Processo nº 695/2010
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 15 de Dezembro de 2011
ASSUNTO:
- Posse
- Aquisição por usucapião
- Artº 7º da Lei Básica
SUMÁRIO:
- A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (ou de outro direito real), nos termos do artigo 1175.º do Código Civil.
- Mas a posse do direito de propriedade não é o direito de propriedade.
- Daí que não é possível reconhecer a titularidade do direito de propriedade, com a prova da mera posse.
- Não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 695/2010
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 15 de Dezembro de 2011
Recorrente: A (Autora)
Recorridos: Ministério Público e Interessados Incertos (Réus)
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença de 25/05/2010, decidiu-se julgar improcedente o pedido da Autora, pelo qual pede que seja declarada única e legítima proprietária do prédio nº 1 do Pátio da Águia, em Macau, descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX.
Dessa decisão vem recorrer a Autora, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. Vem a ora Recorrente interpor Recurso da Sentença proferida pelo Douto Tribunal de Primeira Instancia que julgou improcedente a acção e, em consequência, decide absolver os Réus Ministério Publico e Interessados Incertos, do pedido formulado pela Autora, A, ou seja, de ser declarada única e legítima proprietária do prédio nº 1 do Pátio da Águia em Macau, para todos os efeitos legais, nomeadamente para inscrição da titularidade junto da competente Conservatória do Registo Predial de Macau.
II. A factualidade assente e provada nos presentes autos, o âmago do disposto no artigo 7º da Lei Básica e o conceito de posse conforme configurado no ordenamento juridico, não se coadunam com a decisão proferida pelo douto Tribunal a quo.
III. Conforme ficou assente no caso sub judice, por decisão transitada em julgado a 13 de Julho de 1995 nos autos nº 333/94 do 2° Juízo do então Tribunal de Competência Genérica de Macau foi declarada a titularidade da mera posse a favor da Autora sobre o prédio com o nº 1 sito no Pátio da Águia, descrito na conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX, através da inscrição nº 2960 do Livro F16L a fls 164, nessa Conservatória.
IV. Conforme resulta do registo a Recorrente é titular de um direito de natureza real, definitivo, judicialmente reconhecido pelo então Território de Macau, inscrito a seu favor desde 1995: A posse!
V. Do registo da posse a favor da Recorrente não poderá deixar de se retirar as consequências jurídicas que dela decorrem, relevantes em termos da pretensão formulada.
VI. A posse trata-se de um poder exercido sobre uma coisa, para a satisfação de um interesse de um particular, com regime e efeitos jurídicos próprios, a que a ordem jurídica confere tutela (coerciva) e meios de defesa próprios.
VII. Reconhecer judicialmente que a Recorrente exerce sobre o prédio certo poder, para satisfação dos seus interesses, com a possibilidade de o defender contra eventuais ofensas por banda de terceiros, e de inscrever em seu nome junto da Conservatória do Registo Predial um direito real (a posse), não se coaduna com o entendimento que esse prédio não entrou já definitivamente no regime da propriedade privada.
VIII. A posse, tal como vem comprovada face à sentença que titulou o registo, não deixa quaisquer dúvidas sobre uma afectação da coisa exclusivamente privada, não se divisando aí um rasgo mínimo que seja de qualquer dominialidade, demonstrando-se assim uma constituição e ingresso em termos definitivos desse terreno na propriedade privada.
IX. Com a comprovação da posse da Recorrente, ainda para mais registada, tem de se ter por verificado o correspondente direito que não deixará de ser o direito de propriedade, que já entrou na esfera jurídica da Recorrente, sob pena de se esvaziar de conteúdo a posse.
X. A posse leva a presumir a propriedade, presunção essa que, para a improcedência do pedido da Recorrente, teria necessariamente de ter sido ilidida com base em melhor posse ou em registo contrário.
XI. Não tendo sido ilidida a propriedade da Recorrente, resultante da sua posse, já judicialmente reconhecida e inscrita a seu favor na Conservatória do Registo Predial, o prédio em causa nos presentes autos terá necessariamente de será considerado como pertencente a particular, integrando-se no sector da propriedade privada.
XII. Sobre o prédio com o nº 1 do Pátio da Águia foi constituído definitivamente um direito de propriedade, não na data do registo nem da sentença que titulou o registo, porquanto tais actos não têm, como se sabe, natureza constitutiva, mas sim a partir do momento em que o direito que se pretende ver reconhecido e invocado urbi et orbe, ou seja, a partir do momento em que a Recorrente proclamou publicamente que era titular do direito e que pretendia vê-lo judicialmente reconhecido, isto é, na data em que intentou a acção judicial que correu termos no 2° Juízo do então Tribunal de Competência Genérica de Macau sob nº 333/94, antes, pois, da criação da Região Administrativa Especial de Macau.
XIII. O artigo 7° da Lei Básica impede apenas a constituição de situações novas, o que não é o caso porquanto há muito já o prédio entrou no domínio da propriedade privada e foi como tal reconhecido antes de 1999.
XIV. A Recorrente possui o n° 1 do Pátio da Águia, comportando-se como proprietária, sempre à vista de toda a gente, de forma pública, pacífica e continuada, posse que já logrou registar, abrindo portas para a aquisição dos direitos correspondentes aos actos praticados, por via de usucapião, que neste caso se destina "apenas a repor o trato sucessivo, não tendo qualquer repercussão na dominialidade do direito já há muito, manifestamente, de natureza privada" (neste sentido acórdão de 16.01.2008, do Tribunal da Última Instância, Processo nº 41/2007).
XV. O facto do prédio ora em questão se encontrar inscrito na Matriz Predial Urbana a favor da Recorrente e descrito na Conservatória do Registo Predial, com um direito real inscrito a favor da Recorrente são elementos bastantes para reconhecer que o mesmo prédio já foi legalmente reconhecido como pertencente ao regime de propriedade privada antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial, e como tal usucapível nos termos gerais previstos na lei civil substantiva.
XVI. Ao decidir-se como se decidiu o douto Tribunal a quo violou não apenas o disposto no artigo 7° da Lei Básica, mas também o disposto nos artigos 1º, 5 ° e 8° da Lei 6/80/M de 5 de Julho (Lei de Terras), e bem assim os artigos 1175°, 1183°, 1184°, 1185°, 1186º, al. a) do nº 1 do art. 1187°, e 1120°, 1212°, 1213° e 1241°, todos do Código Civil.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente o seu pedido.
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O Ministério Público respondeu à motivação do recurso da ora recorrente, nos termos constantes a fls. 219 a 223v dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso ora interposto.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
1. O prédio sito em Macau, com o n° X do Pátio da Águia, com a área de 49 metros quadrados, confronta a Norte com o Pátio da Águia, a Sul com a Rua de Tomás Vieira, a Este com a Rua da Águia e a Oeste com o prédio nº X daquele pátio, conforme Planta Cadastral emitida em 11/10/2007 (cfr. doc. nº 3 junto com a p.i.) (alínea A) dos factos assentes).
2. Está inscrito na matriz predial da freguesia de Santo António sob o artigo nº 32546, a favor da ora Autora, com o valor de MOP$4.320,00 (cfr. doc. nº 4 junto com a p.i.) (alínea B) dos factos assentes).
3. Por decisão transitada em julgado a 13 de Julho de 1995 nos autos nº 333/94 do 2° Juízo do então Tribunal de Competência Genérica de Macau foi declarada a titularidade da mera posse a favor da Autora sobre o prédio, descrito na conservatória do Registo Predial sob o nº XXXXX, através da inscrição nº 2960, do livro F16L a fls. 164, nessa Conservatória (cfr. doc. nº 5 e 6 junto com a p.i.) (alínea C) dos factos assentes).
4. Nada consta que o prédio em causa é foreiro à Fazenda da Região Administrativa Especial de Macau (cfr. doc. n° 2 junto com a contestação) (alínea D) dos factos assentes).
5. A Autora é uma associação constituída por escritura pública de 24 Abril de 1989 lavrada no Livro de Notas nº 391-B, a fls. 35, do 1° Cartório Notarial de Macau, publicada no Boletim Oficial nº 20, de 15 de Maio de 1989 e inscrita na Direcção dos Serviços de identificação sob o nº 446 (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
6. A Autora, desde a data da sentença a que alude a alínea C) de matéria dos factos assentes até hoje, sempre tem comportado como dona do referido imóvel (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
7. De forma pública, contínua e pacífica (resposta ao quesito da 3° da base instrutória).
8. Fazendo face às despesas de manutenção do prédio, nomeadamente com obras de canalizações, instalações eléctricas (resposta ao quesito da 4° da base instrutória).
9. Arrendou-o e recebeu as respectivas rendas (resposta ao quesito da 5° da base instrutória).
10. Nunca pagou rendas a quem quer que seja e nunca ninguém as reclamou (resposta ao quesito da 6° da base instrutória).
III – Fundamentos
Na óptica da Autora, a posse é um direito de natureza real e definitivo e com o reconhecimento judicial e o registo da mesma em 1995 se presume que a propriedade do prédio em causa tenha já integrado na esfera jurídica privada antes do estabelecimento da RAEM, daí que é susceptível de adquirir por usucapião, não havendo portanto qualquer violação do artº 7º da Lei Básica.
Quid iuris?
Sobre a mesma questão de direito, o TUI já tem oportunidade de pronunciar pela forma seguinte (Proc. nº 17/2010):
“Entendemos, portanto, que ter a posse da coisa a título de direito de propriedade não equivale a ter reconhecido o direito de propriedade dos terrenos.
Esta asserção parece evidente.
A posse é o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade (ou de outro direito real), nos termos do artigo 1175.º do Código Civil. E quando a posse tem determinadas características e perdura durante certo tempo, pode conduzir à aquisição do direito de propriedade (ou de outro direito real), por meio do instituto da usucapião.
Mas a posse do direito de propriedade não é o direito de propriedade.
A aquisição do direito de propriedade de imóveis por usucapião só se dá, na melhor das hipóteses para o interessado, ao fim de 5 anos (posse de boa fé, contínua, por 5 anos, após a data do registo) (artigos 1220.º e 1221.º do Código Civil).
A tese da autora, de que a sentença de usucapião não é constitutiva, mas declarativa, não tem os efeitos que dela se pretende retirar.
Da mesma maneira, e ligada à anterior, a sua ênfase na invocação do seu pretenso direito, a sua tese de que o seu direito sobre o prédio nasceu com a invocação de que o pretendia ver reconhecido e que tal invocação aconteceu aquando da propositura da acção para o registo da posse, enferma de alguns equívocos.
O que a lei e os autores referem no que concerne à invocação, é a necessidade de a usucapião ser invocada, o que bem se compreende. A usucapião não opera por si, apenas com a posse por certo tempo, de uma coisa. Necessita de um acto do interessado a pretender beneficiar o instituto (artigo 296.º, aplicável por força do artigo 1217.º e 1213.º todos do Código Civil). Tal como a prescrição. “A aquisição por usucapião não é automática, antes depende de uma manifestação de vontade do possuidor em benefício de quem estejam reunidos os requisitos legais1”.
Ora, a autora nunca poderia ter adquirido por usucapião antes de se completarem 5 anos sobre o dia 16 de Novembro de 1995, isto é, em 16 de Novembro de 2000.
É inequívoco que a usucapião só pode ser invocada depois de decorrido o prazo necessário para a aquisição do direito, embora os seus efeitos se retrotraiam à data do início da posse [artigos 1213.º e 1242.º, alínea c) do Código Civil]. É esse o momento da aquisição do direito.
Logo, é completamente absurdo defender que a invocação da usucapião se deu com a propositura da acção, em que se pedia a declaração da existência da posse (em 1995), num momento em que apenas estava a começar a correr o prazo necessário par a efectivação da usucapião”.
Mais ainda:
“Do mesmo modo, a invocação do artigo 1193.º, n.º 1 do Código Civil, segundo o qual “O possuidor goza da presunção da titularidade do direito, excepto se existir, a favor de outrem, presunção fundada em registo anterior ao início da posse”, não conduz, nem de longe, nem de perto, como se defende, a “reconhecer a titularidade do direito” de propriedade da autora.
Mas como é possível reconhecer a titularidade do direito de propriedade, com a prova da mera posse, sem estarem sequer preenchidos os requisitos previstos para a usucapião?
A presunção da posse tem um alcance mais limitado, relevando sobretudo em termos práticos, por ser muitas vezes difícil provar a propriedade, como acontece com os móveis2. O que está em causa é “a necessidade de tutela da aparência no mundo de Direito, por mera exigência da segurança nas relações sociais e sua projecção nas relações jurídicas. A possibilidade de, a cada momento, se investigarem os títulos atributivos dos direitos de cada um tornar-se-ia num pernicioso factor de perturbação da vida jurídica, com o consequente acréscimo dos diferendos. Obrigaria, também, à necessidade de conservar, em relação a todos os bens, os títulos justificativos dos direitos sobre eles adquiridos, o que, por razões de celeridade do comércio jurídico e de ordem prática, sobretudo na vida moderna, é quase inviável3”. Se o proprietário de um livro se queixa do furto de um livro, certamente que ninguém o obriga a comprovar o título e a aquisição, como a compra, a doação, a usucapião, bastando provar a posse da coisa a título de direito de propriedade. Esta faz presumir o próprio direito de propriedade”.
É a jurisprudência que aponta a boa solução do caso com a qual concordamos na sua íntegra e cujo conteúdo aqui, respeitosamente, fazemos nosso.
IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar o provimento ao recurso interposto, mantendo a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Notifique e registe.
RAEM, aos 15 de Dezembro de 2011.
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Ho Wai Neng
(Relator)
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José Cândido de Pinho
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 JOSÉ OLIVEIRA ASCENSÃO, Direito Civil – Reais, Coimbra Editora, 5:ª edição, 1993, p. 300.
2 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1987, volume III, 2.ª edição, p. 35. PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, 1987, volume III, 2.ª edição, p. 35.
3 LUÍS CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, Lisboa, Quid Juris, 2.ª edição, 1997, p. 271.
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