Processo n.º 951/2010
(Recurso civil e laboral)
Data: 1/Dezembro/2011
RECORRENTES :
Recurso Principal
- A (XXX)
Recursos Interlocutórios
- S.T.D.M.
- A (XXX)
RECORRIDAS :
- As mesmas
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. Vêm interpostos três recursos: dois pela A. A e um pela STDM:
- Um recurso interlocutório interposto pela STDM relativo ao despacho que julgou inaplicável aos créditos peticionados pela A. o prazo de prescrição de cinco anos e, assim, não prescritos todos os créditos reclamados na acção.
- Um recurso interlocutório por parte da A. relativo à não admissão de uma dada prova que pretendia produzir e se traduzia numa ordem à ré para que apresentasse uma acta de uma Assembleia Geral da STDM em que esta deliberara constituir uma sociedade para que concorresse à concessão do jogo.
- Recurso da sentença final pela A., em que impugna a validade da declaração remissiva dos alegados créditos laborais.
2. Em relação ao primeiro daqueles recursos, alega em sede de conclusões a Ré:
A) Os créditos laborais que a A., ora Recorrida, invoca e que sejam anteriores a 25 de Abril de 2002, encontram-se prescritos, pelo decurso do prazo de 5 anos, previsto na alínea j) do artigo 303° do CC e na alínea g) do artigo 310° do CC de 1966, relativamente a cada uma das prestações peticionadas.
B) Os créditos peticionados pela trabalhadora, A. e Recorrida, reconduzem-se às compensações por descanso semanal, anual e em feriados obrigatórios remunerados, alegadamente não gozados.
C) A retribuição paga ao trabalhador possui uma configuração celular, autónoma e independente das restantes prestações suas congéneres.
D) No caso dos presentes autos, tal como foi acordado pelas partes, a retribuição era devida por cada dia de trabalho, e caso a trabalhadora não prestasse qualquer actividade laboral em determinado dia não seria remunerada.
E) Ou seja, se, por hipótese, a A. apenas trabalhasse de forma interpolada durante uma semana, um mês ou todo o ano, apenas receberia pelos dias em que prestou trabalho e não pela totalidade dos dias em que manteve uma relação laboral com a R.
F) Do exposto, conclui-se que cada dia de trabalho era um único dia, independente dos demais, e que a A. apenas seria remunerada se prestasse efectivamente a sua actividade, não lhe sendo paga qualquer retribuição caso essa actividade não fosse prestada.
G) O mesmo se diga em relação aos créditos respeitantes a dias de descanso.
H) O direito ao gozo de dias de descanso semanal, anual ou em feriados obrigatórios, vence-se por mero decurso do tempo, sendo a sua cadência, no caso dos dias de descanso semanal, de uma vez por semana; no caso dos dias de descanso anual, de seis vezes por ano; e, no caso dos feriados obrigatórios (remunerados e não remunerados), de 9 ou 10 vezes por ano.
I) Assim, em cada sete dias de trabalho, vence-se o direito a um dia de descanso semanal; em cada 365 dias vence-se o direito a seis dias de descanso anual; e em cada feriado obrigatório vence-se o direito ao gozo desse dia.
J) Ou seja, os créditos ora peticionados pela A., reportam-se a direitos que se renovam periodicamente.
K) Se os créditos ora peticionados se reportam a direitos renováveis periodicamente, também eles (os créditos) são renováveis periodicamente.
L) Estando sempre em causa prestações que são independentes umas das outras e que se vencem sucessivamente, aplica-se o prazo prescricional de 5 anos para cada um dos salários e compensações reclamados pela A., pelo facto de serem periodicamente renováveis (prestações sucessivas, continuativas, periódicas, continuadas, com trato sucessivo ou reiteradas).
M) Pelo que os créditos laborais invocados e reclamados pela A., com mais de cinco anos, a contar da data da citação da R., encontram-se prescritos.
N) Quando a R. foi citada, em 25 de Abril de 2007, a relação de trabalho com a A. havia terminado há quase cinco anos, pelo que, salvo melhor opinião, os créditos alegados pela A. que respeitarem ao período anterior a 25 de Abril de 2002, encontram-se prescritos.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se a decisão recorrida, proferindo-se uma outra em conformidade.
3. Sobre o recurso interlocutório do indeferimento de uma dada prova, alega o A:
A. A verdade que o processo procura atingir não é apenas a "verdade" da Base Instrutória, mas a verdade da relação material controvertida, a única que consente a justa composição do litígio imposta pelos referidos art. 6.°, n.º 3 e n.º 442.°, n.º 1 do CPCM.
B. Os poderes cognitivos do juiz não estão limitados pela Base Instrutória, mas apenas pela matéria de facto alegada pelas partes, dentro do funcionamento dos ónus de alegação que sobre cada uma impendem, sem prejuízo do disposto nos n. 2 e 3 do artigo 5.° do CPCM e n.º 1 do art. 41.° do CPT.
C. A selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, designadamente o direito à prova dos fundamentos da acção.
D. Se, segundo o art. 6.°, n.º 3 do CPCM, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo dos outros de que também deva conhecer, não faz sentido que indefira uma diligência probatória destinada à prova de um facto alegado pela parte, com o fundamento de que tal facto não consta da Base Instrutória.
E. O requerido no ponto 1 do requerimento probatório da A. destina-se à prova do alegado nos artigos artigo 39.° e 40.° da Resposta à Contestação, pelo que releva para a apreciação da questão da invalidade do acto ou negócio a que se refere o quesito 17.° da Base Instrutória e também para a resposta ao quesito 28 da Base Instrutória por demonstrar que a sociedade que a STDM constituiu para para se candidatar à concessão da licença de jogo não dispunha de autonomia funcional em relação à STDM, sendo instrumental à prossecução da sua estratégia para o negócio do jogo.
F. Acresce que as diligências probatórias requeridas não são, nem impertinentes porque respeitam ao objecto da causa, nem dilatórias - porque não retardam a normal marcha do processo a ponto de afectar o direito de obter uma decisão em prazo razoável1, pelo que nada impunha ou justifica o seu indeferimento.
G. Inexiste, portanto, motivo atendível para indeferir a diligência requerida no ponto 3 do requerimento probatório do A., a qual sempre seria de deferir por se destinar à prova dos fundamentos da acção.
H. O objecto da prova requerida nos ponto 1 probatório do A. consiste em factos nos quais o Tribunal pode fundar a sua decisão nos termos do art. 5.° do CPCM, pelo que a sua relização se inscreve no direito à prova dos fundamentos da acção que assiste à A.
I. A decisão recorrida, violou, assim, nesta parte, o disposto nos art. 5.°, 6.°, n.º 1 e 3 e 442.°, n.º 1 do CPCM e, em consequência "o direito à prova relevante" que assiste à A., ora Recorrente.
J. A fundamentação da decisão recorrida tem subjacente uma concepção de "objecto de prova admissível" mais restritiva do que aquela que decorre da lei dado que, como flui dos artigos 335.°, n.º 1, do Código Civil, 5.°, n.º 1, 2 e 3, 6.°, n.º 3, 434.°, 436.º e 562.°, n.º 2, do CPCM, o objecto da prova não se esgota na matéria contida na Base Instrutória.
K. Neste contexto, nada obstava a que fossem deferidas as diligências de prova requeridas pelo A., uma vez que respeitam à matéria da causa e visam demonstrar factos de que o Tribunal pode e deve conhecer para fundar a sua decisão (art. 5.°, 6.°, n.º 3 e 562.°, n.º 3, in fine, todos do CPCM), sendo prematuro, nesta fase processual, qualquer juízo antecipado sobre a sua maior ou menor relevância para a justa composição dos interesses em litígio.
NESTES TERMOS, conclui, deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se o despacho ora recorrido por outro que ordene a realização das diligências probatórias requeridas, se razão diversa a tal não obstar, anulando-se os termos subsequentes do processo que dele dependam absolutamente, com as legais consequências.
4. Em sede do recurso final, diz a A:
A. Os elementos de prova produzidos nos autos e especificados no corpo destas alegações não suportam a convicção que o Tribunal a quo formou quanto à matéria dos quesitos 12.° a 15.°, 17.° a 21.°, 23.° e 24.º da Base Instrutória, os quais deveriam, por isso, ter sido dados como "PROVADOS".
B. Ao responder não provado à matéria dos quesitos 12.° a 15.°, 17.° a 21.°, 23.° e 24.º da Base Instrutória o Tribunal a quo violou o disposto no art. 558.°, n.º 1 do CPCM e a força probatória plena conferida ao documento xxx pelo art. 365.°, n.º 1 do CCM, com o que incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, devendo, por conseguinte, serem as respostas aos referidos quesitos alteradas para "Provado" nos termos do disposto no art. 629.°, n.º 1, a) do CPCM.
C. O Tribunal a quo decidiu pela procedência de excepção peremptória da extinção dos créditos da A. sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos e provas de que lhe era ilícto e cumpria conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos 39.°, 40.° e 43.° da Resposta à Contestação, tendo com essa dupla omissão, violado o disposto no art. 5.°, n.º 2 e 562.°, n.º 3, parte final, ambos, do CPCM, pelo que a sentença recorrida incorreu no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art. 571.° do CPCM.
D. O Tribunal a quo decidiu pela procedência de excepção peremptória de extinção dos créditos, sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos e provas de que lhe era lícito e cumpria conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos 39.°, 40.° e 43.° da Resposta à Contestação, tendo com essa dupla omissão, violado o disposto no art. 5.°, n.º 2 e 562.°, n.º 3, parte final, ambos, do CPCM, e incorrido no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art. 571.° do CPCM.
E. Por outro lado, o Tribunal a quo decidiu pela procedência da excepção peremptória oposta no artigo 39.° da Contestação, sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos de que lhe era ilícto conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos artigos 39.°, 40.° e 43.° da Resposta à Contestação, e referidos nos documentos de fls. 283, 323, 326, 332 e 335 relativos aos efeitos da relação do domínio da Ré sobre a SJM na manutenção dos constrangimentos que afligiam os trabalhadores e à falta de autonomia funcional da SJM face à STDM, à data da assinatura da declaração de fls. 79.
F. Com esta dupla omissão quanto aos factos e provas que lhe cumpria conhecer, a sentença recorrida incorreu na violação do disposto no art. 5.°, n.º 2, 434.° e 562.°, n.º 3, parte final, todos do CPCM, o que impediu o Tribunal a quo de apreciar a validade da declaração de fls. 79 à luz do n.º 2 do art. 111.° do Código Comercial e dos efeitos da manutenção dos mesmos constrangimentos (que afligiam os trabalhadores) inerentes à relação do domínio da Ré sobre a SJM, designadamente o efeito da dependência económica provado no documento de fls. 451
G. Por conseguinte, a sentença recorrida incorreu no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art. 571.° do CPCM.
H. Por outro lado, ao não tomar em conta os factos notórios e as provas de que lhe cumpria conhecer, o Tribunal a quo violou o disposto no art. 434.°, 5.°, n.º 2 e 3 e 562.°, n.º 3, todos do CPCM, o que o impediu de apreciar a validade da declaração de fls. 79 à luz do n.º 2 do art. 111.° do Código Comercial e dos constrangimentos que afligiam os trabalhadores inerentes à relação do domínio da Ré sobre a SJM.
I. A segunda parte da "declaração" (聲明書) relativa ao "prémio de serviço" (服務賞金) a que se refere o documento 1 da Contestação (fls. 79) consubstancia um acto ou negócio nulo, nos termos do disposto no art. 287.° do Código Civil ex vi dos artigos 6.º e 33.º do Decreto-Lei 24/89/M, independentemente de a relação jurídica iniciada com a Ré se ter ou não extinto com a transferência da A. para a SJM na sequência da caducidade em 31 de Março de 2002, do contrato para a concessão do exclusivo da exploração de jogos de fortuna ou azar, celebrado entre a Região Administrativa Especial de Macau e a Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, conforme o Despacho do Chefe do Executivo n.º 259/2001.
J. A declaração a que se refere o documento de fls. 79 configura uma compensação extraordinária de eventuais direitos a título de Prémio de Serviço.
K. Não se trata do pagamento da dívida pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória remunerada da prestação de trabalho previstos na lei.
L. Por outras palavras, o documento de fls. 79 não tem por objecto nenhuma prestação determinada que a Ré tenha ficado adstrita para com a Autora por virtude do vínculo jurídico previsto no art. 391.° do CCM, sem o qual não se pode falar em dívida.
M. A declaração a que se refere o documento de fls. 79 não configura um contrato de remissão de créditos nem um reconhecimento negativo de dívida, porque para que exista um contrato de remissão de créditos ou uma declaração de reconhecimento negativo de dívida é necessário que o credor queira renunciar a esse crédito (efectivamente existente) ou que a dívida objecto do reconhecimento (efectivamente) exista ou que, tendo efectivamente existido, haja entretanto sido extinta pelo pagamento.
N. Por outras palavras, o credor só se pode reconhecer a inexistência de uma obrigação que nunca tenha existido ou que, a ter existido, foi entretanto extinta pelo pagamento, sendo-lhe impossível reconhecer a inexistência ou dar quitação de direitos eventuais ou contingentes, os quais, por natureza e definição, são direitos de existência incerta ou duvidosa e por isso mesmo insusceptíveis de abdicação ou de reconhecimento negativo.
O. E mesmo que se entenda que o reconhecimento negativo de dívida possa incidir sobre eventuais direitos, e não pode, face à definição de dívida fixada no art. 391.º do CCM, o certo é que a segunda parte do documento de fls. 79, reporta-se a "outro direito" que não os "eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho."
P. É, pelo menos este o sentido normal que inculca a expressão "nenhum outro direito" reproduzida na segunda parte do documento de fls. 79.
Q. Isto porque "outro" direito significa "que não é o mesmo" direito.
R. E se não é o mesmo direito, então, na segunda parte do documento de fls. 79 não estamos a falar dos eventuais direitos referidos na primeira parte do documento de fls. 79, mas sim de outros direitos (não especificados) decorrentes da relação de trabalho com a STDM.
S. Assim, a sentença recorrida ao qualificar a segunda parte do documento de fls. 79 como um reconhecimento negativo de dívida violou o art. 391.º do CCM, uma vez que dela não resulta que a obrigação peticionada em juízo nunca tenha existido ou que, tendo existido, haja sido extinta pelo pagamento.
T. Por outro lado, no caso "sub judice" o Tribunal a quo entendeu que a Autora quis declarar extintas pelo pagamento todas as dívidas emergentes da relação de trabalho, por ter recebido, voluntariamente, a título de prémio de serviço, uma compensação extraordinária de eventuais direitos.
U. Sucede que o comportamento do declarante não suporta minimamente tal interpretação, pelo que este resultado interpretativo do Tribunal a quo quanto ao sentido decisivo da declaração negocial de fls. 79 não coincide com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, pudesse deduzir do comportamento do declarante.
V. Por conseguinte, a interpretação do Tribunal a quo quanto ao sentido decisivo da declaração negocial de fls. 79, violou o disposto no 228.°, n.º 1 do CCM.
W. Em consequência, não pudendo o Tribunal a quo supor que a Autora quis declarar extintas pelo pagamento todas as dívidas emergentes da relação de trabalho pelo simples facto de ter recebido uma compensação extraordinária de eventuais direitos, afigura-se ser de revogar a decisão ora recorrida que considerou procedente a excepção peremptória oposta pela Ré à pretensão da Autora deduzida em juízo.
X. Subsidiariamente, o que existiu foi um acordo, que reduziu o valor da retribuição devido à Autora pelo trabalho prestado nos períodos de suspensão obrigatória da prestação de trabalho previstos na lei.
Y. Este acordo levou à emissão da declaração de fls. 79, sendo esta declaração mero acto posterior àquele.
Z. E uma vez que o acordo acima referido não foi precedido de autorização do Gabinete para os Assuntos de Trabalho, conforme impunha o n.º 1 da alínea d) do artigo 9.° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, nem celebrado segundo a forma legalmente exigida, ao abrigo do disposto no art. 212.° ex vi do art. 1174.° do CCM, o mesma é nulo e, como tal, insusceptível de produzir qualquer efeito.
AA. Por outro lado, à data da assinatura da declaração de fls. 79 era a Ré quem pagava os salários à A., conforme a declaração de fls. 451 do Banco Tai Fung, pelo que o vínculo de dependência económica da Autora em relação à STDM se mantinha, sendo, por isso, nulo o acto ou negócio a que se refere o documento de fls. 79.
BB. Para inculcar directamente a sua vontade na sociedade dominada, a Ré, através da "Investimentos - STDM, Lda." elegeu o Sr. Stanley Hung Sun Ho como Administrador-Delegado da SIM para o período de 31/03/2002 a 31/03/2004 (fls. 319 a 321 e 332), o qual, à data da assinatura da declaração de fls. 79, era também o Administrador-Delegado da STDM (fls. 304).
CC. Assim à data em que a declaração de fls. 79 foi assinada, a STDM dispunha do poder de inculcar directamente a sua vontade no órgão de administração da SJM através do Administrador-Delegado comum a ambas as sociedades.
DD. Assim, se a SJM, mercê do seu estatuto de sociedade dominada pela Ré (fls. 283), não dispunha, de direito, de autonomia funcional por estar sujeita às instruções vinculantes da sociedade dominante, afigura-se conforme à figura da relação de domínio existente, presumir que se mantinham, à data da assinatura do documento 1 da Contestação (fls. 79), constrangimentos de nível psicológico que inibiram o trabalhador de, livremente, manifestar a sua vontade negocial.
EE. A assinatura do documento intitulado "declaração" (聲明書) não correspondeu assim à manifestação e uma vontade livre e esclarecida por banda da A., porque toldada pelo particular estado de sujeição resultante da relação de dependência económica face à sociedade dominante e do receio de represálias por parte da SJM a mando da STDM.
FF. Ainda que fosse de acolher a jurisprudência portuguesa que consente a relativa disponibilidade dos créditos salariais após a cessação da relação laboral, afigura-se evidente que tal entendimento não teve seguramente em vista a situação do caso sub judice, na qual a A. quando assinou o do documento 1 da Contestação (fls. 79), trabalhava para a SJM, i.e. trabalhava numa subsidiária sujeita a uma relação de domínio por parte da Ré.
GG. Isto porque, por identidade de razão, procederem as mesmas razões, designadamente, os mesmos constrangimentos que obstam à disponibilidade dos créditos salariais na vigência da relação de trabalho com a sociedade dominante.
NESTES TERMOS, em seu entender, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências.
5. A Ré contra alega defendendo a bondade do decidido.
6. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vem provada a factualidade seguinte:
“Da confissão e das provas documentais resultam provados os seguintes factos:
Após o debate e audiência de julgamento, foram aprovados pelo Tribunal os factos abaixo indicados (Em conformidade com os articulados apresentados pelas partes, cabe-se citar a matéria de facto conforme os originais que foram redigidos em português):
A Ré tem por objecto social a exploração de jogos de fortuna ou azar, a industria hoteleira, de turismo, transportes aéreos, marítimos e terrestres, construção civil, operações em títulos públicos e acções nacionais e estrangeiras, comércio de importação e exportação. (A)
Desde os anos sessenta, a Ré foi concessionária de uma licença de exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna e azar ou outros, em casinos. (B)
Essa licença de exploração terminou em 31 de Março de 2002. (C)
A Autora manteve uma relação contratual com a Ré, no período temporal compreendido entre 11 de Setembro de 1984 e 27 de Julho de 2002. (D)
Durante os primeiros anos, a sua função foi a de prestar assistência a clientes da Ré. (E)
Após o términus desse período, passou a exercer as funções de “Croupier” e mais tarde “superviser” até 27 de Julho de 2002 data em que deixou de trabalhar para a Ré. (F)
O horário de trabalho da Autora foi sempre fixado pela Ré, em função das suas necessidades, por turnos diários, em ciclos de três dias, num total de 8 horas, alternadas de 4 em 4 horas, existindo apenas o período de descanso de 8 horas diárias durante dois dias e um período de 16 horas de descanso no terceiro dia. (G)
Os rendimentos da Autora tinha uma componente fixa e uma variável. (H)
A parte variável do salário da Autora era proveniente das gorjetas recebidas dos clientes da Ré. (I)
Tanto a parte fixa como a parte variável (as gorjetas) relevavam para efeitos de imposto profissional. (J)
A Autora tinha era o direito de pedir licença mas sem remuneração quer a nível de salário fixo quer a nível do salário variável. (K)
A Autora nunca recebeu qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias e descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios. (L)
A Autora recebeu em meados de Julho de 2003, um ofício enviado do Departamento da Inspecção do Trabalho (DIT), relativo ao processo n.º 1476/02. (M)
A Autora iniciou a sua relação laboral com a Ré, sob direcção efectiva, fiscalização e retribuição por parte desta. (1.º)
O rendimento médio diário efectivamente recebido pela Autora, entre os anos de 1984 e 2002, foi de:
a) 1984=MOP31,05
b) 1985= MOP112.14
c) 1986= MOP 102,90
d) 1987= MOP 157,45
e) 1988= MOP 199,32
f) 1989= MOP 262.02
g) 1990= MOP 323,18
h) 1991= MOP 366,09
i) 1992= MOP 371,11
j) 1993= MOP 424,23
k) 1994= MOP 439,79
l) 1995= MOP 545,41
m) 1996= MOP 536,96
n) 1997= MOP 516,58
o) 1998= MOP 20,00
p) 1999= MOP 460,36
q) 2000= MOP 410,38
r) 2001= MOP 426,89
s) 2002= MOP 456,84. (2.º)
Desde o início da relação laboral e até 27 de Julho de 2002, nunca a Autora gozou um único dia de descanso semanal. (4.º)
Durante todo o tempo que durou a relação laboral, nunca a Autora gozou o período de descanso anual (5.º).
Durante toda a relação laboral, nunca a Autora gozou descanso nos feriados obrigatórios. (6.º)
No dia 28 de Julho de 2003, a Autora recebeu a quantia de MOP31653.32 (trinta e um mil e seiscentas e cinquenta e três patacas e trinta e dois avos) a título de compensação relativa a descansos semanais, feriados obrigatórios e descanso anual, e eventualmente licença de maternidade, bem como pela rescisão do contrato de trabalho que ligava a Autora à Ré (Documento a fls. 79, que se dá por integralmente reproduzido) (27.º).”
III - FUNDAMENTOS
Vamos tratar dos diferentes recursos, pela ordem que se nos afigura corresponder a uma ordem lógica em termos de dependência ou prejudicialidade entre as diferentes matérias e excepções.
A - Sobre o recurso interlocutório do A.
Não tem razão a recorrente, porquanto, como bem refere a Mma Juiz recorrida, não se lhe afigura que tal prova se mostrasse relevante ou de interesse para o thema decidendum.
No fundo, o que a recorrente pretende é abalar a validade da declaração do trabalhador e procurar convencer que a SJM e a STDM são uma mesma empresa e que o trabalhador em causa mais não fez do que continuar a mesma relação jurídico-laboral.
Esta é questão que já tem sido muito abordada nos nossos Tribunais e como adiante se verá tem-se concluído em sentido diverso do pretendido.
Mas também é verdade, como já noutros casos se tem afirmado, que cada caso é um caso e a parte em cada processo tem o direito de fazer valer as provas que convençam da sua posição e dos interesses legitimamente defendidos numa dada acção em concreto.
Isto para se dizer que, se por um lado é a parte que deve fazer uma primeira avaliação da relevância das provas a apresentar, também o Tribunal não se deve eximir a uma análise da pretensão da parte e não admitir provas que se tenham por destituídas.
Admitamos assim que se permitia aquela prova - e nem sequer se questiona aqui a validade da substituição do Tribunal à parte na produção da prova - e se tinha como provada a alegada matéria de facto dos artigos 39º e 40º da resposta à contestação. E daí? Esse facto por si só nada vale e do conjunto das provas bem se pode retirar que se trata de sociedades diferentes, devendo a validade da declaração negocial contida no documento de fls 79 ser aferida em função de outros factores.
Não se vislumbra que haja uma relação causal entre a referida deliberação e o pretenso temor reverencial ou outro que abale a vontade da declarante.
Para além de que se trata de um facto que, a ter relevância autónoma, devia ter sido quesitado e da sua concreta não inserção se devia ter reclamado, o que não ocorreu.
Não sem que se aduza um outro argumento.
A mera relação de domínio, tal como quesitado vem, não é bastante por si só para afectar a vontade negocial do declarante.
Acresce que o entendimento da Mma Juiz se mostra escudado na previsão do artigo 455º, n.º 2 do CPC, aí se dizendo que só deve ser ordenada a notificação de documentos em poder da parte contrária se os factos que a parte pretende provar tiverem interesse para a decisão da causa.
Donde, sem necessidade de maiores desenvolvimentos, somos a julgar improcedente o presente recurso.
B - Sobre o recurso final
1. Perde-se o recorrente com uma análise detalhada de alguns documentos e do que disseram algumas das testemunhas para tentar comprovar o desacerto da decisão da matéria de facto.
Nomeadamente em relação aos quesitos 12º, 13º a 15º, 17º a 20º, 21º, 23º, 24º da Base Instrutória.
2. Como se disse, alguns dos factos alegados, ainda que instrumentais, por si só, não são decisivos, donde, mesmo a terem-se dado como provados não implicariam uma resposta diferente aos aludidos quesitos.
O Mmo Juiz explicou bem da sua razão de ciência e de não ciência e não podemos ignorar que os excertos transcritos não deixam de ser parcelares e não se mostram determinantes no sentido de infirmar a convicção firmada.
Importa ter presente que por vezes se trata de meras convicções dos depoentes.
O facto nuclear relativo ao condicionamento da vontade do declarante é do foro íntimo e, porventura integrante de matéria probanda, de mais difícil apreensão, não se mostrando ser decisiva qualquer prova das elencadas pelo recorrente no sentido de infirmar a convicção do julgador, não se evidenciando qualquer erro no julgamento de facto que foi efectuado.
3. Muito sumariamente não se deixa de responder concretamente às apontadas insuficiências invalidantes do julgamento de facto produzido.
Quesito 12º - O elemento em que a recorrente se baseia para pretender uma resposta positiva ao quesito 12º não se mostra decisivo de forma a infirmar a resposta dada porquanto o seu conteúdo não é exactamente aquilo que se pergunta.
Mas admitamos até que no essencial a resposta seria dar como provada a comunicação tal como consta do referido documento de fls 444. Ainda aí essa resposta não determinaria outro desfecho no sentido de se ter como provada a viciação da vontade da trabalhadora em causa.
Quesitos 13º a 15º - Como está bem de ver, um depoimento como o que resulta tal como prestado por XXX não pode infirmar uma convicção do julgador quanto à indagação de um facto íntimo, como é a motivação da declarante quando aceita uma dada quantia e não pode ignorar o seu conteúdo ou deixar de se inteirar sobre o mesmo.
E não é pelo facto de se fazer incluir o valor das gorjetas ou não no salário - matéria que não deixa de ser controvertida - que poderia determinar diferentemente a trabalhadora, sendo que não está excluída uma margem de liberdade e de auto determinação da vontade nessa escolha e recebimento.
Quesitos 17º a 20º - O elemento probatório em que a recorrente se estriba para pretender uma resposta positiva a estes quesitos - que só assinou porquanto lhe foi dito que perderia o emprego ou que o seu contrato não teria continuação - é necessariamente parcelar e continua a não ser bastante para comprovar um facto do foro interior que só a globalidade dos factos se pode extrair.
Mas admitamos ainda aqui que se configura uma hipótese em que a trabalhadora interioriza a possibilidade de algum condicionamento, pensando, ainda que erradamente, que o anterior e o novo patrão são os mesmos. Não seria legítimo o trabalhador entender não dever iniciar um novo contrato sem que mantivesse ou tivesse uma demanda, porventura judicial, com o seu empregador? Não deixaríamos ainda aí de estar perante um certo condicionamento moral, é certo, mas que de todo não excluiria uma margem de determinação não invalidante do valor negocial do documento por si assinado.
Quesito 21º - Quanto acima se disse não deixa de ser válido para a compreensão da resposta a este quesito.
Quesito 23º - Este facto, mesmo a ser provado, não faz inverter o sentido da decisão e da validade do documento de fls 79 assinado pela trabalhadora.
Acresce que a prova testemunhal não será o meio mais idóneo para comprovar uma relação laboral se houver outros meios que a possam documentar e o certo é que a documentação referida também não é decisiva, para mais se se procura datar essa relação reportada a um dia exacto.
Assim falecem as razões da recorrente quanto a esta impugnação.
Quesito 24º - Ainda aqui o facto, mesmo a ser dado como provado, também não se mostraria decisivo, pois que daí não decorre necessariamente a viciação da vontade negocial da declarante.
No entanto, não se deixa de referir que a formulação do quesito não se esgota no facto de a STDM ser sócia dominante, mas a resposta passava ainda pelo controle da dita sociedade, podendo estar-se, abstractamente considerando, perante realidades que se não confundem.
4. Ainda quanto a pretensos fundamentos da viciação da vontade do trabalhador.
Como já dito em tantos outros processos, poder-se-á argumentar com o facto de a autora só ter assinado a declaração porque incorreu em erro sobre a base do negócio, quicá, por desconhecer as consequências da emissão de tal declaração.
Francamente, então a sua adesão a um determinado resultado está somente dependente da manutenção do trabalho ou de eventual erro sobre os montantes em jogo? Se assinou pela primeira razão será difícil compreender essa posição, pois que os valores compensatórios equilibrariam aquele prejuízo, para mais facilmente neutralizado com a facilidade de obtenção de emprego que consabidamente se vivia à época; se pelo desconhecimento dos valores em jogo, então não deixa aqui de haver uma contradição, ficando-se sem saber se foi determinada pelo medo ou pelo erro. Para além de que não seria difícil pedir conselho sobre o que pensava ter direito, como aliás flui da petição que apresentou em juízo.
Não se deixa de reconhecer que, em tese, tal é humanamente legítimo, mas já será eticamente de difícil aceitação. O trabalhador não é um incapaz e tem todos os meios e discernimento em termos de autonomia para se poder determinar.
Tanto assim que soube procurar patrocínio a fim de obter uma leitura diferente daquela que os Serviços de Trabalho e Emprego tiveram, observando-se até não estar desacompanhado nessa mesma análise e interpretação jurídica.
Para além de que os depoimentos apresentados não deixam de ser sectoriais, por quem se apresenta com um interesse paralelo ao A. e contrariados pela prova globalmente considerada.
5. Desenvolvendo ainda os pontos pretensamente controvertidos em termos de matéria de facto.
Quanto ao temor reverencial e manutenção de patronato.
Desde logo, é indesmentível a diferenciação jurídica e de substracto entre a SJM e a STDM e a extinção do objecto social da STDM relativamente à exploração do jogo face à abertura das novas concessões.
O Autor pretende comprovar uma relação de domínio da Ré sobre a STDM, utilizando conceitos jurídicos de natureza comercial que não têm correspondência com a base factual.
Nem sequer a pretensa referência ao nome da STDM nas referidas cadernetas e documentos de pagamento, sendo um elemento entre tantos, não é decisivo.
Então, não é reconhecida como possível a assunção e transmissão da dívida sem que tal signifique a tomada da gestão ou do domínio do negócio?
Todos os elementos e documentos concretamente enumerados pelo A. nas suas alegações de recurso não são, por si só, definitivos no sentido de uma resposta positiva ao quesitos pertinentes para demonstrar a viciação da vontade da trabalhadora em causa, não passa a explicação para a constituição de uma nova sociedade apenas por uma posição predominante do capital social, mas também por um facto muito concreto que bem pode passar por uma política efectiva de gestão e conjecturalmente de autonomia concorrencial que não se pode retirar taxativamente dos elementos elencados.
Não se vê razão, pois, ainda aqui, para se abalar a convicção a que o Tribunal chegou, não se mostrando ela desmentida pelos elementos ora aludidos e oportunamente carreados para os autos.
É certo que, atomisticamente considerados, os pretendidos elementos podiam inculcar no sentido proposto pelo recorrente; só que se trata de elementos parcelares e que não se mostram decisivos.
6. Da assinatura da declaração por se poder tratar-se de um bónus de serviço.
Quanto a isto, dir-se-á que tal tese é desmentida categoricamente pelo texto da referida declaração onde, a propósito do recebimento de um prémio de serviço, se diz claramente o que é que está em causa, ou seja os pagamentos dos créditos exactamente reclamados nos autos, compensações por descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
7. Assim se entra na análise da eficácia da declaração de remissão dos créditos, afastados que foram os argumentos que iam no sentido da sua invalidade por viciação da vontade declarativa subjacente à sua emissão.
E no essencial para reafirmar a Jurisprudência que de certa forma, não obstante as doutas posições em contrário, se vem adoptando neste TSI.
Tal análise passa pela análise das seguintes questões:
- Da aplicação do Código Civil em detrimento do DL 24/89/M de 3/Abril
- Da natureza, validade e alcance da declaração e da disponibilidade ou indisponibilidade dos direitos
- Do princípio do favor laboratoris
- Da validade da declaração
- Vício da vontade
8. O Mma Juiz a quo julgou procedente e provada a excepção peremptória do pagamento e renúncia expressa do A. ao pagamento de quaisquer outras quantias por parte da Ré, considerando assim que ele renunciou ou abdicou dos créditos decorrentes do referido contrato a que eventualmente ainda tivesse direito.
Insurge-se o recorrente, que peticionou na acção o pagamento das compensações devidas pelo pretenso não gozo de determinados descansos (semanal, anual e feriados, etc.), durante os anos em que trabalhou para a Ré STDM, pela aplicação do artigo 854º do CC, tomada como remissão dos créditos a declaração acima referida, segundo a qual o trabalhador, aquando da cessação da relação laboral assinou uma declaração dizendo receber as quantias a que se considerava com direito, mais dizendo que considerava não subsistir qualquer outro direito decorrente da relação laboral que então findava.
E por considerar que a situação não integra qualquer lacuna, já que regulada pelos artigos 1º e 33º, entre outros, do RJRL (DL24/89/M, de 3/4), não seria aplicável o regime geral que, no fundo, permite a disponibilidade dos créditos do trabalhador.
9. Antes de esmiuçar esta questão, importa caracterizar a natureza e alcance da declaração que o trabalhador assinou, para assim se ver se ela está ou não regulada no RJRL. Só se se concluir que se trata de uma renúncia de direitos indisponíveis abrangida por aquele regime se poderá afirmar a inaplicabilidade do regime geral consagrado na lei civil.
Analisando a transcrita declaração, os seus termos, em chinês e em português, são claros e o sentido que um declaratário normal - e face ao disposto no artigo 228º do CC, é esse o sentido que há que relevar - dali se retira que o trabalhador, face à rescisão do contrato de trabalho, no que respeita à relação laboral subsistente até então, recebeu uma certa quantia, referente a compensações de eventuais direitos, nomeadamente relativos aos descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, aceitando que nenhuma outra quantia fosse devida.
Em linguagem simples, deu quitação da dívida.
10. Mas vem agora demandar outros montantes, quantitativamente muito maiores, numa desconformidade que desde logo impressiona, em relação àqueles que aceitou receber. E impressiona, porque em face de tais montantes, se não se considerava pago, face ao prejuízo que se afigurava, não devia ter assinado essa declaração.
Dir-se-á que não tinha consciência do montante dos créditos ou que fora induzidos em erro; mas essa é uma outra questão que devia ter sido comprovada, não se deixando de adiantar que tal como agora ocorreu não havia razões para se aconselhar sobre o alcance dos créditos a que efectivamente teria direito.
11. Pretende a recorrente que se tratou de uma renúncia de direitos indisponíveis.
E para tanto invoca a natureza indisponível dos direitos concedidos ao trabalhador, a natureza proteccionista daquele diploma em relação a tais direitos, a necessidade de protecção da parte mais fraca, a posição dominante da concessionária empregadora, a menor margem de liberdade do trabalhador.
Não tem razão a recorrente.
Não obstante ser verdade o que diz quanto à enunciação daqueles princípios, a protecção que deve ser dispensada ao trabalhador não pode ser absoluta nem fazer dele um incapaz sem autonomia e liberdade, ainda que aceitando os condicionamentos específicos decorrentes de uma relação laboral.
É verdade que, desde logo, o RJRL, no seu art. 1°, pugnando pela "observância dos condicionalismos mínimos" nele estabelecidos, prevê que
“O presente diploma define os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre empregadores directos e trabalhadores residentes, para além de outros que se encontrem ou venham a ser estabelecidos em diplomas avulsos.”
E no art. 33º do R.J.R.T.
”O trabalhador não pode ceder, nem a qualquer outro título alienar, a título gratuito ou oneroso, os seus créditos ao salário, salvo a favor de fundo de segurança social, desde que os subsídios por este atribuídos sejam de montante igual ou superior ao dos créditos.”
Daqui decorre que nenhum desses artigos contempla ex professo a situação em apreço. Antes respeitam a situações diferentes, nomeadamente o artigo 33º o que prevê é a impossibilidade de renúncia a um salário e não já às compensações devidas por trabalho indevido.
Tais preceitos dispõem sobre a regulação do exercício de uma relação laboral ainda em aberto, compreendendo-se que por essa via, ao trabalhador sejam garantidos aqueles mínimos que o legislador reputa como as condições mínimas de exercício humano, digno e justo do trabalho a favor de outrem.
Tais cautelas já não são válidas quando finda essa relação, como acontece no caso presente.
E também não são válidas quando já não está em causa o exercício dos direitos, mas apenas uma compensação que mais não é do que a indemnização pelo não gozo de determinados direitos.
Não deixaria de ser abusivo e contrário à autonomia da vontade e liberdade pessoal, próprias do direito privado, que alguém, incluindo o trabalhador, não pudesse ser livre quanto ao destino a dar ao dinheiro recebido, ainda que a título de compensações recebidas por créditos laborais.
A não se entender desta forma, pese embora a aberração do argumento, ter-se-ia de obrigar o trabalhador a aceitar o dinheiro e, mais, importaria seguir o destino que ele lhe daria.
12. Diferentes são as coisas quando o trabalhador está em exercício de funções e a sociedade exige que as condições de trabalho sejam humanas e dignificantes, não se permitindo salários ou condições concretas de exercício vexatórias e achincalhantes, materializando a garantia da sua subsistência e do seu agregado familiar. Essa tem de ser a inspiração do intérprete relativamente ao princípio favor laboratoris, mas que não pode ir ao ponto de converter o trabalhador num incapaz de querer, entender e de se poder e dever determinar.
Nem aquele princípio, consagrado no artigo 5º do mesmo supra citado Regime nos seguintes termos “1. O disposto no presente diploma não prejudica as condições de trabalho mais favoráveis que sejam já observadas e praticadas entre qualquer empregador e os trabalhadores ao seu serviço, seja qual for a fonte dessas condições mais favoráveis. 2. O presente diploma nunca poderá ser entendido ou interpretado no sentido de implicar a redução ou eliminação de condições de trabalho estabelecidas ou observadas entre os empregadores e os trabalhadores, com origem em normas convencionais, em regulamentos de empresa ou em usos e costumes, desde que essas condições de trabalho sejam mais favoráveis do que as consagradas no presente diploma.” , poderá ter o alcance que se pretende, de limitar a capacidade negocial do trabalhador de forma tão extensa.
O princípio do tratamento mais favorável "...assume fundamentalmente o sentido de que as normas jurídico-laborais, mesmo as que não denunciem expressamente o carácter de preceitos limitativos, devem ser em princípio consideradas como tais. O favor laboratoris desempenha pois a função de um prius relativamente ao esforço interpretativo, não se integra nele. É este o sentido em que, segundo supomos, pode apelar-se para a atitude geral de favorecimento do legislador - e não o de todas as normas do direito laboral serem realmente concretizações desse favor e como tais deverem ser aplicadas"2
Noutra perspectiva3, considera-se que tratamento mais favorável ao trabalhador deve ser entendido em termos actualistas, como o conjunto dos valores que o Direito do Trabalho, de modo adaptado, particularmente defende e entre os quais, naturalmente, avulta a protecção necessária ao trabalhador subordinado. Quando haja um conflito hierárquico entre fontes do Direito do Trabalho, aplicam-se as normas que estabelecem tratamento mais favorável para o trabalhador, sejam elas quais forem; tal não se verificará quando a norma superior tenha uma pretensão de aplicação efectiva, afastando a inferior.
Donde decorre que o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador não é erigido para sufragar toda e qualquer interpretação que permita o alargamento de uma tutela proteccionista injustificada, tendo antes na sua génese a exclusão de um regime, entre dois ou mais aplicáveis, que lhe seja menos favorável.
13. Nesta conformidade falece eventual invocação do artigo 6º do RJRL ”São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”, tendo-se como condições de trabalho, nos termos do art. 2º, al. d) todo e qualquer direito, dever ou circunstância, relacionados com a conduta e actuação dos empregadores e dos trabalhadores, nas respectivas relações de trabalho, ou nos locais onde o trabalho é prestado.
Isto porque, como se disse, já não se trata de conduta e actuação no local de trabalho e exercício de funções.
Tal é a situação dos autos, em que se mostra cessada a relação laboral e assim se tem entendido em termos de Jurisprudência comparada.4
14. Quanto à natureza e validade da declaração.
Afastando-se, como se viu, a aplicabilidade do RJRL em relação à proibição de tal estipulação, importa atentar na natureza que assume a declaração emitida pelo trabalhador aquando da cessação da relação laboral.
Em termos gerais, a remissão de dívida traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação, feita com o acordo do devedor.
A primeira questão que se coloca é a de saber se o documento em causa constitui realmente um contrato de remissão. Pode-se entender que a referida declaração não configura um contrato de remissão, pois que tal implicaria uma identificação e reconhecimento de créditos de que prescindiria.
Mas, o certo é que tal documento contém, pelo menos, uma declaração de quitação que, dada a sua amplitude, abrange todos os créditos resultantes da relação laboral em causa, incluindo os que eventualmente pudessem resultar da sua cessação.
A remissão é uma das causas de extinção das obrigações e traduz-se na renúncia do credor ao direito de exigir a prestação que lhe é devida, feita com a aquiescência da contraparte5, revestindo, por isso, a forma de contrato, como claramente se diz no art.º 854º, n.º 1, do C.C.: "O credor pode remitir a dívida por contrato com o devedor."
15. O que verdadeiramente caracteriza o contrato de remissão é a renúncia do credor ao poder de exigir a prestação que lhe é devida pelo devedor. Ao contrário do que acontece com o cumprimento (em que a obrigação se extingue pela realização da prestação devida) e ao contrário do que acontece na consignação, na compensação e na novação (em que o interesse do credor é satisfeito, não através da realização da prestação devida, mas por um meio diferente), na remissão, tal como na confusão e na prescrição, o direito de crédito não chega a funcionar. O interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente e, todavia, a obrigação extingue-se.6
O direito romano admitia a acceptilatio (remissão de uma obrigação verbal, mediante reconhecimento de se ter recebido a prestação, remissão que extinguia o crédito ipso jure), o pactum de non petendo (convenção pela qual o credor prometia ao devedor que não faria valer o crédito, definitiva ou temporariamente, contra todos - pactum in rem - ou contra determinada pessoa - pactum in provissem, produzindo o pacto o efeito de atribuir uma exceptio contra o crédito) e o contrarius consensus (convenção pela qual se extinguia toda uma relação obrigacional, derivada de um contrato consensual, o que só era possível se nenhuma das partes tinha ainda cumprido7
Pode dizer-se, num certo sentido que, hoje, na remissão, - artigo 854ºdo Código Civil - extinguindo-se a obrigação, o interesse do credor não se satisfaz, nem sequer indirecta ou potencialmente.
16. Mas mesmo que, ainda porventura por algum excesso de rigor formal, se considerasse que o documento em causa não pudesse ser qualificado de remissão, por se entender ser necessário que a declaração nele contida tivesse carácter remissivo, isto é, que a parte tivesse declarado que renunciava ao direito de exigir esta ou aquela concretizada prestação, não se deixará de estar sempre perante uma declaração de quitação em que se consideravam extintos, por recíproco pagamento, ajustado e efectuado nessa data, toda qualquer compensação emergente da relação laboral, o que vale por dizer que todas as obrigações decorrentes do contrato de trabalho tinham sido cumpridas.
Como diz Leal Amado8., uma quitação com aquela amplitude é, sem dúvida, uma quitação sui generis, uma vez que os credores não se limitaram a atestar que receberam esta ou aquela prestação determinada. Ao declarar que recebia as compensações a determinado título e que mais nenhum direito subsistia, por qualquer forma, nada devendo reciprocamente, atestaram que receberam todas as prestações que lhe eram devidas. E essa forma de quitação, por saldo de toda a conta, não deixa de ser admitida em direito.
Perante isto, em vez de se perguntar se o autor renunciou ao direito às prestações que eventualmente lhe seriam devidas em consequência da cessação da relação laboral, perguntar-se-á se essas prestações já se mostram realizadas ou se se mostram extintas, sendo que a resposta a esta última questão, tida como relevante, é seguramente afirmativa, perante a clareza daquela afirmação.
Na verdade, como inequivocamente decorre do teor do documento, os direitos abrangidos pela declaração emitida são os emergentes da relação contratual de natureza profissional que entre A. e Ré se manteve até àquela data.
17. Poder-se-á ainda dizer que a extinção da relação laboral acordada, tornou impossível o cumprimento da obrigação de pagamento ao Autor do que foi por ele solicitado. Daí que ele passasse a ser titular de um outro direito; tal como já se assinalou, o crédito peticionado é o crédito à indemnização devida pelo incumprimento das obrigações que decorreram para a entidade patronal de lhe garantir os aludidos repousos enquanto para ele trabalhou.
Esta perspectiva afigura-se particularmente relevante.
É que não se trata da disponibilidade de direitos, mas sim da compensação pela sua não satisfação.
Pelo contrato havido e comprovado, no âmbito do qual foi emitida aquela declaração, as partes acordaram sobre o montante de indemnização ou "compensação" devida ao Autor e, com o recebimento dessa quantia, a correspondente obrigação da Ré, surgida em substituição da obrigação inicial, extinguiu-se pelo pagamento de que o A. deu total quitação, sendo legítima a transacção extrajudicial sobre o conteúdo ou extensão de obrigação da Ré nos termos do artigo 1172º do CC, não abrangida já por qualquer indisponibilidade.
18. Somos assim, face à caracterização jurídica do acordo celebrado, em considerar que a alegação sobre a vaguidade da declaração de reconhecimento de cumprimento e extinção de toda e qualquer prestação que fosse porventura devida não colhe, face à sua admissibilidade.
Para além de que não se deixaram de concretizar a que título ocorreu o acerto final, quais as compensações a que se procedia, dando-se quitação de todas e eventuais prestações não abrangidas por aquele recebimento.
19. Sobre a eventual situação de inferioridade e dependência ao assinar o recibo, pelo que, não manifestando qualquer vontade negocial, não tomou uma opção livre e consciente, uma escolha livre no tocante à assinatura da referida declaração, estaríamos perante uma situação de erro vício previsto no artigo 240º do CC, face à indução da conduta pela entidade pública tutelar e viciação da vontade, por temor, face à continuação numa sociedade subsidiária da primeira empregadora.
Ou, noutra perspectiva numa situação de coacção moral ou de negócio usurário contemplados nos artigos 240º e 275º do CC.
Trata-se de matéria não comprovada.
20. Como por tudo quanto se vem dizendo não há elementos que possam fundamentar um enquadramento em termos de tal declaração ter sido assinada com base em erro sobre a base do negócio ou em qualquer outro erro ou afectação de uma vontade negocial livre e esclarecida.
21. Valem aqui, em suma, para além do que vem dito, as razões aduzidas na douta sentença recorrida.
Não se deixa de referir que a interpretação acima delineada, não obstante algumas divergências, não tem deixado de ser acolhida nos Tribunais de Macau, conforme parte da Jurisprudência do TSI e a Jurisprudência do TUI.9
Assim se conclui pela não existência dos apontados vícios, sendo de manter a douta decisão proferida.
22. Como é evidente, a relevância e eficácia jurídica que se atribui a tal declaração, tal como se vem dizendo, prejudica o conhecimento do recurso relativo ao conhecimento da invocada excepção da prescrição dos créditos reclamados.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, nos termos e fundamentos expostos, acordam em negar provimento aos recurso interpostos, pela autora, acima identificados, confirmando as decisões recorridas.
Prejudicado fica o conhecimento do recurso interlocutório da Ré relativo à prescrição dos créditos reclamados.
Custas pela autora recorrente.
Macau, 1 de Dezembro de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 Artigo 1º, n.º 1 do CPCM.
2 - Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 11.ª edição, pág. 118.
3 - Menezes Cordeiro, Direito do Trabalho, pág. 219.
4 - Acs. STJ de 20/11/03, proc. 01S4270, de 12/12/01, proc. 01S2271, de 9/10/02, proc. 3661/02
5 - A. Varela, Das obrigações em geral, Coimbra Editora, 2.ª ed., vol. II, pag. 203
6 - A. Varela - Ob. cit., pág. 204
7 - Professor Vaz Serra, BMJ 43, 57.
8 - A Protecção do Salário, pag. 225, eparata do volume XXXIX do Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
9 - Acs do TU I46/07, de 27/2/08; 14/08, de 11/6/08; 17/08, de 11/6/08; TSI, proc. 294/07, de 19/7, entre muitos outros
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951/2010 38/38