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 Processo n.º 971/2010
(Recurso contencioso)

Data: 15/Dezembro/2011


Assuntos:
- Terras; usucapião
- Desocupação de parcelas de terrenos de Coloane
  
  SUMÁRIO:
    De acordo com a Jurisprudência do TUI, depois do estabelecimento da RAEM, face ao disposto no artigo 7º da Lei Básica, não é possível constituir novas situações de propriedade privada que até aí não estivessem reconhecidas como tal.
    
    
  O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira


Processo n.º 971/2010
(Recurso Contencioso)

Data : 15 de Dezembro de 2011

Recorrente: A – Sociedade de Desenvolvimento e Fomento Predial, Limitada.

Entidade Recorrida: Chefe do Executivo da R.A.E.M.
    
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A – Sociedade de Desenvolvimento e Fomento Predial, Limitada, legal representante de B e sua mulher C, com sede em Macau, na Avenida de XXX, nº XX, Edifício “XXX”, Xº andar “X”, matriculada na CRM sob o nº 255XX(SO), não se conformando com o despacho de Sua Excelência, o Chefe do Executivo da R.A.E.M., de 28/09/2010, constante do Processo nº 29/2006/D, que ordenou a desocupação do terreno designado por parcela “B”, descrita na CRP, junto á Pedreira de XXX, em Coloane, Ká Hó e com o Despacho notificado em simultâneo do Exmº Senhor Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes, nos termos dos arts. 20º e ss. do Código de Processo Contencioso Administrativo, vem interpor Recurso Contencioso, alegando em síntese conclusiva:
     A - O recorrente tem legitimidade, está representado, em prazo, pelo que lhe é permitido interpor o presente recurso contencioso.
     B - O acto proferido por Sua Excelência, o Senhor Chefe do Executivo, é nulo por Vício de Forma, designadamente carência absoluta de forma legal por total aus6encia de fundamentação, violando os mais elementares Direitos Fundamentais do recorrente, designadamente, o seu Contraditório, que não pode exercer por desconhecer o conteúdo do Acto – cfr arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 113º, 114º, 115º, 121º e 122º do C.P.A., arts. 4º, 8º, 11º, 18º, 24º, 25º, 36º, 40º e 41º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.
     C - Em consequência da falta absoluta de forma legal, somos em entender que foram, também, violados os Princípios da Legalidade, da Protecção dos Direitos e Interesses dos Residentes, da Igualdade, da Proporcionalidade, da Justiça e Imparcialidade e do Contraditório – cfr. arts. 3º, 4º, 5º e 7º do C.P.A. e arts. 11º, 25º, 36º, 40º e 41º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau.
     D - O Acto simultâneo e relativamente encapotado, mas que ofende directamente Direitos subjectivos do recorrente, proferido pelo Exmº Senhor Director dos SSOPT, é nulo por incompetência – cfr. art. 4º do D.L. 29/97/M, art. 41º da Lei de Terras, art. 122º, nºs 1 e 2, alínea b) do C.P.A. e art. 21º, alínea b) do C.P.A.C..
     E – O recorrente é o dono da Parcela B de terreno, melhor identificada na Notificação Edital e no Processo Instrutor, situação reconhecida expressamente pelas Autoridades recorridas e outras Entidades Públicas, sendo tal parcela usada e estando “ocupada” há mais de 100 anos, motivo porque os Actos recorridos são ofensivos do Direito de Propriedade do recorrente e estando viciados por Violação de Lei e Erros nos seus Pressupostos – cfr. arts. 6º, 7º, 8º e 40º da Lei Básica e arts. 3º, 4º, 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 54º, 76º, 77º, 93º e 122º, nº 1 e 2, alínea d) do CPA.
     F – O recorrente reserva-se o direito de, se e quando vier a conhecer o procedimento, designadamente, mas não só, a Informação para que o Despacho de Sua Excelência, o Senhor Chefe do Executivo remeteu, arguir novos Vícios que, por ora, não são do seu conhecimento, bem como a, em relação a estes, apresentar a prova que venha a considerar necessária à boa decisão dos Autos.
     
     Nestes termos, entende deverem ser declarados nulos os dois actos simultâneos proferidos, pelos apontados vícios, dando-se provimento ao presente recurso.

O Exmo Senhor Chefe do Executivo, ora recorrido do recurso contencioso acima mencionado, nos termos do art.º 53º do Código de Processo Administrativo Contencioso, vem apresentar a contestação seguinte, alegando, no essencial:
     Nos termos do art.º 115º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo ora vigente, a fundamentação pode consistir em mera declaração de concordância com os fundamentos de anteriores pareceres, informações ou propostas que constituem neste caso parte integrante do respectivo acto.
     Já se indicaram claramente na Informação n.º 4732/DURDEP/2010 da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (anexada à Informação n.º 6525/DURDEP/2010) os fundamentos de facto e de direito da decisão de desocupação e restituição do terreno proferida pela entidade competente (Chefe do Executivo), bem como segundo o respectivo teor, formalmente é capaz de suportar o acto administrativo e de revelar suficientemente que já se teve em consideração os pressupostos de direito e de facto como elementos necessários ao tomar a respectiva decisão.
     Assim sendo, o acto ora recorrido, ou seja, o despacho de 28 de Setembro de 2010 do Chefe do Executivo, exarado na Informação n.º 6525/DURDEP/2010, possui de forma clara, uniforme e suficiente os fundamentos de facto e de direito, pelo que, o referido acto administrativo não padece de vício formal, por não se verificar a carência de fundamentação.
     Face ao procedimento administrativo instaurado perante o terreno em causa, só existe uma decisão administrativa sobre a desocupação e restituição de terreno, ou seja, o despacho de 28 de Setembro de 2010 do Chefe do Executivo, exarado na Informação n.º 6525/DURDEP/2010, mas não os dois despachos alegados pela recorrente na sua petição inicial (um proferido pelo Chefe do Executivo e outro pelo Director dos Serviços de solos, Obras Públicas e Transportes), já que o edital publicado posteriormente nos jornais, nos termos da lei, pelo Director dos Serviços de solos, Obras Públicas e Transportes é apenas um acto notificativo (ou acto instrumental).
     Além disso, no edital publicado posteriormente nos jornais, nos termos da lei, pelo Director dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (vide fls. 487 e 488 do Processo Administrativo) contém o teor e os fundamentos do despacho supramencionado.
     Deste modo, a notificação feita pelo Director dos Serviços de solos, Obras Públicas e Transportes também não padece de qualquer vício, e a recorrente, por sua vez, através do supracitado edital, pode ter perfeito conhecimento do conteúdo e dos fundamentos da decisão proferida pelo Chefe do Executivo.
     De acordo com a certidão emitida em 31 de Março de 2010 pela Conservatória do Registo Predial, in casu, o terreno, que foi ilegalmente ocupado pela recorrente, foi inscrito a favor da RAEM em vez de particular (pessoa singular ou colectiva).
    A escritura de papel de seda (“sá chi kai”) indicada pela recorrente na sua petição inicial, nos termos da lei, não pode ser título válido legal sobre o terreno em causa; e, os documentos indicados pela recorrente na sua petição inicial também não são documentos comprovativos com efeito jurídico sobre o direito de terreno.
     Nos termos do art.º 7º da Lei Básica da RAEM: “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedades do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoais singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau”. Pelo que, o terreno em causa pertence ao Estado.
     Uma vez que a escritura de papel de seda da recorrente não é o título válido legal sobre o terreno ora ocupado ilegalmente, e, nos termos da lei, o terreno é a propriedade do Estado, por isso, verifica-se que o despacho de 28 de Setembro de 2010 do Chefe do Executivo, exarado na Informação n.º 6525/DURDEP/2010, onde se ordenou a desocupação e restituição do terreno, não violou qualquer direito adquirido, não cometeu erro nos pressupostos de facto, nem infringiu a lei.
     A par disso, após o estabelecimento da Região, segundo a lei, a recorrente não pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor de particular do referido terreno através de decisão judicial.
     Dado que a recorrente ocupa ilegalmente o terreno da RAEM sem que possua qualquer título legal, ele não goza de qualquer direito sobre o terreno nem tem qualquer interesse protegido por lei; pelo que o despacho de 28 de Setembro de 2010 do Chefe do Executivo, exarado sobre a Informação n.º 6525/DURDEP/2010, não violou os princípios da legalidade, da protecção dos direitos e interesses dos residentes, da igualdade, da imparcialidade e da proporcionalidade nem violou a lei. À luz do art.º 7º da Lei Básica, o Governo da RAEM é responsável pela gestão dos solos estatais existentes nesta Região, pelo que se ordenou ao ocupante a desocupar e restituir o respectivo terreno, a fim de assegurar a retomada dos solos do Estado, para que os mesmos possam ser geridos com eficácia, pois, isto não se provocou qualquer dano ao interesse legal dos particulares.
    
Pelo acima exposto, requer se julguem improcede o recurso.

    II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
    
    Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
    O processo é o próprio e não há nulidades.
  As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.
    
    III - FACTOS
    Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
    Consta do PA a seguinte notificação:

    “Edital n.º: 264/2010
    Processo n.º: 29/2006/D
    
    Assunto: Determinação da desocupação do terreno e da demolição da construção ilegal
    Local: Terreno situado a sudeste da Pedreira XXX, na Estrada do XXX de Ká Hó, na ilha de Coloane (parcelas demarcadas a tracejado com letra “A” e cinzento com letra “B” na planta em anexo).
    
     Jaime Roberto Carion, Director da Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT), faz saber por este meio à Companhia de Desenvolvimento e Investimento XXX, Limitada e A – Sociedade de Desenvolvimento e Fomento Predial, Limitada e aos demais ocupantes desconhecidos, o seguinte:
    
    1. A DSSOPT, no exercício dos poderes de fiscalização conferidos pela alínea b) do n.º 3 do artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 29/97/M, de 7 de Julho, verificou que no terreno situado a sudeste da Pedreira XXX, na ilha de Coloane, foram construídas muitas barracas em chapa de zinco, bem como foram depositados muitos materiais de construção e estacionados veículos de vários tipos de obras, etc., sem que tenha sido atribuída ao(s) ocupante(s) licença de ocupação temporária, nos termos dos artigos 69.º a 75.º da Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho (Lei de Terras). Por isso, foi instaurado o procedimento administrativo n.º 29/2006/D, de desocupação e restituição do terreno à posse da Região Administrativa Especial de Macau (RAEM).
    
    2. De acordo com a certidão da Conservatória do Registo Predial (CRP), de 31/03/2010, sobre a parcela demarcada a tracejado com letra “A” na planta em anexo, não se encontra registado a favor de particular (pessoa singular ou pessoa colectiva), direito de propriedade ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, por aforamento ou por arrendamento, pelo que o mesmo considera-se propriedade do Estado, nos termos do artigo 7.º da Lei Básica da RAEM.
    
    3. De acordo com a mesma certidão da CRP, a parcela demarcada a cinzento com letra “B” na planta em anexo e descrita na CRP sob o n.º 23050, reverteu ao Governo da RAEM através do Despacho do Secretário para os Transportes e Obras Públicas n.º 13/2001, publicado no Boletim Oficial n.º 12, II Série, de 31 de Março de 2001, pelo que a mesma considera-se do domínio do Estado, nos termos do artigo 7.º da Lei Básica da RAEM.
    
    4. A ocupação do terreno do Estado por ocupantes que não disponham de título formal – contrato de concessão ou licença de ocupação temporária – que autorize a sua posse determina que o mesmo (terreno) seja entregue, livre e desocupado ao Governo da RAEM, órgão responsável pela gestão, uso e desenvolvimento dos solos e recursos naturais, nos termos do artigo 7.º da Lei Básica da RAEM, cabendo ao Chefe do Executivo praticar o respectivo acto, ordem de desocupação e restituição do terreno, ao abrigo do disposto na alínea o) do artigo 41.º da Lei de Terras.
    
    5. Tendo sido realizada, no seguimento de notificação por edital, assinado pelo Director da DSSOPT e publicado nos jornais (Diário de Macau e Ponto Final) em línguas chinesa e portuguesa de 23/04/2010, a audiência escrita dos interessados, prevista nos artigos 93.º e 94.º do Código do Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 57/99/M, de 11 de Outubro, não foram carreados para o procedimento elementos ou argumentos de facto e de direito que pudessem conduzir à alteração do sentido da decisão de ordenar a desocupação do aludido terreno.
    
    6. Com efeito, os interessados não dispõem de título forma de aquisição de qualquer direito, de propriedade perfeita ou outro, que confira poderes de gozo e de disposição sobre a totalidade ou parte da referida parcela, nem mesmo de um título jurídico precário – licença de ocupação temporária – que legitime a posse da mesma.
    
    7. Nos termos da legislação em vigor, o documento particular (escritura de papel de sede ou “sá chi kai”) que o interessado alegou possuir não constitui, nos termos da lei, título forma de aquisição da propriedade privada do terreno em causa.
    
    8. Assim, ficam os interessados e os ocupantes desconhecidos notificados de que S. Ex.ª o Chefe do Executivo, por despacho de 28/09/2010, exarado sobre a informação n.º 6525/DURDEP/2010, de 14/09/2010, constante do processo n.º 29/2006/D, foi ordenado que todos os ocupantes procedam, no prazo de 30 (trinta) dias a contar a partir da data de publicação do presente edital, à desocupação do identificado terreno, à demolição e ao despejo da construção ilegal, removendo os materiais e equipamentos nele depositados, bem como procederem à entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito de indemnização.
    
    9. Antes de execução da obra de demolição acima referida, os ocupantes deverão apresentar previamente nestes Serviços a declaração de responsabilidade do construtor incumbido da obra de demolição e apólice de seguro contra acidentes de trabalho e doenças profissionais. Após a conclusão da desocupação, os ocupantes deverão comunicar tal facto à DSSOPT para efeitos de vistoria.
    
    10. Nos termos do artigo 139.º do CPA, notifica-se ainda que se findo o prazo acima referido não derem cumprimento à ordem indicado no ponto 8, a DSSOPT, em conjunto com outros serviços públicos e com a colaboração do Corpo de Polícia de Segurança Pública, procederá, a partir do termo do prazo acima referido, à execução da referida ordem, a expensas dos interessados, sem prejuízo de aplicação de multa prevista no artigo 191.º da Lei de Terras.
    
    11. Os materiais e equipamentos eventualmente deixados no terreno serão depositados no respectivo local, à guarda de um depositário a nomear pela Administração. As construções ilegais no referido terreno serão demolidas pela Administração.
    
    12. Findo o prazo de 15 (quinze) dias a contar a partir da data do depósito e caso os bens não tenham sido reclamados, consideram-se os mesmos abandonados e perdidos a favor do Governo da RAEM, por força da aplicação analógica do artigo 30.º do Decreto-Lei n.º 6/93/M, de 15 de Fevereiro.
    
    13. Nos termos dos artigos 145.º e 149.º do CPA, os interessados podem apresentar reclamação ao Chefe do Executivo no prazo de 15 (quinze) dias, a contar a partir da data da publicação do presente edital.
    
    14. Do despacho do Chefe do Executivo de 28/09/2010 referido no ponto 8, cabe recurso contencioso a interpor no prazo de 30 (trinta) dias, a contar a partir da data de publicação do presente edital, para o Tribunal de Segunda Instância da RAEM, nos termos da alínea a) do n.º 2 do artigo 25.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, e da subalínea (1) da alínea 8), do artigo 36.º da Lei n.º 9/1999, republicada no Boletim Oficial da RAEM, n.º 44, I Série, de 1 de Novembro de 2004.
    
    RAEM, aos 22 de Outubro de 2010
    O Director dos Serviços”

    IV - FUNDAMENTOS
    1. Está em causa o acto que, no fundo, consubstanciou e consolidou a decisão da administração que se traduziu na desocupação do aludido terreno ocupado pela recorrente.
    Invoca a recorrente falta de fundamentação, violação de lei e afronta dos princípios do contraditório por desconhecer o conteúdo do acto, da igualdade, justiça e imparcialidade.
    Importa dizer que se releva aqui apenas o acto do Exmo Senhor Chefe do Executivo, já que este Tribunal não é competente para conhecer do acto do Exmo Senhor Director de Serviços das Obras Públicas, não sendo admissível a pretendida cumulação, nos precisos termos da al. b) do n.º 2 do art. 44° do CPAC, aliás, como decidido nos termos de fls 166.
    Conhecer-se-á apenas do acto do Chefe do Executivo, atento o preceituado na al. g) do n.° 2 do art. 46° e art. 50° do CPAC.
    
    2. Quanto à pretensa falta de fundamentação é por demais evidente que não assiste razão alguma à recorrente.
    Desde logo esta compreendeu bem as razões pelas quais sobreveio a ordem de desocupação em causa e basta atentar nas razões explanadas na notificação levada a efeito, confirmadas pelo acto em que verticalmente culminou o respectivo procedimento, materializado na pronúncia do Exmo Senhor Chefe do Executivo, aderindo a todo um conjunto de pareceres, informações e propostas sumuladas no teor daquela notificação.
    Ora, analisando esse acervo de posições e nas quais se louvou a entidade recorrida, constantes do PA e acima transcritas, qualquer leitor fica inteirado das razões da ordem de desocupação, em suma, por manifesta falta de título para a posse da recorrente.
    Tanto basta para se dar este vício por inverificado.
    E desta conclusão não se deixa, desde logo, de ter por improcedente a alegação de violação do princípio do contraditório, por a recorrente, na medida em que não inteirada dos fundamentos do acto, não estaria em condições de se defender cabalmente.
    
    3. Analisemos agora a questão fulcral, a da apontada violação do pretenso direito da recorrente, donde parece decorrerem as restantes afrontas.
    A recorrente no essencial da sua alegação alega ser dona e ter um direito real adquirido originariamente por usucapião sobre a parcela em causa, direito este que diz ser o de propriedade.
    Desde logo nos deparamos com uma dificuldade decorrente da alegação do trato sucessivo, pois que invocando-se uma posse de há mais de cem anos, apenas se concretizam os seus possuidores desde 1973, data em que B, um dos sócios da Companhia recorrente, a comprou XXX.
    Onde ficam os indispensáveis actos de posse dos antepossuidores?
    Não sendo os mencionados documentos os títulos idóneos para transferir o alegado direito de propriedade, restaria fosse feita prova das posses sucessivas, em que se comprovassem os actos de posse da recorrente, por si e antepossuidores, como se proprietária fosse, à vista de toda a gente e como tal reconhecida.
    Ora essa prova ficou por fazer.
    Tanto bastaria para que se encerrasse aqui a discussão por não comprovação dessa aquisição por usucapião.
    Mas presumamos que efectivamente a recorrente até teria logrado provar tais actos de posse habilitante à aquisição do direito real correspondente a tal exercício.
    
    4. Não nos furtaremos, assim, a dizer algo mais sobre a impossibilidade de aquisição da parcela em causa, não estando minimamente comprovado que essa parcela esteja integrada no domínio privado dos particulares.
     Sobre a impossibilidade de constituir situações reais de domínio privado, de reconhecer novos direitos de propriedade privada, após o estabelecimento da RAEM, já o TUI se pronunciou por diversas vezes, o que tanto nos basta para não nos apartarmos aqui desse entendimento superiormente definido.1
    A questão que se coloca reconduz-se a saber se a recorrente A possui algum documento ou título em que radique o pretenso direito ou posse, seja em termos de posse, direito real, propriedade ou outro, ou concessão, isto independentemente do rigor técnico jurídico e delimitação de cada um dos institutos em presença.
    Nenhum dos documentos referidos é meio idóneo para transferir a propriedade, nem sequer as denominadas escrituras de papel de seda, as célebres “Sai Chi Kai”, muito menos se comprovando a aquisição originária por usucapião, sendo certo que mesmo por uma escritura pública notarial se pode até transferir coisa alheia.
    Importa reter que a Jurisprudência de Macau vai no sentido, na interpretação do artigo 7º da Lei Básica, de considerar que só merecerão tutela possessória ou outra as situações em que à data do estabelecimento da RAEM os terrenos tenham entrado definitivamente no domínio da propriedade privada.
    No novo quadro constitucional operado a partir da entrada em vigor da Lei Básica que prevê, no artigo 7º, que todos os terrenos passam a ser propriedade do Estado, com excepção dos que já anteriormente integravam o domínio privado pertencente aos particulares, deixa de ser possível a aquisição por usucapião da propriedade ou do domínio útil a que se refere o artigo 5º, n.º 4 da Lei de Terras, Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho, (LT) ou a sua constituição por qualquer outra forma.
    5. E não será despiciendo enquadrar a possibilidade de tutela abstracta da pretensão do recorrente, em vista da legislação aplicável.
    Nos termos primitivos do artigo 8° da Lei de Terras não era permitida a aquisição por usucapião dos terrenos do domínio público ou do domínio privado da RAEM. Este princípio veio, no entanto, a sofrer expressamente uma excepção, introduzida pela Lei n.º 2/94/M, com expressão no próprio artigo 8° - "Sem prejuízo do disposto no artigo 5º" - e nos n.ºs 3 e 4 introduzidos nesse artigo 5° pela mesma lei, os quais se transcrevem:
    “(...)
    3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
    4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil".
    
    Visava-se dessa forma proteger os interesses dos particulares e igualmente os do Território, estipulando que a posse de prédio urbano, não titulado ou registado, fazia presumir a propriedade do domínio útil a favor do respectivo possuidor e era, por tal, usucapível, nos termos do direito civil. Isto, quer o prédio tivesse ou não sido efectivamente aforado pelo Território, e assim tivesse ou não havido desdobramento da propriedade plena em domínio directo e domínio útil.
    Em princípio, não era, pois, admitida a aquisição por usucapião de quaisquer direitos reais sobre os terrenos do domínio público e do domínio privado do Território de Macau (artigo 8º). Mas esta proibição, que era absoluta no texto original do artigo 8º da LT, passou a ter a excepção introduzida no n.º 4 do seu artigo 5º pela Lei n.º 2/94/M, de 4 de Julho.
    A este propósito, é útil relembrar o que a esse propósito diz o Dr. Gonçalves Marques2:
    
    "Portanto, nos casos em que existam prédios urbanos sem título de aquisição ou sem o indício de concessão por aforamento, que é a prova do pagamento do foro, dá-se valor à posse por particular, por mais de vinte anos, mas só para ter o efeito legal de usucapião do domínio útil.
    Para isso, presume-se que há uma situação de aforamento. Isto, manifestamente, para não se admitir a usucapião da propriedade, porque, então, o Território não teria mais poderes sobre o terreno, poderes que, como a seguir vamos ver, ainda são muitos no aforamento especializado da LT.
    E nesta solução do legislador prevaleceu a orientação de que os terrenos sem título formal de atribuição a um particular estão no domínio privado do Território.”
    
    Ao abrigo da LT, foi reconhecido no passado o direito dos particulares possuidores pedirem a declaração de terem sobre tais prédios a titularidade do domínio útil, quando se tratasse de prédios urbanos, mesmo quando essa posse fosse exercida sem título de aquisição ou registo, ou sem prova do pagamento do foro, desde que a duração da sua posse fosse superior a vinte anos.
    Não obstante o principio da continuidade do ordenamento jurídico consagrado nos artigos 8º e 18º, 1.º parágrafo, da Lei Básica, como um dos princípios basilares e garantes da autonomia da Região Administrativa Especial de Macau, importa indagar se esta Lei Fundamental não terá introduzido uma inflexão na interpretação acima desenvolvida, aliás, com consagração legal expressa.
    Da análise da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial e do que resulta estatuído pelo supracitado artigo 7º da Lei Básica, somos a acompanhar o entendimento de que aquela norma impede a limitação ou desdobramento do direito real máximo em que se traduz o direito de propriedade conferido, sem limitação, ao Estado, a partir de 20 de Dezembro de 1999.
    É claro que nos estamos a referir aos terrenos vagos e a todos sobre os quais não tenha sido constituída definitivamente um direito de propriedade que não pessoas colectivas de direito público, sendo que os que tenham entrado de alguma forma no domínio privado dos particulares continuam a merecer a protecção pelo texto da própria Lei Básica. Se é que se pode continuar a considerar que existem "terrenos vagos" na Região Administrativa Especial de Macau, visto que com a entrada em vigor da Lei Básica todos os terrenos passaram a ser propriedade do Estado com excepção dos que integrem a propriedade privada pertencente aos particulares, sejam entidades singulares ou colectivas.
    Esta posição, repete-se, tem sido a sufragada pelo nosso mais Alto Tribunal em diversos acórdãos.3
    Não interessa, de qualquer forma, desenvolver o tema, ficando apenas o apontamento para vincar a insustentabilidade da pretensão da recorrente, para mais não invocando ele, como já se afirmou, qualquer forma válida de aquisição, qualquer justo título ou pressupostos que legitimem a sua posse.
    6. Quanto a uma pretensa incompetência do Exmo Director dos Serviços das Obras Públicas e Transportes, não se deixa de referir que a decisão final, definitiva e eventualmente lesiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos foi proferida pela entidade recorrida, sendo inquestionável a sua competência - artigo 41º da Lei n. 6/80/M, de 5 de Julho - e podendo a esta socorrer-se dos pareceres e informações que os Serviços lhe forneçam.
    
    7. Somos desta forma a concluir que, situando-se a actuação da Administração no domínio da legalidade, tendo o acto anuído a pareceres e informações, dos quais constam de forma clara e congruente as razões de facto e de direito que presidiram à decisão e que assentam, de forma sintética, no facto de se ter entendido que, relativamente à parcela de terreno em questão, descrita na Conservatória sob o n 23050, apenas com inscrição a favor da RAEM e sem inscrição alguma a favor de particulares, tendo a mesma revertido ao Governo da RAEM através do despacho do STOP n° 13/2001, publicado no B.O. n° 12 de 31/3/01, será de considerar essa parcela excluída do domínio privado.
    Não dispondo a recorrente de qualquer título legítimo de aquisição de um qualquer direito real, nos termos do art° 7° da LBRAEM, não podem eles ver reconhecido o pretenso direito sobre essa parcela.
    E com esta actuação no domínio da legalidade, não se vê como possa ter sido violado o princípio da justiça ou da igualdade, aliás, não devidamente concretizados, sendo que a mera postergação de um qualquer interesse privado tem de ceder perante o interesse público que a lei deve plasmar e considerando que não se estará perante uma situação que tenha tido tratamento diferente de outra em que verificassem os mesmos pressupostos factuais.
    Pelas apontadas razões e sem necessidade de mais desenvolvimentos, inverificado que está o apontado vício ou outra de que cumpra conhecer, não se deixará de negar provimento ao presente recurso contencioso.
    V - DECISÃO
    Nos termos e fundamentos expostos nega-se provimento ao presente recurso contencioso.
    Custas pelo recorrente, com 6 UC de taxa de justiça
                Macau, 15 de Dezembro de 2011,
                João A. G. Gil de Oliveira
                Ho Wai Neng
                José Cândido de Pinho
                Presente
                Victor Manuel Carvalho Coelho
    
1 - Acs do TUI 32/2005, de 5/7/2006; 41/2007, de 16/1/08; 34/08, de 22/10/08; 17/2010, de 20/5/2010
2 - Lições de Dtos Reais, Faculdade de Direito da Universidade de Macau, 234
3 - Acs do TUI 32/2005, de 5/7/2006; 41/2007, de 16/1/08; 34/08, de 22/10/08; 17/2010, de 20/5/2010
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971/2010 21/21