Processo n.º 72/2011 Data do acórdão: 2011-12-15
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– tema probando
– objecto do processo penal
– acusação
– contestação
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– livre apreciação da prova
– art.o 114.o do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. Como a própria arguida ora recorrente não chegou a oferecer qualquer outra versão fáctica na sua contestação escrita então apresentada à acusação, todo o tema probando objecto do processo penal subjacente à presente lide recursória já se encontrou delimitado na matéria fáctica descrita nesse libelo, e tendo o tribunal a quo já dado por provada toda a matéria de facto acusada, e afirmado que não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, todo o referido objecto do processo deve ser efectivamente considerado como já investigado pelo mesmo tribunal sem qualquer lacuna, daí que não pode ocorrer o ora esgrimido vício a que alude a alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal vigente.
2. Também não se verifica, no caso, o vício a que se refere a alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o, porque após analisados todos os elementos probatórios dos autos e referidos na fundamentação da sentença recorrida, não se vislumbra que o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o tribunal a quo tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, regras jurídicas sobre a prova legal, ou legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, não podendo, pois, vir a recorrente pretender sindicar o juízo de valor formado pelo tribunal a quo aquando da sua livre apreciação das provas, procedida nos termos do art.o 114.o do CPP.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 72/2011
(Autos de recurso penal)
Arguida recorrente: A (XXX)
Arguida não recorrente: B (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 118 a 126 dos autos de Processo Comum Singular n.° CR2-10-0090-PCS do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, as duas arguidas A e B foram igualmente condenadas como autoras materiais de um crime consumado de emprego ilegal, p. e p. pelo art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, de 2 de Agosto, na pena idêntica de quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por dezoito meses, e de um crime de ofensa simples à integridade física, p. e p. pelo art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal vigente (CP), em sessenta dias de multa (à taxa diária de cento e vinte patacas para a primeira arguida e de oitenta patacas para a segunda).
Inconformada, veio a primeira arguida A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a sua absolvição dos dois crimes por que vinha condenada, devido aos alegados vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, referidos no art.o 400.o, n.o 2, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal vigente (CPP) (cfr. o teor da motivação apresentada a fls. 130 a 136 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso respondeu o Ministério Público (a fls. 138 a 143) no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fl. 154), afirmando a sua concordância com a posição vertida na resposta ao recurso.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Na sentença ora recorrida, foi descrita como provada a seguinte matéria de facto incriminatória, então materialmente imputada às duas arguidas dos autos na acusação pública deduzida a fls. 84 a 85:
– <<[…]
A 1a arguida A explorava o “Centro de Consultadoria XX” sito na Rua de S. Roque, r/c, nº 9, e desenvolvia, entre outras, a actividade de apresentação de trabalhadores não residentes a empregadores de Macau, cobrando retribuição em contrapartida.
A partir de 29 de Setembro de 2009, a 1ª arguida tratou de organizar que XXX, portadora do passaporte da Indonésia, trabalhasse em Macau. Ao mesmo tempo, a 1ª arguida disse a XXX que era necessário reter o seu passaporte, a fim de tratar dos documentos necessários para a mesma trabalhar legalmente em Macau. Depois de obter a confiança de XXX, a 1ª arguida conseguiu reter com sucesso o passaporte da Indonésia de XXX.
No dia 3 de Outubro de 2009, a 1ª arguida conseguiu com sucesso apresentar XXX à 2ª arguida B para trabalhar como empregada doméstica. A 1ª arguida apresentou XXX à 2ª arguida, e na altura da contratação de XXX pela 2ª arguida, ambas sabiam perfeitamente que XXX não detinha qualquer documento de identificação que a habilitasse trabalhar legalmente em Macau, no entanto a 1ª arguida promoveu para que a 2ª arguida efectuasse a contratação, tendo a última concretizado a contratação.
As duas arguidas agiram voluntária, consciente e deliberadamente, tendo chegado a consenso, e colaborado entre si, no sentido de estabelecer relação laboral com indivíduo que não possuía documento essencial e legalmente exigido aos trabalhadores.
As duas arguidas sabiam que suas condutas eram proibidas e punidas por Lei.
A 1ª arguida depois de apresentar XXX à 2ª arguida como sua empregada mantinha na sua posse o passaporte da Indonésia de XXX, sem que tivesse chegado a ajudar a 2ª arguida a tratar das formalidades relativas à contratação de trabalhador não residente junto do Governo de Macau, razão por que XXX trabalhou para a 2ª arguida, sempre na qualidade de trabalhador ilegal.
Cerca de dois meses depois de começar a trabalhar para a 2ª arguida, XXX, tendo-se apercebido que as arguidas não chegaram a ajudá-la a tratar dos documentos necessários para poder trabalhar legalmente em Macau, e ciente de que o prazo de permanência em Macau estava quase a expirar, cerca das 13h30 do dia 26 de Novembro de 2009, dirigiu-se ao “Centro de Consultadoria XX”, com o objectivo de reaver o seu passaporte da Indonésia junto da 1ª arguida.
Na altura, no interior do “Centro de Consultadoria XX”, em virtude da lª arguida se ter recusado a devolver o passaporte a XXX, esta entrou em discussão com as arguidas, que estavam ambas presentes. No meio da discussão, a 2ª arguida puxou o cabelo da XXX, enquanto a 1ª arguida atingiu com as mãos e os pés na cabeça e na cara da XXX.
As duas arguidas com as acima referidas condutas causaram escoriações nos tecidos moles e na face esquerda e no pé direito de XXX.
As duas arguidas agiram de forma deliberada, livre e consciente, sabendo perfeitamente que suas condutas eram proibidas e punidas por Lei, com o propósito de atingiram a vítima na sua integridade física.
[…]>> (cfr. o teor literal de fls. 119 a 121 dos autos).
Outrossim, o Tribunal a quo deu também provado que as duas arguidas não têm antecedentes criminais, e afirmou que “Não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa” (cfr. o teor de fl. 121).
Por outro lado, nas 9.a a 11.a linhas da página 8 da sentença recorrida (ora a fl. 122), escreveu-se, em jeito de fundamentação jurídica da decisão: <>.
As duas arguidas não chegaram a contestar por escrito a matéria fáctica descrita na acusação (cfr. o que resulta a contrario sensu do conteúdo da contestação escrita de fl. 103, em que ambas declararam oferecer o merecimento dos autos).
O Tribunal a quo não operou ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas aos dois crimes por que vinham condenadas as duas arguidas.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Antes do mais, é de ordenar oficiosamente, nos termos permitidos pelo art.o 361.o, n.o 1, alínea b), do CPP, a rectificação do erro manifesto de transcrição da norma incriminatória do art.o 16.o, n.o 1, da Lei n.o 6/2004, contido nas 9.a a 11.a linhas da página 8 do texto da sentença recorrida.
Outrossim, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesta ordem de ideias, são apenas as questões seguintes a apreciar na presente lide recursória (por terem sido simultaneamente alegadas na motivação da arguida recorrente e delimitadas nas conclusões dessa peça):
– 1) do alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
– 2) e do assacado vício de erro notório na apreciação da prova.
Quanto ao primeiro dos vícios, não tem razão a arguida recorrente, porquanto:
– a montante, se ela própria não chegou a oferecer qualquer outra versão fáctica na contestação escrita de fl. 103, todo o tema probando objecto do processo já se encontrou delimitado na matéria fáctica descrita na acusação pública então deduzida;
– e a jusante, tendo o Tribunal a quo já dado por provada toda a matéria de facto imputada nesse libelo, e afirmado que não resultaram provados quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, todo o objecto do processo deve ser efectivamente considerado como já investigado, sem qualquer lacuna, pelo mesmo Tribunal recorrido;
– daí que não pode ocorrer o ora esgrimido vício a que alude a alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, sendo, aliás, certo que a matéria de facto provada em primeira instância espelha bem que a ora recorrente praticou o crime de emprego ilegal, em co-autoria material, na forma consumada, com a outra arguida não recorrente.
E no respeitante ao segundo vício, a que se refere a alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o, não deixa de improceder também o recurso, precisamente porque após analisados todos os elementos probatórios dos autos e referidos na fundamentação da sentença recorrida, não se vislumbra que o resultado do julgamento da matéria de facto a que chegou o Tribunal a quo tenha violado quaisquer regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, regras jurídicas sobre a prova legal, ou legis artis vigentes na tarefa jurisdicional de julgamento de factos, pelo que não pode vir a recorrente pretender sindicar o juízo de valor formado pelo Tribunal a quo aquando da sua livre apreciação das provas, procedida nos termos do art.o 114.o do CPP.
Em suma, é de julgar improcedente o recurso, sem mais outra questão a tratar nesta sede recursória, por o objecto do recurso ter sido limitado pela arguida recorrente, ao abrigo do art.o 393.o, n.o 1, do CPP, expressamente aos dois vícios acima já analisados.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso da arguida A, e rectificar, porém, oficiosamente a redacção das 9.a a 11.a linhas da página 8 do texto da sentença recorrida, nos seguintes termos:
– onde se lê <>, se deve ler <>.
Custas do recurso pela recorrente, com quatro UC de taxa de justiça.
Macau, 15 de Dezembro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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