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   ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
   
   I – Relatório e factos com interesse para a decisão
   A, mediador de seguros, interpôs recurso contencioso de anulação, para o Tribunal de Segunda Instância (TSI), do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 9 de Maio de 2005, que aplicou ao recorrente uma multa no montante de MOP$50.000,00, pela prática da transgressão prevista na alínea f) do art. 9.º e nas alíneas a) e e) do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 38/89/M, de 5 de Junho.
   O Relator do TSI declarou este Tribunal incompetente para julgar o recurso, por entender que, estando em causa uma infracção administrativa, o tribunal competente para conhecer de recurso de actos de aplicação de multas em processos de infracção administrativa é o Tribunal Administrativo, qualquer que seja o órgão autor do acto, nos termos da alínea 5) do n.º 5 do art. 30.º da Lei de Bases da Organização Judiciária (LBOJ).
   Remetido o processo ao Tribunal Administrativo (TA), o respectivo Juiz declarou-se igualmente incompetente para conhecer da causa, por entender que o acto punitivo do Secretário para a Economia e Finanças não diz respeito a infracção administrativa, mas sim a infracção disciplinar, pelo que não se aplicaria a norma referida, mas antes a que genericamente se refere à competência do TSI para conhecer dos recursos dos actos administrativos da autoria dos Secretários [(2) da alínea 8) do art. 36.º da LBOJ].
   Ambos os despachos transitaram em julgado e o A requer a este Tribunal de Última Instância a decisão deste conflito negativo de competência
   A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
   “Estamos perante um caso em que se verifica o conflito negativo de competência entre o Tribunal de Segunda Instância e o Tribunal Administrativo.
   Por douto despacho proferido no processo n.° 146/2005 do Tribunal de Segunda Instância, o Exmo. Juiz Relator do processo declarou a incompetência deste Tribunal para conhecer do recurso contenciosos interposto por A, requerente dos presentes autos de conflito negativo de competência, do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças que concordou com a deliberação tomada num processo de infracção pelo Conselho de Administração da Autoridade Monetária de Macau que, por sua vez, aplicou àquele requerente uma pena de multa no montante de MOP$ 50,000.00 por violação da al. f) do art.° 9.º e da al. e) do art.° 29.º do DL n.° 38/89/M, de 5 de Junho, na redacção dada pelo DL n.° 51/94/M, de 24 de Outubro.
   Entende que se trata dum acto administrativo punitivo praticado pelo Senhor Secretário para a Economia e Finanças no seio de processo de infracção administrativo, pelo que, nos termos do art.° 30.º n.° 5, al. 5) da Lei n.° 9/1999, de 20 de Dezembro (Lei de Bases da Organização Judiciária da RAEM), não é competente o Tribunal de Segunda Instância para conhecer do respectivo recurso, ordenando a remessa do processo para o Tribunal Administrativo.
   Por seu turno, este Tribunal Administrativo declara também a sua incompetência para julgar o mesmo recurso, tendo como fundamento a natureza disciplinar da infracção cometida pelo requerente.
   Vejamos.
   Nos termos da subalínea I) da alínea 1) do n.° 2 do art.° 30.º da Lei n.° 9/1999, que prevê a competência do Tribunal Administrativo, compete a este tribunal conhecer, no âmbito do contencioso administrativo, dos recursos dos actos administrativos ou em matéria administrativas praticadas por Directores de serviços e outros órgãos da administração que não tenham categoria superior à daqueles.
   Por sua vez, estabelece a al. 2) do n.° 8 do art.° 36.º do mesmo diploma, na redacção dada pela Lei n.° 9/2004, que o Tribunal de Segunda Instância é competente julgar em primeira instância recursos dos actos administrativos ou em matéria administrativa, ou dos respeitantes a questões fiscais, parafiscais ou aduaneiras, praticados por Secretários.
   Se se atendesse apenas a estas duas normas, parecia clara, à primeira vista, competir ao Tribunal de Segunda Instância para conhecer do recurso contencioso interposto pelo requerente.
   No entanto, constata-se uma outra norma, contida na al. 5) do n.° 5 do referido art.° 30.°, segundo a qual é o Tribunal Administrativo competente para conhecer, no âmbito do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro, "Dos recursos dos actos de aplicação de multas e sanções acessórias e dos restantes actos previstos na lei proferidos por órgãos administrativos em processo de infracção administrativa".
   Daí que se gera a divergência dos entendimentos do Tribunal de Segunda Instância e do Tribunal Administrativo, já que, tal como afirma o Exmo. Juiz Relator daquele tribunal, a última norma acima citada tem a natureza especial em relação à disposição legal da al. 2) do n.° 8 do art.° 36.°, por fazer referência específica e concreta "aos actos de aplicação de multas ... proferidos por órgãos administrativos em processos de infracção administrativa", por um lado e, por outro, se o legislador não distinguiu quem seriam os "órgãos administrativos", não cabe ao intérprete-aplicador do direito fazer tal distinção, sendo que o Senhor Secretário para a Economia e Finanças não deixa de ser um órgão administrativo.
   No caso sub judice, está em causa um acto praticado pelo Senhor Secretário para a Economia e Finanças sobre aplicação de uma multa fixada no âmbito dum processo de infracção.
   Tem relevância, para resolução do presente conflito, saber a natureza das infracções em causa, que é o ponto controvertido nos dois despachos de declaração de incompetência, uma vez que é competente o Tribunal de Segunda Instância ou o Tribunal Administrativo, consoante se se tratar da infracção administrativa ou de outra natureza.
   Ora, salvo o elevado respeito por entendimento diferente, parece-nos que a infracção em causa não reveste da natureza administrativa tal como é definida no âmbito do DL n.° 52/99/M, de 4 de Outubro.
   Como se sabe, neste diploma está previsto o regime geral das infracções administrativas e respectivos procedimento, cuja legislação ficou a dever-se a "uma crescente necessidade de previr ilícitos de natureza não penal, civil ou disciplinar, não só em razão da tendência para descriminalizar certas condutas que não merecem tutela penal mas também em função da progressiva tipificação de infracções meramente relacionadas com regulamentação administrativa", face à realidade de existir numerosos diplomas legais que prevêem ilícitos que não podem ser qualificados de crimes ou de contravenções nem têm natureza civil ou disciplinar, aos quais corresponde a sanção principal de multa administrativa.
   E é definida, nos termos do n.° 1 do art.° 2.° do diploma, como infracções administrativas "o facto ilícito que unicamente consista na violação ou na falta de observância de disposições preventivas de leis ou regulamentos, que não tenha a natureza de contravenção e para o qual seja cominada uma sanção administrativa pecuniária denominada multa", para além das sanções acessórias previstas no art.° 6.°.
   As infracções pelas quais foi punido o ora requerente estão previstas no DL n.° 38/89/M, que estabelece o regime jurídico a que fica sujeito o exercício da actividade de mediação de seguros (art.° 1.° do diploma), do qual faz parte um capítulo próprio que regula a matéria respeitante à fiscalização e às sanções aplicáveis às infracções cometidas no exercício dessa actividade profissional.
Nos termos do seu art.° 30.º estão previstas as modalidades de sanções, que são multa, suspensão temporária ou revogação da autorização, todas de natureza principal.
Parece que ficam assim as infracções ao disposto no DL n.° 38/89/M fora do âmbito da infracção administrativa, já que a este tipo de infracção só pode ser aplicada a sanção principal de multa.
   Por outro lado, o mais importante é que as infracções imputadas ao ora requerente - violação do secreto profissional e prática de concorrência desleal - consistem em violação culposa dos deveres legalmente impostos aos profissionais de mediação de seguros, tendo assim cariz iminentemente disciplinar.
   É consabido que, para além dos funcionários e agentes da Administração Pública, existem ainda outras profissões, mesmo liberais, cujo exercício está sujeito ao cumprimento dos deveres profissionais impostos por lei e à aplicação das sanções pela violação dos mesmos, tendo em consideração os interesses públicos que estão em jogo, como é no caso de advocacia.
   Parece-nos que as infracções cometidas no exercício dessas actividades têm a natureza disciplinar, bem como as respectivas sanções.
   Pelo exposto, estamos inclinados para entender que as infracções imputadas ao ora requerente no exercício da sua actividade profissional devem ser qualificadas como disciplinares, pelo que não parece aplicável a disposição contida na al. 5) do n.° 5 do art.º 30.º da Lei n.° 9/1999.
   Termos em que o conflito em análise deve ser decidido no sentido de atribuir a competência ao Tribunal de Segunda Instância para conhecer do recurso interposto pelo ora requerente”.
   
   II – O Direito
   1. A questão a resolver. Competência dos tribunais
   Merecem acolhimento as teses sustentadas pelos dois Tribunais em conflito, no que respeita à interpretação das normas de competência dos tribunais, constantes dos arts. 30.º e 36.º da LBOJ.
   Na verdade, quando estejam em causa os recursos de actos de aplicação de multas em processos de infracção administrativa, é o TA o competente para deles conhecer, qualquer que seja o órgão autor do acto, ou seja, mesmo que o autor do acto administrativo seja um Secretário, nos termos da alínea 5) do n.º 5 do art. 30.º da LBOJ.
   Já quanto aos recursos de actos administrativos da autoria de Secretários, que apliquem penas disciplinares – mas não só – o respectivo conhecimento cabe ao TSI, de acordo com o disposto em (2) da alínea 8) do art. 36.º da LBOJ.
   A decisão do presente conflito de competência passa, pois, por qualificar a infracção em causa, infracção administrativa ou infracção disciplinar (ou outra).
   
   2. Infracções praticadas por mediadores de seguros
   O recorrente, mediador de seguros, foi punido com uma multa no montante de MOP$50.000,00, pela prática da infracção (embora a lei ainda fale em transgressão) prevista na alínea f) do art. 9.º e na alínea f) do art. 29.º do Decreto-Lei n.º 38/89/M, alterado pelo Regulamento Administrativo n.º 27/2001, de 12 de Novembro.
   O Decreto-Lei n.º 38/89/M define o regime jurídico da actividade de mediação de seguros.
   Nos termos do disposto no art. 9.º, alínea f), deste diploma legal, constitui obrigação do mediador “guardar segredo profissional, em relação a terceiros, dos factos de que tome conhecimento por força do exercício da sua actividade”.
   De acordo com o disposto no art. 29.º, alíneas a) e e) do mesmo diploma, na redacção vigente ao tempo da infracção:
   “Artigo 29.º
   (Multas)
   Incorre na multa de cinco mil a cinquenta mil patacas, sem prejuízo de pena mais grave que ao caso caiba, o mediador que cometa qualquer das seguintes infracções:
   a) Não cumprimento de qualquer das obrigações previstas no artigo 9.º;
   b) ...
   c) ...
   d) ...
   e) Prática de concorrência desleal, nomeadamente através da difusão de informações falsas relativamente a seguradoras ou a outro mediador, com o fim de promover o seu descrédito, ou através de fornecimento ao segurado de dados incorrectos com o intuito de obter um benefício próprio;
   f) ...
   g) ...
   h) ...
   i) ...
   j) ...
   l) ...”.
   
   O Decreto-Lei n.º 38/89/M prevê, no art. 27.º, a existência das seguintes sanções a aplicar aos mediadores de seguros:
   - Multa;
   - Suspensão temporária ou revogação da autorização.
   
   3. Direito punitivo ou sancionatório.
   Para qualificar as infracções que estão em causa, convém adiantar algumas considerações sobre a tipologia do direito punitivo ou sancionatório, afastando desde já as sanções cíveis porque manifestamente irrelevantes para o nosso caso.
   Tradicionalmente, tanto no direito português, como no de Macau, que tem a matriz do primeiro, as infracções penais eram de dois tipos, os crimes e as contravenções ou transgressões. Esta distinção relevava do Código Penal de 1886, que vigorou em Portugal até 31 de Dezembro de 1982 e em Macau até 31 de Dezembro de 1995.
   O art. 1.º do Código Penal de 1886 definia o crime como o facto voluntário declarado punível pela lei penal e o art. 3.º considerava contravenção o facto voluntário punível, que consiste na violação, ou na falta de observância das disposições preventivas das leis e regulamentos, independentemente de toda a intenção maléfica.
   Não era fácil a tarefa do intérprete na distinção das duas figuras.
   As duas infracções tinham elementos comuns e elementos próprios. Ambas são factos voluntários puníveis, mas já divergem na fonte da incriminação. Só a lei para os crimes, a lei ou o regulamento no caso das contravenções.
   No caso da contravenção, a lei distingue-a do crime, da seguinte forma:
   - Nas contravenções as normas violadas são de natureza preventiva;
   - As contravenções são punidas independentemente de toda a intenção maléfica.
   Explica MAIA GONÇALVES 1que “(a) distinção entre estas duas categorias tem vindo predominantemente a fazer-se em torno da doutrina de Carnevale, exposta por este criminalista italiano em dois estudos, publicados em 1906 e 1907. Este autor distinguia a protecção penal concedida aos interesses sociais ou bens jurídicos em si, da que é concedida às condições favoráveis ou de ambiente indispensáveis à existência e desenvolvimento normal desses interesses.
   No primeiro caso, a protecção é defesa dos interesses; no segundo, mera polícia do direito. A infracção das normas que desempenham a função de defesa origina o crime; a das normas de polícia faz nascer a contravenção.
   Esta doutrina, que desenvolve a que distingue entre defesa mediata e defesa imediata dos bens jurídicos, foi perfilhada por notáveis criminalistas (veja-se Manzini, Tratatto, ed. de 1950, vol. I, págs. 580 e segs.).
   Entre nós, aderiu-lhe inteiramente Marcello Caetano, Lições de Direito Penal, 1939, págs. 190-191. Beleza dos Santos, seguindo de perto Caeiro da Matta, considerou normas repressivas aquelas que defendem interesses jurídicos, punindo aqueles factos que atacam ou põem em perigo, directa e imediatamente, certos interesses, e normas preventivas as que protegem interesses jurídicos incriminando factos que só ocasionalmente atacam ou põem em perigo interesses indeterminados. Importa pois, em cada caso, averiguar se a infracção ameaça directa e imediatamente interesses jurídicos, ou se só representa uma ameaça longínqua desses interesses (Lições de Direito Criminal, 1935-1936, pág. 257 e R.L.J., 66.°, pág. 34).
   Assim, estes autores colocam-se dentro da doutrina, desenvolvida por Carnevale, que distingue entre defesa mediata e defesa imediata dos bens jurídicos como critério diferenciador entre normas repressivas e preventivas, e, indirectamente, entre crimes e contravenções”.
   Para outros, a contravenção seria a acção ou omissão contrária ao interesse administrativo do Estado. “O seu campo situava-se no âmbito da própria actividade da Administração, que abrangeria exclusivamente a actividade da polícia de segurança, meramente conservativa de bens ou interesses públicos ou particulares, ou abrangeria o interesse à formação e melhoria das condições de vida social com o alargamento da função administrativa do Estado”2.
   
   4. As contra-ordenações do direito português
   Entretanto, em Portugal, por inspiração do direito alemão (Ordnungswidrigkeit), foi criada uma nova infracção a contra-ordenação, ou ilícito administrativo, cuja violação era sancionada com uma coima, que é essencialmente uma multa. O Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que criou o novo direito sancionatório (republicado integralmente em anexo ao Decreto-Lei n.º 244/95, de 14 de Setembro) ponderou que “o aparecimento do direito das contra-ordenações ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora nos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrio ecológico, etc.”. ´
   Pretendeu-se excluir do direito penal esta nova infracção, com a criação de um direito punitivo da Administração. Ao mesmo tempo, anunciou-se que as contra-ordenações iriam substituir progressivamente as contravenções.
   A sanção das contra-ordenações é a coima, que era a designação da multa aplicável à infracção de posturas municipais ou de freguesia, no direito penal antigo (art. 485.º do Código Penal de 1886).
   Além da coima, são previstas sanções acessórias, como a interdição de exercer uma profissão ou uma actividade, perda de objectos, privação do direito a subsídio, etc.
   
   5. Infracções no direito de Macau: crimes, contravenções e infracções administrativas
   Em Macau, apesar da entrada em vigor do novo Código Penal, em 1 de Janeiro de 1996 (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 58/95/M, de 14 de Novembro), manteve-se a anterior tipologia das infracções penais, crimes e contravenções, sendo que estas continuaram a ter as características anteriores, definidas como “o facto punível que unicamente consiste na violação ou na falta de observância de disposições preventivas de leis ou regulamentos” (art. 123.º, n.º 1 do Código Penal), sendo importante destacar que nas contravenções não pode ser cominada pena de prisão de limite máximo superior a 6 meses (art. 123.º, n.º 3 do Código Penal), e se o for, a infracção é considerada crime (art. 124.º, n.º 2 do Código Penal) e, salvo disposição em contrário, nas contravenções a pena de multa é inconvertível em prisão (art. 125.º, n.º 1 do Código Penal).
   Só bastante mais tarde, o legislador de Macau sentiu a necessidade de regular, com carácter geral, o regime das infracções administrativas, que correspondem à função e ao regime designado em Portugal por contra-ordenações, mas com uma aparente diferença: em Macau, ao que parece, o legislador não pretende substituir as contravenções pelas infracções administrativas, mas antes manter como infracções penais os crimes e as contravenções, ao lado das infracções administrativas.
   
   6. As infracções administrativas
   Foi o Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro, que veio definir o regime geral das infracções administrativas e o respectivo procedimento.
   No seu preâmbulo fez-se constar que “(o) legislador tem vindo a sentir uma crescente necessidade de prever ilícitos de natureza não penal, civil ou disciplinar, não só em razão da tendência para descriminalizar certas condutas que não merecem tutela penal mas também em função da progressiva tipificação de infracções meramente relacionadas com regulamentação administrativa.
   Existem presentemente no ordenamento jurídico de Macau numerosos diplomas legais que prevêem ilícitos que não podem ser qualificados de crimes ou de contravenções nem têm natureza civil ou disciplinar.
   Tais ilícitos, cuja sanção principal é a multa administrativa, têm actualmente regimes diversos e, por vezes, contraditórios, sendo assim urgente adoptar um regime geral, fixando as respectivas normas substantivas e adjectivas”.
   No diploma em apreciação define-se infracção administrativa como o facto ilícito que unicamente consista na violação ou na falta de observância de disposições preventivas de leis ou regulamentos, que não tenha a natureza de contravenção e para o qual seja cominada uma sanção administrativa pecuniária denominada multa (art. 1.º, n.º 1).
   Por outro lado, o facto ilícito denominado infracção administrativa é considerado crime ou contravenção, conforme os casos, quando lhe corresponda pena de prisão ou pena de multa convertível em prisão (art. 1.º, n.º 2).
   A propósito das sanções acessórias estabelece-se que:
   a) Devem estar tipificadas nas leis ou regulamentos referidos no n.º 1 do artigo 3.º;
   b) Não podem ter natureza idêntica à da sanção principal;
   c) Têm duração determinada;
   d) Excepto nos casos de reincidência ou de perda de coisas, valores ou direitos a favor do Território, a sua duração não pode ser superior a 2 anos;
   e) Não podem ser prorrogadas;
   f) Não podem ser efeito necessário da aplicação da sanção principal (n.º 3 do art. 6.º).
   A final, dispõe o art. 20.º deste regime das infracções administrativas:
   “1. Sem prejuízo do disposto no n.º 3, os regimes das leis ou regulamentos referidos no n.º 1 do artigo 3.º devem conformar-se com o disposto no presente diploma no prazo de 60 dias.
   2. Decorrido o prazo referido no número anterior, as normas que não se encontrem conformes com o disposto no presente diploma consideram-se revogadas.
   3. São revogadas na data da entrada em vigor do presente diploma as disposições constantes dos regimes referidos no n.º 1 que contrariem o disposto nos artigos 11.º, 12.º, 13.º, 16.º e 17.º”.
   
   7. Infracções disciplinares. O caso dos autos.
   Examinemos, agora, as infracções disciplinares, principalmente, do ponto de vista dos sujeitos.
   É sabido que o poder disciplinar – entendido como o poder de predispor e aplicar medidas coactivas adequadas (sanções disciplinares) a certo grupo social cuja conduta ponha em perigo certos valores ou interesses – envolve “sempre uma organização de pessoas minimamente hierarquizada”3. “Todo o dever requer uma sanção, toda a organização requer disciplina...” “...as sanções potenciam o cumprimento dos deveres, uma boa organização supõe e predispõe a disciplina”4.
   Há poder disciplinar na administração pública, em corpos como os magistrados ou polícias, nas associações públicas – como a Associação dos Advogados – nas escolas públicas, relativamente ao pessoal, docente e não só, e em relação aos alunos, nas associações quanto aos associados e na relação de trabalho.
   No que respeita ao poder disciplinar na administração pública entende MARCELLO CAETANO5 que o autor da infracção disciplinar tem de ser um agente administrativo. É o que também sublinha CAVALEIRO DE FERREIRA6, dizendo que o Direito Disciplinar tutela a especial fidelidade e eficiência nas relações de subordinação dos funcionários públicos, pois o que está em causa é a garantia e tutela de deveres funcionais na ordem interna da Administração.
   Ora, a relação que se estabelece entre a Administração – mormente através da Autoridade Monetária de Macau (AMCM) – e os mediadores de seguros não é uma relação de hierarquia. A AMCM e os mediadores de seguros não fazem parte de uma mesma organização.
   A mediação de seguros é uma actividade privada e não pública. Os mediadores de seguros são indivíduos particulares ou sociedades comerciais (art. 4.º do Decreto-Lei n.º 38/89/M), cuja actividade está sujeita à autorização, fiscalização e sancionamento da AMCM, tal como muitas outras actividades privadas estão sujeitas à autorização, fiscalização e sancionamento da Administração, designadamente as seguradoras, que têm de ser necessariamente sociedades comerciais (art. 16.º do Decreto-Lei n.º 27/97/M, de 30 de Junho), as instituições de educação e ensino particulares de ensino não superior, que têm de ser autorizadas pela Direcção dos Serviços de educação e Juventude, que estão sujeitas à sua inspecção pedagógica e a poderem ser objecto de sanções várias por parte desta entidade (Decreto-Lei n.º 38/93/M, de 26 de Julho), etc.
   Não faz, pois, sentido falar-se em poder disciplinar relativamente ao poder punitivo da Administração relativamente aos mediadores de seguros.
   Por outro lado - embora este argumento não seja decisivo, por si só - quando o legislador estabelece um poder disciplinar, prevendo infracções disciplinares, denomina estas como tal. É o que faz no Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM), nos arts. 276.º e seguintes, designando o Título VI deste Estatuto como “Regime disciplinar”, refere-se a “responsabilidade disciplinar”, a “infracção disciplinar”, a “procedimento disciplinar”, a “penas disciplinares”. E o mesmo sucede noutros Estatutos, como o dos magistrados (arts. 64.º e seg. da Lei n.º 10/1999, de 20 de Dezembro), dos funcionários de justiça (art. 17.º da Lei n.º 7/2004, de 2 de Agosto), dos advogados (arts. 4.º, 7.º, 8.º do Estatuto aprovado pelo Decreto-Lei n.º 31/91/M, de 6 de Maio), dos docentes, investigadores, demais pessoal e alunos da Universidade de Macau (art. 7.º n.º 2 da Lei n.º 1/2006, de 13 de Março).
   Em conclusão, não podem caracterizar-se como infracções disciplinares as infracções alegadamente praticadas pelo mediador em causa.
   
   8. O caso dos autos (Cont.).
   Adiante-se já que as infracções previstas no Decreto-Lei n.º 38/89/M constituem infracções administrativas.
   A intervenção dos poderes públicos na autorização, fiscalização e sancionamento na área da mediação de seguros comunga do já mencionado pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção a vários domínios da economia, saúde, educação, cultura, ambiente, etc.
   De outra banda, as infracções em causa constituem factos ilícitos que unicamente consistem na violação ou na falta de observância de disposições preventivas de leis ou regulamentos, não lhes foi estendido o regime das contravenções e para as quais está cominada uma multa.
   São, pois, infracções administrativas.
   O Juiz do TA entende que as infracções previstas no Decreto-Lei n.º 38/89/M não têm a natureza de infracção administrativa porque, de acordo com o art. 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 52/99/M, que define o regime geral das infracções administrativas, a única sanção é a multa, sem prejuízo de outras sanções acessórias, sendo que as sanções do Decreto-Lei n.º 38/89/M são, além da multa, a suspensão temporária ou revogação da autorização.
   Vejamos. É certo que a única sanção principal prevista no regime geral das infracções administrativas é a multa. Mas o mesmo Decreto-Lei n.º 52/99/M admite que os diplomas próprios atinentes a cada área onde se prevêem infracções administrativas, contenham sanções acessórias, que devem ter duração determinada e, excepto em caso de reincidência, a sua duração não pode ser superior a 2 anos (art. 6.º, n.º 3 do Decreto-Lei n.º 52/99/M).
   Ora, o art. 20.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M, atrás citado, determina no seu n.º 1 que os regimes das leis ou regulamentos referidos no n.º 1 do artigo 3.º (leis e regulamentos que prevêem e sancionam as infracções administrativas) devem conformar-se com o disposto no mesmo Decreto-Lei n.º 52/99/M no prazo de 60 dias e, acrescenta o n.º 2 do mesmo art. 20.º, decorrido este prazo, as normas que não se encontrem conformes com o disposto no mesmo diploma consideram-se revogadas.
   Ora, face a estas prescrições, o intérprete tem de considerar que (i) ou se consideram revogadas as sanções previstas nos vários diplomas que prevêem as infracções administrativas, que não consistam em multa. Ou, como parece mais avisado, (ii) deve entender que tais sanções previstas a título de sanção principal, se transformaram em sanções acessórias, com as características previstas no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M, desde que a isso não se oponha a sua natureza e as disposições imperativas deste último diploma.
   Não custa admitir, assim, que a suspensão temporária da autorização como mediador (anterior sanção principal) se considere, agora, uma sanção acessória com prazo máximo de dois anos (salvo reincidência) e que a sanção da revogação da autorização se considere revogada, face ao novo princípio da duração determinada das sanções acessórias.
   Constituindo infracções administrativas, o recurso dos actos punitivo cabe ao TA.
   
   III – Decisão
   Face ao expendido, resolve-se o conflito suscitado, decidindo-se que o tribunal competente para conhecer da causa é o Tribunal Administrativo.
   Sem custas.
   Macau, 03 de Maio de 2006.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei

1 MAIA GONÇALVES, Código Penal Português na Doutrina e na Jurisprudência, Coimbra, Almedina, 3.ª ed., 1977, p. 29.
2 M. CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito Penal Português, Parte Geral, I, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1981, p. 217.
3 BERNARDO LOBO XAVIER, Curso de Direito do Trabalho, Lisboa/São Paulo, Verbo, 1993, 2.ª ed., p. 217.
4 ANA FERNANDA NEVES, Relação Jurídica de Emprego Público, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 299.
5 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, Tomo II, 9.ª ed., p. 809.
6 M. CAVALEIRO DE FERREIRA, Direito..., p. 15 a 18.
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24
Processo n.º 6/2006