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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 14 / 2006

Recorrente: A






1. Relatório
No Tribunal Judicial de Base, o arguido A foi condenado, no âmbito do processo comum colectivo n.º CR3-05-0132-PCC, pela prática dos seguintes crimes:
- um crime de homicídio previsto e punido pelo art.º 128.º do Código Penal (CP) na pena de 18 anos de prisão;
- cinco crimes de homicídio qualificado na forma tentada previstos e punidos pelos art.ºs 129.º, n.ºs 1 e 2, al. f), 21.º, 22.º e 67.º do CP na pena de 5 anos de prisão para cada um destes;
- um crime de incêndio previsto e punido pelo art.º 264.º, n.º 1, al. a) do CP na pena de 6 anos de prisão;
- quatro crimes de coacção grave previstos e punidos pelo art.º 149.º, n.º 1, al. a) do CP na pena de 2 anos de prisão para cada um destes.
Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 29 anos de prisão.

O arguido recorreu desta decisão condenatória para o Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 9 de Fevereiro de 2006 proferido no processo n.º 321/2005, foi julgado parcialmente procedente o recurso, reduzida a pena cominada pela prática do crime de homicídio para 15 anos de prisão e consequentemente a pena única em cúmulo jurídico para 24 anos de prisão.
Novamente não conformado, vem agora o arguido recorrer para este Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões na sua motivação de recurso:
   “1. Existe, no caso, susceptibilidade de impugnação do douto acórdão proferido pelo TSI, uma vez que o presente recurso se não reconduz a nenhuma das hipóteses de inadmissibilidade previstas na lei.
   2. Imputa o recorrente à decisão recorrida erros de direito na aplicação da lei aos factos, que se articulam com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, a violação das regras do cúmulo jurídico, a violação do princípio da tipicidade e do princípio in dubio pro reo.
   3. Não foram dados por provados factos que permitissem o seu enquadramento nos crimes de homicídio qualificado, tentados, por que foi condenado.
   4. O preenchimento de um tipo legal de homicídio com actuação na forma de dolo eventual exige que o agente tenha representado a possibilidade da morte de uma pessoa como consequência possível da sua conduta e a conformação com esse resultado.
   5. No caso concreto, a possibilidade de tal enquadramento impunha que se tivesse dado por provado que o arguido, ao atear fogo ao colchão tivesse admitido a possibilidade da propagação do fogo às outras dependências da residência, em termos tais que tivesse previsto a possibilidade da morte dos restantes co-inquilinos da residência, como consequência eventual da sua conduta e que se tivesse, ademais, conformado com esse resultado-morte.
   6. Para se verificar dolo eventual relativamente a condutas objectivamente perigosas, não basta que o agente preveja o perigo de resultado e se conforme com ele, tornando-se, antes e sempre necessário que aquele preveja e se conforme com o próprio resultado.
   7. Ao estribar o dolo eventual na conformação com o resultado provável do incêndio, o tribunal recorrido incorreu no manifesto erro de confundir duas realidades distintas: a previsão do perigo de resultado e a previsão do resultado.
   8. No caso, houve previsão do perigo de resultado mas não houve previsão do resultado.
   9. As instâncias deram por 《não provado que a intenção do arguido, ao acender fogo, fosse para matar ( ... )》, facto de que o tribunal recorrido não extraiu as consequências que se impunham.
   10. Não pode, de todo o modo, aceitar-se que os quatro crimes de homicídio tentados tenham sido dados como crimes qualificados, uma vez que se não mostra verificada a qualificativa dada por verificada pelos tribunais de instância.
   11. Mau grado o crime de incêndio seja um crime comum, não basta à verificação da qualificativa que a acção integradora do crime de homicídio se haja, sem mais, desenrolado no quadro da prática de um crime comum.
   12. Ao preenchimento concreto da qualificativa importava que se apurasse um maior desvalor da conduta, mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: a especial censurabilidade, perversidade ou perigosidade do agente.
   13. Sem componentes da culpa aferidos ao agente, inverificados no caso, e de todo o modo, não identificados nas decisões sucessivamente recorridas, não se pode qualificar o crime de homicídio.
   14. No caso, não houve propagação do fogo a outras dependências da casa, pelo que, para além do colchão ardido (e da carbonização do corpo da infeliz vítima) não há, na factualidade apurada, quaisquer elementos de informação relativos à extensão ou consequências do fogo.
   15. Mostra-se, em consequência, inverificado o perigo para a vida ou perigo grave para a integridade física de outrem ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, que constitui elemento do tipo de incêndio pelo qual o arguido foi também condenado.
   16. Ao preenchimento do tipo legal de incêndio não basta provocar ou atear fogo mas provocar incêndio e um incêndio de relevo.
   17. O conceito de incêndio é preenchido pelo abrasamento total ou parcial de um edifício ou de uma floresta ou um fogo que lavra com intensidade ou extensamente enquanto o conceito de fogo é o resultado da combustão de certos corpos dentro de níveis aceitáveis de controlo e de domínio.
   18. A decisão recorrida deu por verificado o crime de incêndio sem se ter detido no exame prévio dos seus elementos delimitadores e deixando tombar um elemento constitutivo do tipo de ilícito: o incêndio (de relevo).
   19. O caso dos autos, para além das consequências ao nível dos riscos de intoxicação e de fuga precipitada, não permite o seu enquadramento no tipo legal de incêndio.
   20. Mostra-se desproporcionada a pena global fixada pelo Venerando Tribunal recorrido em 24 anos de prisão, porque tal pena ultrapassa a medida da culpa, o que se diz mau grado a reconhecida dificuldade na《medição》da pena resultante de um cúmulo jurídico.
   21. O cúmulo jurídico tem, no nosso sistema, uma visão cultural abrangente, no qual se entrelaçam os valores da culpa, da personalidade do delinquente e as razões de prevenção, especial particularmente.
   22. No caso, não estamos perante uma situação em que o arguido tenha, sucessivamente, praticado os vários crimes integradores do concurso, em momentos diferentes e de acordo com motivações criminosas múltiplas ou distintas razões exógenas que tornem destruidor um exame da sua personalidade.
   23. Todos os factos se encadearam uns nos outros, como um feixe, como se a actuação do arguido, na sucessão das complexas situações ocorridas, tivessem consubstanciado uma só acção, o que revela ao nível da medição da culpa.
   24. A partir do momento em que feriu mortalmente a infeliz vítima, o arguido viu os seus comportamentos ulteriores gravemente dominados por uma emoção e uma perturbação profundas, que o levaram ao total descontrolo dos seus actos.
   25. O tribunal recorrido violou as normas dos art.ºs 129.º, n.º 2, al. f), 264.º, n.º 1, al. a), ambas do C. Penal, ao fazer a sua aplicação sem base fáctica para o efeito; e violou a norma do art.º 65.º do mesmo diploma legal no que tange à fixação do cúmulo jurídico correspondente aos vários crimes por que o condenou.
   26. Violou, ainda, o princípio da proporcionalidade das penas e o princípio in dubio pro reo.”
   Pedindo que seja julgado procedente o recurso, absolvido o recorrente dos cinco crimes de homicídio qualificado na forma tentada e do crime de incêndio, convolado este último para o crime de dano e condenado o recorrente numa pena global não superior a 16 anos de prisão; ou de qualquer modo alterada a pena global para o limite de 18 anos de prisão.

O Ministério Público emitiu a seguinte resposta:
   “Impugna o recorrente o douto acórdão que julgou parcialmente procedente o recurso.
   Vejamos.
   
   O arguido insurge-se, além do mais, contra a sua condenação pelo crime previsto no art.º 264.º, n.º 1, al. a), do C. Penal.
   Tal decisão, no entanto, é irrecorrível.
   
   Nos termos do disposto na alínea g) do n.º 1 do art.º 390.º do C. P. Penal – na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20/12 – não é admissível recurso “de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções”.
   E está-se, “in casu”, perante essa situação.
   Tal crime, na verdade, é punido com uma pena de prisão com o limite máximo de 10 anos.
   Não deve, assim, nesta parte, o recurso ser conhecido.
   No sentido propugnado tem decidido, aliás, esse Venerando Tribunal (cfr., entre outros, ac. de 13-4-2005, proc. n.º 1/2005).
   
   O recorrente ataca, por outro lado, a sua condenação pelos cinco crimes de homicídio tentado.
   Mas não lhe assiste razão.
   
   Relativamente a esses crimes, o douto acórdão recorrido – tal como o da 1ª Instância – apenas afastou a sua comissão nas modalidades de dolo directo ou necessário.
   Quanto ao dolo eventual, contudo, não podem subsistir dúvidas.
   Apurou-se, na verdade, designadamente, que o arguido “apesar de saber que vieram os polícias, lançou fogo no apartamento a fim de queimar o cadáver de B, ademais embora conhecesse que C, D, E, F e G, no total de cinco pessoas, ainda estavam na residência e que a conduta de lançar fogo provocaria mortes daqueles, ainda a praticou e aceitou o resultado eventual”.
   O que equivale a afirmar, como concluiu esta Segunda Instância, que representou a morte dessas pessoas como consequência possível da sua conduta e, mesmo assim, levou-a a cabo, conformando-se com o resultado representado.
   E essa conclusão, tirada no domínio da matéria de facto, não pode, a nosso ver, ser sindicada por esse mais Alto Tribunal.
   A afirmação de que houve “previsão do perigo de resultado mas não houve previsão do resultado” deve, pois, ter-se como gratuita.
   
   O recorrente sustenta, subsidiariamente, que os crimes em apreço não podem considerar-se “qualificados”.
   Tal asserção, porém, para além de infundada, constitui uma questão nova, não suscitada perante esta Segunda Instância.
   Ora, como tem entendido esse Venerando Tribunal, “os recursos jurisdicionais para o Tribunal de Última Instância não visam criar decisões sobre matérias novas, pelo que se a questão não foi posta no recurso para a instância inferior não se pode da mesma conhecer, a menos que se trate de matéria de conhecimento oficioso” (cfr. ac. de 9-10-2002, proc. n.º 10/2002).
   
   O arguido pretende, finalmente, a redução da pena única, para um “quantum” máximo de 18 anos de prisão.
   Não põe em causa, porém, as penas parcelares que lhe foram impostas.
   
   A lei fornece ao tribunal, quanto à pena do concurso, para além dos critérios gerais previstos no art.º 65.º, n.º 1, do citado C. Penal, um critério especial: consideração, em conjunto, dos factos e da personalidade do agente (cfr. subsequente art.º 71.º, n.º 1).
   No caso presente, a respectiva moldura abstracta vai de 15 a 54 anos de prisão.
   A gravidade do ilícito global perpetrado e a avaliação da personalidade – emergente dos factos dados como provados – apontam, no nosso entender, para a bondade da pena única aplicada.
   Tais factos inculcam, em nosso juízo, uma propensão ou tendência criminosa – e não uma mera pluriocasionalidade (cfr., a propósito, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 291).
   A pena impugnada emerge, enfim, como justa e equilibrada.
   
   Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado improcedente.”

A parte do recurso interposto pelo arguido relativa ao crime de incêndio previsto no art.º 264.º, n.º 1, al. a) do CP não foi recebida por despacho do relator do Tribunal de Segunda Instância que foi confirmado, posteriormente em sede de reclamação, pelo Presidente do Tribunal de Última Instância, pelo que aquela parte do recurso não será conhecida.

Nesta instância, o Ministério Público mantém a mesma posição assumida na resposta.

   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 Foram dados como provados pelo Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância os seguintes factos:
   “Em 12 de Outubro de 2004, pelas 4H00 da madrugada, o arguido A e B (namorada do arguido) envolveram na discussão no quarto de dono do seu domicílio comum, designadamente [Endereço].
   Entretanto, o arguido A deu duas bofetadas na face de B.
   Para isso, B retirou um cutelo do cozinha deste apartamento, voltou ao quarto de dono e continuou a discutir com o arguido A.
   O arguido A de imediato tentou roubar-lhe o cutelo que esta pegava na mão, envolvendo-se assim os dois na briga.
   Por último, o arguido A retirou o referido cutelo, dando violentamente a B os esfaqueamentos na cabeça, no corpo e nas outras posições do corpo, até que a mesma caiu para o chão sem poder mover-se.
   Na altura, outras pessoas C, D, E, F (menor) e G estando a dormir nos outros dois quartos, foram acordados pelos barulhos resultantes da agressão. Por isso C, D, E e G saíram dos seus quartos a fim de apurar o que aconteceu.
   O arguido A pelo que abriu a porta do quarto de dono e ordenou com o aludido cutelo pegado na mão que C, D, E e G não saíssem dos próprios quartos nem pudesse chamar policia, senão iria ligar o gas e queimar todos.
   C, D, E e G obrigaram-se a entrar nos seus próprios quartos.
   Após entrada no seu quarto, C participou a polícia com seu telemóvel, também D escrevendo um bilhete e atirando-o para rua para pedir socorro.
   Em 12 de Outubro de 2004, pelas 4H30 da madrugada, soou buzina pela rua.
   O arguido A ao conhecer que alguém tinha participado a polícia, gritava assim: estejam a chamar polícia! Vou ligar o gás e morremos juntos!.
   No momento, os guardas acorreram à porta do apartamento, e carregaram na campainha da porta, requerendo que abrisse a porta.
   Assim, o arguido A foi à cozinha do apartamento e acendeu a bolseira, o guarda-chuva, os jornais no forno à gás, subsequentemente atirou a isca para dentro do quarto de dono, acendendo assim o colchão.
   Depois de ser posto fogo, enchendo a fumaça densa todos os lados do apartamento, D e E fugiram do local através da janela do quarto por ter receio que aquele não os deixasse sair.
   Os bombeiros ao verificar que saiu o fumo daquele apartamento, entraram naquele por romper a porta, salvando C, F e G do local.
   O arguido A a seguir saiu do apartamento no incêndio e foi detido pelos agentes policiais.
   Posteriormente, os guardas descobriram o cadáver de B já queimado no quarto de dono do aludido apartamento.
   A conduta de violentamente esfaquear B com cutelo, praticada pelo arguido A, provocou directa e necessariamente a B os ferimentos no seu corpo descrita pelo relatório de dissecação médica constante de fls. 256 a 258 dos autos (vide o relatório), entre os quais verificam 17 incisões e feridas por esfaqueamento no superfície do corpo, feridas por esfaqueamento no lado direito do pescoço e do rosto, sendo os ferimentos mortais directos verificados nas artérias faciais, artérias carótidas externas e veras jugulares externas que conduziram B a morrer por choque hemorrágico resultante da ofensa externa.
   O arguido A deu violentamente a B os esfaqueamentos com o cutelo nas várias posições da corpo, com intenção de privar-lhe da vida.
   O arguido apesar de saber bem que a referida conduta provocaria a morte de B, fomentava conscientemente a realização do resultado.
   Depois de matar B, o arguido A ameaçava com cutelo C, D, E e G, com o objectivo de os obrigar a ficar nos seus quartos próprios sem poder chamar polícia.
   O arguido A, apesar de saber que vieram os policias, lançou fogo no apartamento a fim de queimar o cadáver de B, ademais embora conhecesse que C, D, E, F e G, no total de cinco pessoas ainda estavam na residência e que a conduta de lançar fogo provocaria mortes daqueles, ainda a praticou e aceitou o resultado eventual.
   O arguido A apesar de saber que se localiza no prédio residencial alto o apartamento em que lançou fogo e que moravam no prédio muitos habitantes.
   Este sabia bem que o fogo, uma vez ser posto no apartamento, muito possível destruiria outros apartamentos até o prédio no seu todo e poria em crise a vida e segurança patrimonial das pessoas que viviam no prédio.
   O arguido A tomava uma atitude de aceitar o resultado de prejudicar a segurança pública que a sua conduta de lançar fogo traria.
   Em 14 de Outubro de 2004, os agentes da P.J no referido apartamento apreendeu um cutelo com cabo plástico, após exame verificou se o cutelo com o comprimento de 28,6 cm, 16,5 cm de lâmina e 12,1 cm de cabo plástico.
   O cutelo referido é o utilizado pelo arguido A para matar B e coagir C, D, E e G.
   O arguido A agiu livre, consciente e voluntariamente.
   O arguido A ao tempo da conduta era imigrante clandestino.
   O arguido A sabia bem que a referida conduta era proibida e punida pela lei.
   
   Na audiência de julgamento, o arguido confessou a prática dos factos imputados, mas explicou que ficava inconsciente uma vez que tinha consumido, antes do caso, uma grande quantidade de cocaína (cerca de 5 ou 6 gramas).
   O arguido alegou que consumia cocaína por 7 ou 8 anos.
   Sem outros registos constantes no último C.R.C do arguido.
   O arguido disse que clandestinamente entrou em Macau dois dias antes do caso.
   O arguido declarou que era desempregado antes de ser preso.
   O arguido disse que possuiu como habilitação literária o 5.º ano do curso de ensino primário.
   
   Factos não provados:
   Outros factos importantes constantes da acusação, não correspondentes aos factos provados, como segue:
   O arguido A lançou fogo no apartamento, a fim de provocar a morte de C, D, E, F e G através da queima.
   O arguido A ao tempo da conduta, ficava inconsciente uma vez que tinha consumido, antes do caso, uma grande quantidade de cocaína.”
   
   
   2.2 Insuficiência da matéria de facto provada para integrar os crimes de homicídio qualificado tentados
   O recorrente sustenta que o preenchimento do crime de homicídio na forma de dolo eventual exige que o agente tenha representado a possibilidade da morte de uma pessoa como consequência possível da sua conduta e a conformação com esse resultado. Entende que o tribunal recorrido confundiu a previsão do perigo de resultado e a previsão do resultado e como não ficou provada a intenção do recorrente de matar deve ser absolvido dos referidos crimes.
   
   É certo que segundo as instâncias não ficou provado que “o arguido A lançou fogo no apartamento, a fim de provocar a morte de C, D, E, F e G através da queima.”. Isso afasta a acusação pela prática dos crimes de homicídio qualificado tentado na forma de dolo directo.
   Como se sabe, distingue-se três formas de dolo segundo a sua intensidade. Em relação ao menos intenso, o dolo eventual, o n.º 3 do art.º 13.º do CP prescreve que “quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se com aquela realização.”
   Para a verificação da prática de crime com dolo eventual, exige-se a consciência ou previsão da realização do facto ilícito como consequência possível do comportamento do agente e a vontade deste de conformar ou consentir com essa realização, embora não tem por fim a prática do crime, de modo a não desistir da realização do seu propósito final.1
   Assim, segundo os factos dados por provados, não resta dúvidas de que o recorrente praticou os referidos crimes na forma de dolo eventual.
   É de notar especialmente os seguintes factos provados:
   “O arguido A ao conhecer que alguém tinha participado a polícia, gritava assim: estejam a chamar polícia! Vou ligar o gás e morremos juntos!.”
   “Assim, o arguido A foi à cozinha do apartamento e acendeu a bolseira, o guarda-chuva, os jornais no forno à gás, subsequentemente atirou a isca para dentro do quarto de dono, acendendo assim o colchão.”
   É manifesto que o recorrente previu a morte dos ofendidos que estavam dentro da fracção como consequência possível de provocação do incêndio e mesmo assim provocou efectivamente o incêndio na fracção, lançando os objectos incendiados para dentro do quarto de dono, apesar de saber que já chegaram as polícias. Admite-se que a intenção do recorrente não é matar os ofendidos, mas a sua vontade revela-se na conformação com a morte destes.
   
   O recorrente alegou ainda que tais crimes de homicídio tentados não devem ser qualificados com base apenas na verificação da prática de um crime de perigo comum, ou seja, o crime de incêndio, pelo que, a ser condenado, só pode ser por crimes de homicídio simples na forma tentada.
   
   Segundo o art.º 129.º do CP, comete o crime de homicídio qualificado quando a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente. A utilização do meio que se traduza na prática de crime de perigo comum, como o crime de incêndio, é uma circunstância susceptível de revelar as características qualificativas.
   O recorrente limita-se, nesta parte da fundamentação, a tecer e citar as posições doutrinárias abonatórias da sua tese, em vez de expor concretamente como a prática dos crimes de homicídio tentado pelo recorrente por meio de incêndio provocado na fracção de um edifício habitacional não revela a especial censurabilidade ou perversidade dele, sendo certo que não se mostra incorrecta a incriminação por homicídio qualificado.
   
   
   2.3 Medida da pena
   Para o recorrente, a pena global de 24 anos de prisão fixada pela segunda instância afigura-se desproporcionada e excessiva porque os crimes foram praticados no mesmo momento e depois de ferir mortalmente a vítima foi o recorrente dominado por uma emoção e uma perturbação profundas que levaram ao total descontrolo dos seus actos, com a mitigação da culpa dos actos que se sucederam. Entende que a pena global deve ser fixada no limite máximo de 18 anos de prisão.
   
   Segundo a norma constante do art.º 71.º, n.º 1 do CP, a pena única resultada do cúmulo jurídico é fixada tendo em consideração conjuntamente os factos e a personalidade do agente.
   E tal pena única tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não ultrapassando 30 anos de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, conforme o n.º 2 do mesmo artigo.
   Assim, a pena única terá como limite mínimo os 15 anos de prisão cominada para o crime de homicídio e máximo os 30 anos, por a soma matemática das penas parcelares ascendem já aos 54 anos de prisão.
   Considerando todos os factos praticados pelo recorrente, nomeadamente os interesses violados, o número dos ofendidos, o meio empregado, a gravidade do resultado e o alarme social causado, será totalmente desproporcionado, isso sim, limitar a pena única apenas aos 18 anos de prisão proposta pelo recorrente, pouco acima do limite mínimo legalmente determinado. A pena única de 24 anos de prisão fixada de novo pela segunda instância, em redução dos 29 anos de prisão encontrados pela primeira instância, não pode deixar de ser considerada equilibrada perante um caso tão grave como o presente.
   
   O recurso deve ser rejeitado por manifesta improcedência.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em rejeitar o recurso.
   Nos termos do art.° 410.°, n.° 4 do Código de Processo Penal, é o recorrente condenado a pagar 4UC.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 4UC.
   
   Aos 24 de Maio de 2006.



Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Cfr. Manuel Cavaleiro de Ferreira, Lições de Direito Penal, vol. I, Editorial VERBO, Lisboa, 1992, p. 295 a 298.
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Processo n.° 14 / 2006 1