectar a validade do facto provado de o recorrente vender bilhete n.° AXXXXXXX por preço superior ao aprovado pela entidade competente.
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Na douta sentença recorrida, a Mema. Juiz a quo deu por provado
o seguinte facto (sublinha nossa): 經嫌犯同意及簽署有關之聲明書,警員對 “F旅遊有限公司”進行搜查,並搜出二百五拾八張不同航班時間、船票公司名稱皆為 “C”的船票及B用以購買船票的港幣300元(參見卷宗第9頁之聲明書、第5及第7頁之扣押筆錄,以及第6及第8頁之照片).
Isto é, a Mema. Juiz a quo considerou que as três moedas apreendidas, sendo cada uma com valor facial de HKD$100,00, foram as provenientes de B,para comprar o bilhete n.°AXXXXXXX ao recorrente.
Ao fundamentar a convicção sobre a matéria de facto provada, a Mema. Juiz a quo referiu a declaração de B de ele pagar uma moeda com valor facial de HKD$500,00 ao recorrente, e este lhe devolver o troco de duas moedas com valor facial de HKD$ 100,00.
Sucede que não se apreendeu nenhuma moeda com valor facial de HKD$500,00.
Há aqui uma contradição entre aquele facto dado como provado e a fundamentação supra apontada.
Sem prejuízo do devido respeito pela opinião diferente, parece-nos que tal contradição é sanável com recurso à decisão recorrida no seu todo e às regras de experiência, designadamente às duas circunstâncias:
- De um lado, o valor somatório (HKD$300,00) das três moedas apreendidas coincide com o declarado por B como preço do bilhete n.° AXXXXXXX;
- De outro, das três declarações de B (cfr. fls.1 a 2 verso, 17 e 65 verso dos autos), apenas a última, prestada na audiência de julgamento, se referiu à moeda com valor facial de HKD$500,00.
Tudo isto dá-se a entender que a referência por B à moeda de HKD$500,00 advém da falha de memória do mesmo.
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No que respeite aos invocados erros de direito, subscrevamos as criteriosas explanações da Exma. colega nas partes III e IV da Resposta (cfr. fls.185 a 190 verso dos autos), que se dão aqui por reproduzidas para todos os efeitos.
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Por todo o exposto acima, entendemos que o recurso em apreço não merecerá provimento”.
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Dão-se aqui como reproduzidos os factos dados como provados na sentença recorrida; (cfr., fls. 65 a 65-v).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer da sentença que o condenou como autor de 1 crime de “especulação de títulos de transporte” p. e p. pelo art. 1°, n.° 1 do D.L. n.° 30/92/M, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 período de 1 ano.
É de opinião que a dita sentença padece dos vícios de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “contradição insanável da fundamentação” e “erro notório na apreciação da prova”, considerando também que se incorreu em “erro de direito” por violação ao art. 15°, n.° 1 do C.P.M..
Cremos que razão não tem o arguido ora recorrente, sendo antes de acompanhar o entendimento pelo Ministério Público assumido na Resposta e Parecer, pois que censura não merece a decisão recorrida.
Vejamos.
–– Quanto aos “vícios da matéria de facto”.
Pois bem, tem este T.S.I. entendido que:
O vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão” apenas ocorre quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo; (cfr., v.g., o Acórdão de 09.06.2011, Proc. n.°275/2011 e de 02.06.2011, Proc. 198/2011).
Por sua vez, e como sabido é, só ocorre o vício de “contradição insanável” quando se constata incompatibilidade, não ultrapassável, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 29.09.2005, Proc. n° 108/2005 e, mais recentemente de 27.01.2011, Proc. n° 634/2010).
Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que o mesmo apenas existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras de experiência ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 12.05.2011, Proc. n° 165/2011, e mais recentemente de 26.05.2011, Proc. n.° 268/2011 do ora relator).
E, mostrando-se de manter o transcrito entendimento, é de dizer desde já que reparo não merece a “decisão da matéria de facto”.
Com efeito, o Tribunal a quo não deixou de emitir pronúncia sobre toda a matéria objecto do processo, bastando uma mera leitura da decisão recorrida para desta forma concluir.
Quanto aos também assacados vícios de “contradição” e “erro”, idêntica é a solução, pois que labora o recorrente em manifesto equívoco.
De facto, não se vislumbra onde, como ou em que termos terá o Mmo Juiz a quo violado, qualquer regra sobre o valor da prova tarifada, regra de experiência ou legis artis, nem se alcança onde assenta a imputada contradição.
Se bem se entende, diz o recorrente que tais vícios se prendem com o “valor” do título de transporte.
Porém, tal questão, a existir, é puramente fruto de alguma imaginação do ora recorrente.
De facto, como bem se salienta do douto Parecer do Ilustre Procurador Adjunto, não foi feita a apreensão de nenhuma nota de H.K.D.$500.00 e quanto à diferença do preço do dito título de transporte – um bilhete de Jetfoil de Macau para Hong Kong – o mesmo, tal como provado está, resulta à evidência, do valor constante no próprio bilhete, H.K.D.$176.00, e o cobrado pelo ora recorrente, H.K.D.$300.00.
É também verdade que na sentença recorrida se considerou que o mencionado bilhete era emitido pela “C”.
Porém, tal não deixa de constituir um mero lapso, que em nada prejudica a validade e clareza da decisão recorrida.
Na verdade, (e em síntese), provado está que pelas 00:10 horas do dia 04.02.2011, no edifício do Terminal Marítimo de Macau, o ora recorrente vendeu um bilhete de barco de Macau para Hong Kong no valor de H.K.D.$176.00 por H.K.D.$300.00, e que no local onde foi feita a entrega do dito bilhete, foram também encontrados mais 258 bilhetes com diferentes horas de partida, provado estando, igualmente, que o mesmo recorrente agiu livre e voluntariamente, sabendo que proibida e punida era a sua conduta.
Ora, atento o art. 1°, n.° 1 do D.L. n.° 30/92/M – que prescreve que “quem vender ou revender títulos de transporte de passageiros entre Macau e o exterior, ou documentos suficientes à sua obtenção, por preço superior ao preço aprovado pela entidade competente, é punido com a pena de prisão até três anos insubstituível por multa e multa de cinco mil a cinquenta mil patacas” – evidente é que cometeu o recorrente o crime pelo qual foi punido, pois que também não se vislumbra qualquer violação ao art. 15° do C.P.M., que preceitua sobre o “erro sobre as circunstâncias do facto”, já que, como se consignou, provado está que agiu livre e voluntariamente, sabendo que proibida e punida era a sua conduta.
Assim, (e não podendo este T.S.I. agravar a pena imposta, pois que olvidada foi a pena de multa e o Ministério Público não recorreu), à vista está a solução.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o recorrente a taxa de justiça de 8 UCs.
Macau, aos 07 de Dezembro de 2011
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José Maria Dias Azedo
(Relator)
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
Proc. 656/2011 Pág. 16
Proc. 656/2011 Pág. 1