Processo n.º 42/2011
(Recurso contencioso)
Data : 12/Janeiro/2012
ASSUNTOS:
- Viagens de estudantes descendentes de trabalhadores ou agentes da Administração
- Interpretação da lei
SUMÁRIO:
O descendente de funcionário ou agente da Administração que tenha direito ao pagamento das passagens por motivo de estudo no Exterior, para além do pagamento da viagem de ida e de regresso, terá direito a uma viagem a Macau e regresso ao local dos estudos, sempre que decorram dois anos de permanência no exterior, direito que se renova em cada dois anos de ausência por motivo de estudos.
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 42/2011
(Recurso contencioso)
Data : 12 de Janeiro de 2012
Recorrente: A
Entidade Recorrido: Secretário para a Economia e Finanças
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, melhor identificada nos autos, vem interpor recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, datado de 15 de Novembro de 2010, exarado sobre a Informação nº 221/NAJ/DB/2010, de 5 de Novembro, notificado pelo Ofício nº 095/NAJ/DB/2010, nos termos do qual foi indeferido à ora recorrente o abono de uma viagem aérea de ida e volta, no percurso Portugal/Macau/Portugal, para transporte do seu descendente XXX, a coberto da alínea b) do nº 1 do artigo 242º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (ETAPM).
Para tanto alega fundamentalmente e em síntese:
1. O objecto do presente recurso contencioso é o despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças, datado de 15 de Novembro de 2010, exarado sobre a Informação nº 221/NAJ/DB/2010, de 5 de Novembro, notificado pelo Ofício nº 095/NAJ/DB/2010, recepcionado através de “Termo de entrega e notificação”, de 7 de Novembro de 2010.
2. O despacho recorrido indeferiu à ora recorrente o abono de uma viagem aérea de ida e volta, no percurso Portugal/Macau/Portugal, para transporte do seu descendente XXX, a coberto da alínea b) do nº 1 do artigo 242º do ETAPM.
3. O pedido inicial dirigido à Senhora Directora dos Serviços de Finanças, subst.ª, data de 6 de Abril de 2010.
4. O pedido foi indeferido, por despacho da Senhora Directora dos Serviços de Finanças, subst.ª, de 23 de Junho de 2010, fundamentando-se tal indeferimento no facto de o descendente da ora recorrente, XXX, ter beneficiado, em Julho e Agosto de 2008, do mesmo abono.
5. Mediante o entendimento de que os descendentes podem gozar uma única vez do abono em causa, independentemente do período de tempo que permaneçam fora de Macau por motivos escolares.
6. Entendimento com o qual não se pôde nem pode concordar.
7. Daí o recurso hierárquico dirigido ao Senhor Secretário para a Economia e Finanças em 12 de Julho de 2010.
8. A decisão no recurso foi também de indeferimento, decisão essa que constitui o acto recorrido, sustentando-se em parecer constante do ofício nº 1010190009/DTJ, de 19 de Outubro de 2010, da Direcção dos Serviços de Administração e Função Público.
9. Parecer este que defende que os descendentes têm somente direito a uma viagem de férias após 2 anos de permanência no exterior, independentemente, da duração do curso frequentado.
10. Sendo que se reputa ilegal esta interpretação jurídica.
11. Pugnamos que numa interpretação com recurso ao elemento histórico que a entidade recorrida também adopta, o Decreto-Lei nº 91/85/M, de 26 de Outubro, ter permitido que, em cada período de 3 anos, pudessem os descendentes dos seus trabalhadores beneficiar do abono de uma viagem, em qualquer momento do decurso desses 3 anos.
12. A ao dizer que o direito pode ser exercido “… uma só vez em cada período de três anos…”, vincava que podia existir mais do que um período de 3 anos.
13. Pelo uso do elemento histórico na interpretação do ETAPM manteve-se a renovação do direito, com um regime mais favorável aos trabalhadores da Administração, que passaram a poder exercer o direito em cada período de 2 anos.
14. O descendente da ora recorrente frequenta um programa especial de ensino superior, criado pelo Governo de Macau, destinado a formar quadros bilingues na área do Direito, com componente linguística em português, correspondendo a um período de estudos de 8 anos.
15. O fundamento jurídico que se impugna lesa gravemente os interesses da ora recorrente e não tem base legal para redução de um direito que a lei lhe confere sem restrições ao número de viagens.
16. Entendemos que a interpretação correcta da alínea b) do nº 1 do artigo 242º do ETAPM permite que o descendente da ora recorrente pode, em cada período de 2 anos que tenha de estudos no exterior, renovar o direito de uma viagem a Macau e regresso ao local de estudo, nos termos do citado normativo.
17. Interpretação esta que dá unidade ao nosso sistema jurídico referente ao direito consagrado no artigo 242º do ETAPM, seguindo a regra do artigo 8º do Código Civil.
18. Ademais, a expressão “… uma vinda a Macau…” constante da norma não é o mesmo que “uma única vinda a Macau”. O “uma”, neste contexto, é artigo indefinido e não um numeral cardinal ou quantificador numeral representativo da unidade.
19. Questão linguística tão mais importante quando do texto em chinês da lei não resulta a inserção do correspondente “uma”.
20. Pelo que este só existe devido a exigências gramaticais de língua portuguesa.
21. Se fosse exclusivamente possível o abono de uma viagem, no sentido de unidade, o legislador não teria de fazer qualquer referencia ao período de 2 anos.
22. Bastaria ao legislador ter escrito que durante o período de ausência para estudos teriam os descendentes direito a deslocar-se a Macau uma única vez, num contexto quantificador.
23. Não foi esta, no entanto, a opção legal que preferiu manter a unidade do sistema com a legislação revogada pelo ETAPM e consagrar a possibilidade de os descendentes dos trabalhadores da Administração Pública a estudar no exterior poderem viajar a expensas desta, em cada período de 2 anos de duração do curso médio ou superior.
Nestes termos requer:
1) A citação da entidade recorrida para, querendo, contestar nos termos legais e para junção aos autos do processo administrativo.
2) A revogação do acto, por vício de violação de lei, conducente à invalidade do acto administrativo, porque anulável e revogável, nos termos do artigos 124º, 125º e 130º, todos do Código do Procedimento Administrativo e do artigo 21º do Código do Processo Administrativo Contencioso.
Contesta o Exmo Senhor Secretário para a Economia e Finanças, entidade recorrida, alegando, em síntese:
1. Nos presentes autos, a recorrente vem impugnar o despacho do Sr. Secretário para a Economia e Finanças de 15 de Novembro de 2010 exarado na Informação nº 221/NAJ/DB/2010, que indeferiu o recurso hierárquico apresentado por si no dia 12 de Julho de 2010,, contra a decisão de não abono de uma viagem aérea de ida e volta Portugal – Macau para o seu descendente XXX, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 242º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Público de Macau (ETAPM).
2. A Recorrente elabora na sua petição uma versão do parecer da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, que serviu de fundamento à decisão de indeferimento, que não corresponde ao que aí se afirma, mas antes se traduz numa interpretação abusiva dos termos do mesmo, no sentido mais favorável às suas pretensões.
3. Desde logo, o alegado “argumento histórico”, no qual pretende demonstrar que a Administração não reconhecia ao abrigo do Decreto-Lei nº 91/85/M, o pagamento das passagens mais do que uma vez, quando é absolutamente claro que referindo-se a lei a “uma só vez em cada período de três anos”, pode perfeitamente existir mais do que um período de três anos.
4. O que sucedia é que tendo nessa data a generalidade dos cursos uma duração de 5 anos, o direito a viagem não se chegava a renovar.
5. Por outro lado, não podem restar dúvidas que o que claramente afirma a alínea b) do nº 1 do artigo 242º do ETAPM é que é necessária uma permanência no exterior de Macau de pelo menos 2 anos, para que o descendente tenha direito a uma viagem de ida e volta Portugal – Macau.
6. Não sendo necessário escrever a expressão “uma única vinda a Macau”, se “uma vinda a Macau” expressa exactamente a mesma coisa.
7. Quisesse o legislador permitir que o direito a abono das passagens se renovasse de 2 em 2 anos, teria com certeza encontrado formas de o dizer de forma inequívoca e clara, bastando para tal, por exemplo, manter a redacção constante do Decreto-Lei nº 91/85/M, que não suscitava quaisquer dúvidas.
8. Neste mesmo sentido se pronunciou a Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, entidade a quem compete “prestar apoio técnico-jurídico aos serviços e trabalhadores da administração pública na (…) interpretação e aplicação do regime geral da função pública”, a qual, questionada sobre o assunto, esclareceu inequivocamente que ”os descendentes têm somente direito a uma viagem de férias (após perman6encia de 2 anos no exterior), independentemente da duração do curso, ou seja, se já tiver gozado este direito uma vez, não pode vir a gozá-lo novamente.”
Termos em que se requer seja o presente recurso declarado improcedente, sendo, consequentemente, mantido o despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças de 15 de Novembro de 2010, notificado à recorrente através do ofício nº 095/NAJ/DB/2010, de 7 de Dezembro, com as devidas consequências legais.
O Digno Magistrado do MP oferece o seguinte douto parecer:
Encontra-se em escrutínio a interpretação a conferir ao conteúdo da al. b) do nº 1 do art.º 242º, ETAPM, no sentido de aferir se o mesmo permite exclusivamente uma viagem durante todo o período de duração dos cursos médios ou superiores, ou se tal direito se renova, com permissão do seu gozo em cada período sucessivo de 2 anos, até ao termo dos estudos do mesmo descendente.
Da leitura de tal norma, colhe-se, com clareza, que tais descendentes têm direito a passagens “… para uma vinda a Macau e regresso ao local de estudo, após 2 anos de perman6encia no exterior.”
Do sublinhado a que procedemos poderia, numa abordagem puramente literal, inferir-se que, quiçá, o legislador se quis reportar a “uma” no sentido de “única” viagem durante todo o período de permanência no exterior e, a ser assim, não deixaria de assistir razão à Administração no indeferimento registado.
Afigura-se-nos, contudo, não ser o caso.
No diploma que anteriormente regulava a matéria – o Dec Lei 91/85 de 26/10 – dispunha-se, no nº 2 do seu art.º 3º, que o direito em questão “… é utilizável, a qualquer tempo, mas uma só vez em cada período de três anos, contados desde a data de início do curso”.
Significam os sublinhados, mais uma vez nossos, que já em tal diploma existia o reporte a “uma só vez”, sendo que, porém, logo de seguida se esclarecia “em cada período de 3 anos”, pelo que a renovação desse direito era inquestionável.
Na norma presentemente aplicável, do ETAPM, não se descortina expresso tal reporta.
Significará isso, que, pura e simplesmente, o legislador quis efectivamente afastar a hipótese de renovação?
Não devendo a interpretação cingir-se à letra da lei “… mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta … as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada”, quer-nos parecer que, levando em conta a análise histórica em que o preceito se insere, numa época em que o desenvolvimento dos factos educativos e a necessidade de aprendizagem dos residentes da Região no exterior obviamente se acentuaram, não estaria na mente do legislador o cancelamento ou cerceamento dos benefícios e incentivos a esse propósito anteriormente concedidos, tudo apontando, pois, que a intenção, a tal nível foi, de facto, acentuar esse benefício, reduzindo de 3 para 2 anos o período mínimo de permanência no exterior para o respectivo usufruto, não coarctando a possibilidade da renovação desse direito, logo que completado novo período de 2 anos para o efeito, sendo que a expressão “uma vinda a Macau” se não reportará a uma única vinda a Macau durante todo o tempo de permanência ao exterior, mas a uma vinda durante cada período sucessivo de 2 anos.
Aliás, tal interpretação será também a que melhor se compagina com os interesses e valores que estarão subjacentes à concessão do direito em questão: facultar aos estudantes que permaneçam no exterior, o mais possível, a possibilidade de contactos pessoais com as suas raízes, familiares e amigos na Região, mal se percebendo que, numa altura em que essas necessidades de ausência para estudo no exterior (até para óbvio benefício da Região) se acentuam, a interpretação a efectuar seja em sentido inverso…
Tudo razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender que, por ocorrência de errada interpretação legislativa, haverá que conceder provimento ao presente recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
Este Tribunal é o competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciária e são dotadas de legitimidade “ad causam”.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento do mérito.
III - FACTOS
Com pertinência, têm-se por assentes os factos seguintes:
1. É do seguinte teor a notificação do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças de 15/11/2010:
«Por referência ao recurso hierárquico necessário apresentado por V. Ex.ª cumpre-me notificar V. Exª, nos termos dos artigos 68º e ss. do Código do Procedimento Administrativo, do despacho do Senhor Secretário para a Economia e Finanças 15 de Novembro de 2010, exarado na Informação n.º 221/NAJ/DB/2010, de 5 de Novembro, consistindo o seu teor no seguinte :
“Concordo com o parecer, indefiro o referido recurso.”
Ass.: Tam pak Yuen, aos 15/11/2010.”»
2. A citada informação foi objecto de despacho da Sr.ª Directora dos Serviços de Finanças, do seguinte teor :
“Do parecer constante no Ofício n.º 1010190009/DTJ de 19 de Outubro dos SAFP, segundo a disposição da al. b) do art. 242º do ETAPM, os descendentes dos funcionários e agentes da Administração do Território têm direito a passagens para uma vinda a Macau e regresso ao local de estudo, o que é apenas uma só vez, não sendo como a interpretação da recorrente, ou seja, têm direito a passagens de dois em dois anos. Sendo assim, propõe-se a V. Exª o indeferimento do presente recurso hierárquico necessário porque a mesma já gozou o mesmo direito em 2008”
Ass.: Vitório da Conceição, aos 8/11/2010.
3. A citada informação foi também objecto de parecer da Coordenadora do NAJ, do seguinte teor :
“Exm.ª Senhora Directora dos Serviços de Finanças, Substituta :
Atenta a interpretação conferida pelos SAFP, propõe-se a manutenção do acto recorrido, solicitando de V. Exª., em caso de concordância, a remessa do presente processo á superior consideração do Senhor SEF, com proposta de indeferimento do recurso hierárquico.”
Ass.: XXX, aos 5/11/2010.
4. Da informação referida reproduzem-se os fundamentos de facto e de direito que sustentam o presente despacho e que são os seguintes :
就第2157/DCP-DDP/10號報告書, 由於已受惠了«澳門公共行政工作人員通則» 第242條第1款b) 項, 因此, 否決了聲請人為其卑親屬XXX申請的葡萄牙/澳門/葡萄牙交通費。
Como se alcança da Informação n.º 2157/DCP-DDP/10, viu a ora requerente indeferido o seu pedido de abono de uma viagem entre Portugal/Macau/Portugal para o seu descendente, XXX, porquanto o mesmo já havia beneficiado da viagem a que se refere a al. b) do n.º 1 do art. 242º do ETAPM.
鑒於不同意該否決, 聲請人於2010年7月12日向經濟財政司司長提起訴願, 內容詳見附於本報告書的聲請書。
Discordando de tal indeferimento a recorrente interpôs recurso hierárquico para o Exmº Senhor Secretário para a Economia e Finanças, em 12/07/2010, nos termos que melhor constam do requerimento anexo à presente informação.
基於對該法律規範的理解存在疑問, 向行政公職局要求就其職權範圍內對有關事宜發表意見。
Suscitando-se dúvidas quanto á interpretação da norma legal em questão , foi solicitado parecer aos SAFP para que, no âmbito das suas atribuições, se pronunciasse sobre a matéria.
該局隨後透過2010年10月19日第101090009/DTJ 號公函回覆, 該公函附於本件, 其內容在此產生一切法律效力, 當中, 針對該規範所給予的解釋是具理由否決申請。
Respondeu aquele Serviço nos termos do Ofício n.º 101090009/DTJ, de 19/10/2010 que se anexa, e cujo teor se dá por reproduzido para todos os efeitos legais, do qual resulta que a interpretação que deve ser dada à norma é aquela que havia fundamento o indeferimento do pedido.
綜上所述, 及按第2157/DCP-DDP-10號報告書及2010年10月19日行政公職局第101090009/DTJ號公函所載的理據, 建議否決本訴願。
Pelo exposto, e com os fundamentos constantes da Informação n.º 2157/DCP-DDP/10 e de Ofício n.º 101090009/DTJ, de 19/10/2010, da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, propõe-se o indeferimento do presente recurso hierárquico.”
5. Transcreve-se, de seguida, o entendimento da Direcção dos Serviços de Administração e Função Pública, consubstanciado no referido Ofício n.º 101090009/DTJ, de 19/10/2010 :
“1. No âmbito da legislação anterior que regulava esta matéria (Decreto-Lei n.º 91/85/M, de 26 de Outubro) era entendimento que a atribuição do direito a uma viagem de férias estava condicionada à efectiva permanência de três anos no exterior. Deste modo a Administração Pública apenas suportava os encargos de uma viagem durante o curso.
2. Neste sentido, a redacção do actual artigo 242º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau foi adoptada como intuito de tornar aquela interpretação inatacável, resultando inequivocamente do seu n.º 1 que :
“Os descendentes dos funcionários e agentes da Administração Pública, que confiram direito a subsídio de família e que frequentem cursos no exterior de nível médio oi superior, oficialmente reconhecido, não leccionados em Macau no sistema oficial de ensino, têm direito a passagens :
a) De Macau para o local onde seja ministrado o curso ;
b) Para uma vinda a Macau e regresso ao local de estudo, após 2 anos de permanência no exterior ;
c) Regresso a Macau”
3. Assim, infere-se através desta disposição legal que os descendentes têm somente direito a uma viagem de férias (após a permanência de 2 anos no exterior), independentemente da duração do curso, ou seja, se já tiver gozado este direito uma vez, não pode vir a gozá-lo novamente.”
Mais se informa a V. Exa. que, nos termos do disposto na subalínea (2) da al. 8) do art. 36º da Lei n.º 9/1999, republicada pelo Despacho do Chefe do Executivo n.º 265/2004 e com as alterações introduzidas pela Lei n.º 9/2009, e no art. 25º, n.º 2 al. a) do Código de Processo Administrativo Contencioso, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 110/99/M, de 13 de Dezembro, do acto administrativo em apreço cabe recurso contencioso a interpor junto do Tribunal de Segunda Instancia da Região Administrativa Especial de Macau, no prazo de 30 dias a contar da data da notificação.
Com os melhores cumprimentos,
Direcção dos Serviços de Finanças, na RAEM, aos 7 de Dezembro de 2010.
P´la Directora dos Serviços,
A Coordenadora do NAJ,
XXX
IV - FUNDAMENTOS
1. O que está em causa no presente recurso é saber se o direito concedido relativo a viagem aérea de ida e volta de descendente de funcionário público a estudar no Exterior, a coberto da al. b) do n.º 1 do art. 242º do ETAPM (Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau) se concretiza apenas no gozo de uma viagem de ida e volta durante o curso ou se tal direito se renova sempre que decorridos dois anos de permanência no Exterior.
2. Dispõe o artigo 242° do DL 87/89/M de 21 de Dezembro (Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau - ETAPM) :
1. Os descendentes dos funcionários e agentes da Administração do Território que confiram direito a subsídio de família e que frequentem no exterior cursos de nível médio ou superior, oficialmente reconhecido, não leccionados em Macau no sistema oficial de ensino, têm direito a passagens:
a) De Macau para o local onde seja ministrado o curso;
b) Para uma vinda a Macau e regresso ao local de estudo, após 2 anos de permanência no exterior;
c) Regresso a Macau.
2. O encargo a suportar pelo Território tem como limite o custo da viagem de ida e regresso a Portugal, por via aérea em classe económica.
3. Estamos em crer que assiste razão à recorrente.
Está em causa a interpretação da norma contida no artigo 242º, n.º 1, b) do ETAPM.
Em obediência ao disposto no artigo 8º do C. Civil procuraremos captar o seu sentido a partir do elemento gramatical e lógico, da letra e do espírito da lei, reconstituindo o pensamento legislativo numa perspectiva sistemática, histórica e teleológica, sendo certo que a interpretação não deve cingir-se à letra a lei, mas reconstituir o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
Não se deixa de anotar que um argumento usado pela Direcção de Finanças é o facto de se indeferir o pagamento da viagem solicitada com base em parecer de Direcção dos Serviços de Administração Pública sem que aí se indique qualquer argumento de peso, para além do mero argumento de autoridade.
Basear-nos-emos em três linhas argumentativas.
4. Primo. A letra da lei aponta no sentido da renovação do direito com o decurso do tempo, sendo de crer que o legislador se pretendesse limitar o gozo de tal direito a uma única vez enquanto perdurassem os estudos no Exterior não teria deixado de ser explícito nesse sentido, fazendo vincar essa tónica, acentuando o sentido do numeral e não do mero artigo indefinido em relação à palavra uma.
Em lado algum se diz que esse direito só pode ser gozado uma única vez.
5. Secundo. O espírito e a intenção do legislador não se pode desligar do facto de, enquanto se incentiva a formação de quadros da RAEM no exterior, não se lhes deixa de proporcionar um contacto com as suas raízes sócio-familiares, de forma a não os desenraizar da terra-mãe e incentivar a um retorno a Macau e desenvolvimento das suas aprendizagens em prol do desenvolvimento desta sua terra. Assim se compreende que se estimule que em relação aos cursos de maior duração esses objectivos se não percam estimulando esse contacto de uma forma renovada e continuada no tempo, sob pena de se promover o desenraízamento.
É, aliás, justo que os jovens que optem por um curso de maior duração não sejam penalizados por via de um afastamento forçado em relação aos que optam por um curso de menor duração, já bastando o sacrifício do prolongamento da sua formação.
6. Tertio. O argumento histórico não deixa de pesar no sentido da interpretação que se vem delineando.
Nos termos do Decreto-Lei n.º 4/87/M, de 19 de Janeiro, tendo surgido dúvidas quanto à interpretação do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 91/85/M, de 26 de Outubro e considerando a necessidade de harmonizar o direito a passagens por conta do Território, dos descendentes de funcionários e agentes por ocasião do gozo da licença especial nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 26/85/M, de 30 de Março, com o direito a passagens, também por conta do Território, dos descendentes de funcionários ou agentes que se encontrem na situação prevista no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 91/85/M já referido, de modo a não permitir a acumulação desses direitos, tal como referido na nota preambular, estabeleceu-se no artigo 3.º, n.º 2 que o direito previsto no número anterior é utilizável, a qualquer tempo, mas uma só vez em cada período de três anos, contados desde a data do início do curso.
E o n.º 1 desse artigo determina que serão pagas pelo Território as passagens de vinda a Macau e regresso ao local onde se encontrem, dos descendentes dos funcionários e agentes da Administração do Território que confiram direito a subsídio de família, e que frequentem no exterior cursos de nível médio ou superior oficialmente reconhecido que aqui não sejam leccionados.
Da observação destas normas, defende a recorrente, no que é secundada pelo Digno Magistrado do MP, que resultava claramente que o legislador previa a renovação do direito, dizendo que o seu titular tinha direito a viagens em cada período de três anos.
Não estamos seguros desta asserção. Pensamos que o legislador não foi feliz com aquela redacção e uma coisa é certa: naquela versão teve necessidade de dizer que o direito era utilizável a qualquer tempo, mas uma só vez.
Daqui parece decorrer que se distingue entre conceder um direito em cada período de três anos e o utilizar o direito que se concede. O dizer-se que o direito se goza uma só vez, significa que o é (gozado) em cada período de três anos, porque em cada período de três anos se adquire um direito a passagens ou que esse período de três anos é um pressuposto para o direito que só pode ser gozado uma única vez durante os estudos no exterior?
O legislador não foi feliz, de facto, com a expressão utilizada.
Pensamos que da letra dessa norma nada se retira ou que ela aponta até no sentido de que quem estude no exterior tem direito a passagens, direito que se goza uma só vez, pressupondo-se um período de ausência de Macau de três anos, pois não faria sentido, sob pena de tautologia, que o legislador dissesse que em cada período de três anos se gozasse o direito uma só vez, não sendo credível que em cada três anos se atribuísse mais do que um direito ou que o direito a uma passagem pudesse ser desdobrada.
Mas já noutra perspectiva o que se pode retirar da evolução legislativa verificada é que o legislador na redacção do artigo 242º do ETAPM, continuando a ser infeliz na falta de clareza quanto à formulação utilizada, deixou cair duas condicionantes: por um lado, que o direito era utilizável, antes estabelecendo o direito, a par da ida no início e regresso no final do curso, a uma vinda a Macau e regresso ao lugar dos estudos, após dois anos de permanência no exterior; por outro lado, que o direito era gozado uma só vez.
Ora esta alteração inverte o sentido daquilo que anteriormente se definia. Não pode agora a Administração vir dizer que o direito não é renovável porque também o não era anteriormente. Agora, o que temos, é uma norma nova que inculca no sentido de um novo regime. Dois anos após a permanência no exterior adquire-se o direito a uma vinda paga a Macau.
Esta interpretação coaduna-se com uma evolução legislativa que vai no sentido de uma compreensão teleológica e sistemática da norma, aliás, como já acima assinalado.
O legislador reduziu o período de três para dois anos, sendo sensível às razões de uma reaproximação sócio-familiar com a terra mãe e não podendo ignorar a normalidade da duração dos cursos, em particular dos cursos superiores. Se de dois anos, anteriormente, não se adquiria direito a viagem de férias, chamemos-lhe assim; agora também não, na medida em que se o estudante concluir o curso tem direito ao regresso pago, só assim não sendo se reprovar. Se o curso é de três anos, passa agora, ao fim de dois anos, a ter a viagem de férias pagas. Se o curso é de quatro (caso maioritário dos cursos superiores face ao acordo de Bolonha), continua apenas a ter direito a uma viagem de férias, já que no quarto ano terá direito ao regresso. Se o curso é de cinco, enquanto anteriormente não tinha direito em qualquer interpretação a uma segunda viagem, passa agora a tê-la - o legislador não podia deixar de ignorar que a questão se iria colocar com a redução do prazo para dois anos e o certo é que não estabeleceu qualquer limitação à constituição do direito que se adquire após uma permanência no exterior por dois anos.
Aliás, a interpretação para que nos inclinamos parece muito mais razoável e equilibrada, não se vendo razão para penalizar um estudante que tenha de estudar fora por cinco anos ou seis em relação a um que estude apenas por três. Situação que se assume muito mais flagrante nos casos de cursos de 6 anos - como eram os de Medicina nalguns países - , bem se podendo admitir, por mera hipótese de raciocínio, que esse curso de 6 corresponde a dois de 3 e, então, nenhuma razão haveria para não se conceder os direitos correspondentes a dois cursos consecutivos de 3 anos tirados no Exterior.
Com base nestes fundamentos e apontada argumentação interpretativa não se deixará de conceder provimento ao recurso.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao presente recurso contencioso, anulando o acto recorrido.
Sem custas por não serem devidas.
Macau, 12 de Janeiro de 2012
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Presente
Victor Manuel Carvalho Coelho
42/2011 20/20