Processo nº 446/2010
Data do Acórdão: 12JAN2012
Assuntos:
Empreitada
Incumprimento
Norma supletiva
SUMÁRIO
A norma contida no artº 784º/2 do CC tem natureza supletiva, isto é, ser susceptível de ser afastada pela vontade das partes.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 446/2010
Acordam em conferência na Secção Cível e Administrativa no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos da acção ordinária, registada sob o nº CV3-03-0005-CAO, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:
I – Relatório :
A, sociedade comercial por quotas, com sede em Macau, na Rua de Roma, nºs 84-90, r/c, NAPE, Tong Nam Ah Jardim, Bloco “B”, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 5588, com o capital social de MOP$80,000.00,
veio intentar a presente
Acção Ordinária
contra
B, sociedade comercial por quotas, com sede em Macau, na Rua Nova à Guia, nº X, r/c, matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 4213, com o capital social de MOP$1,000,000.00, com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 7.
Concluiu pedindo que seja julgada procedente por provada a presente acção.
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A Ré contestou a acção com os fundamentos constantes de fls. 110 a 119 dos autos
Concluiu pedindo que sejam julgados improcedentes os pedidos da Autora e que esta seja condenada no pedido reconvencional por si formulado.
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Este Tribunal é o competente em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam".
O processo é o próprio.
Inexistem nulidades, excepções ou outras questões prévias que obstem à apreciação "de meritis".
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Procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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II – Factos:
Dos autos resulta assente a seguinte factualidade com interesse para a decisão da causa:
Da Matéria de Facto Assente:
- A Autora é uma sociedade comercial por quotas de responsabilidade limitada que se dedica à importação, exportação, compra, venda e instalação de aparelhos electrodomésticos (alínea A) dos factos assentes).
- Estando matriculada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 5588 (doc. n.º 1 junto com a P.I.) (alínea B) dos factos assentes).
- A Ré é uma sociedade regularmente constituída em Macau, que se dedica a investimentos mobiliários, construção civil e compra e venda de imóveis (Doc. n.º 2 junto com a P.I.) (alínea C) dos factos assentes).
- A Ré celebrou com a Autora, em 8 de Novembro de 1997, dois contratos, um de fornecimento e outro de instalação de ares-condicionados da marca “C” (alínea D) dos factos assentes).
- Segundo o contrato de fornecimento do mencionado material, a Ré tinha a obrigação de suportar na totalidade o valor de aquisição dos aparelhos de ar-condicionado num total de HKD$3.300.000,00 (três milhões e trezentos mil dólares de Hong Kong) (alínea E) dos factos assentes).
- De acordo com o contrato de instalação a Ré tinha a obrigação de suportar os serviços prestados pela Autora com a instalação dos referidos aparelhos de ar-condicionado e as despesas inerentes à instalação tudo no montante de HKD$469.586,00 (quatrocentos e sessenta e nove mil quinhentos e oitenta e seis dólares de Hong Kong) (alínea F) dos factos assentes):
- A Autora recebeu da Ré a quantia de HKD$2.970.000,00 (alínea G) dos factos assentes).
- O prazo de entrega dos aparelhos de ar condicionado pela Autora era de 20 dias contados da assinatura dos contratos (alínea H) dos factos assentes).
- Os aparelhos de ar condicionado não foram entregues na data indicada em H) supra (alínea I) dos factos assentes).
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Da Base Instrutória:
- A Autora vendeu os aparelhos de ar-condicionado conforme estipulado no contrato de aquisição a que alude a alínea D) da matéria dos factos assentes (resposta ao quesito da 1º da base instrutória).
- A Ré abandonou o projecto em causa, não tendo até à presente data concluído as obras de construção para que a Autora pudesse proceder à instalação dos aparelhos de ar-condicionado (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- A Ré parou as obras de construção em inícios de 1998 (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- A Autora fez diversas e repetidas interpelações junto da ré e esta ainda não pagou o débito ora reclamado (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- A Autora despendeu MOP$20.000,00 para pagamento dos serviços da sua mandatária judicial a título de honorários (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Os aparelhos de ar condicionado em causa foram apenas entregues em meados de Janeiro de 1998, pouco tempo antes das festividades do Ano Novo Lunar (resposta ao quesito da 11º da base instrutória).
- Por sua vez, a Ré/ Reconvinte já tinha contratado com uma outra empresa “D”, com sede na China, para a instalação dos referidos aparelhos de ar condicionado, celebrando assim um contrato de empreitada intitulado “E” (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- O preço da empreitada acordado supra ascendia a HKD4.283.495,00 (quatro milhões duzentos e oitenta e três mil quatrocentos e noventa e cinco dólares de Hong Kong) a ser pago pela empresa acima referida no quesito 15º (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
- A empresa D apenas efectuou o pagamento à Ré/ Reconvinte no valor de HK$2.141.735,00 (dois milhões cento e quarenta e um mil setecentos e trinta e cinco dólares de Hong Kong) (resposta ao quesito da 17º da base instrutória).
- A Ré/ Reconvinte havia procedido ao pagamento de equipamentos no valor de HKD2.970.000,00 (dois milhões novecentos e setenta mil dólares de Hong Kong) (resposta ao quesito da 18º da base instrutória).
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III – Fundamentos:
Cumpre analisar os factos e aplicar o direito.
As questões colocadas perante o Tribunal e que interessam para a decisão sobre o mérito da causa dizem respectivamente respeito a:
1. Natureza das relações estabelecidas entre as partes;
2. Incumprimento contratual;
3. Responsabilidade das partes; e
4. Litigância de má fé.
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Natureza das relações estabelecidas entre as partes
Conforme os factos assentes, aliás, reconhecidos pelas partes, em 8 de Novembro de 1997, entre as mesmas foram celebrados dois contratos um dos quais para o fornecimento de aparelhos de ar condicionado da marca “C” e outro para a instalação destes mesmos aparelhos.
Além disso, ficou assente que a Ré, por força de um contrato de empreitada celebrado anteriormente com uma terceira entidade, estava obrigada a instalar os referidos aparelhos de ar condicionado.
Da conjugação desses factos, pode-se concluir que estão em causa um contrato de compra e venda e um contrato de sub-empreitada sendo a Autora vendedora e sub-empreiteira a Ré compradora e empreiteira ou, eventualmente, também sub-empreiteira respectivamente.
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Incumprimento contratual
A Autora intentou a presente acção porque entende que a Ré não tinha cumprido as obrigações resultantes dos contratos acima referidos. Conforme a Autora, a Ré apenas pagou parte do preço dos aparelhos de ar condicionado por si fornecidos e abandonou o projecto sem concluir as obras de construção que permitiriam à Autora proceder à instalação dos referidos aparelhos nos termos contratualmente fixados.
Contrariamente, a Ré alega que a Autora forneceu os aparelhos em questão apenas depois da data acordada e não facultou àquela os documentos comprovativos da entrada dos aparelhos através da alfândega chinesa o que impediu que os mesmos fossem instalados.
Uma vez que as questões suscitadas tem a ver com o incumprimento do contrato de compra e venda, por um lado, e o contrato de sub-empreitada, por outro, proceder-se-ão à análise sucessiva das alegadas violações de cada uma dos contratos, começando-se pelo contrato de compra e venda.
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Dos factos dados por assentes, verifica-se que, de facto, houve atraso na entrega dos aparelhos vendidos pela Autora. Pois, em vez de os entregar no dia 28 de Novembro de 1997 como estava contratualmente estipulado, a Autora apenas veio a entregá-los em meados de Janeiro de 1998.
Há efectivamente mora da Autora no cumprimento da obrigação de entrega como alega a Ré.
Nos termos do artigo 793º, nº 1, do CC, “A simples mora constitui o devedor na obrigação de reparar os danos causados ao credor.”
Uma vez que a Ré baseou o seu pedido reconvencional no facto de essa mora e a falta de entrega de documentos relativos à importação dos aparelhos de ar condicionado fizeram com que estes aparelhos não pudessem ser instalados, a apreciação da relevância da mora da Autora será feita em sede da análise do alegado incumprimento do contrato de sub-empreitada.
No que concerne à obrigação de pagamento que impende sobre a Ré, provou-se que esta tinha apenas pago parte do preço convencionado apesar de os aparelhos em questão já terem sido entregues.
Dispõe o artigo 766º, nº 1, do CC que “Na falta de estipulação ou disposição especial da lei, o credor tem o direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da obrigação ...”
Por sua vez, estipula o artigo 794º, nº 1, do CC que “O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.”
Ora, não havendo nada convencionado entre as partes quanto ao prazo do pagamento e estando provado que a Autora fez diversas e repetidas interpelações junto da Ré e esta ainda não pagou o débito reclamado, é manifesto que a obrigação de pagamento há muito que venceu devendo a Ré ser condenada a pagar a parte do preço em falta.
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No que diz respeito ao contrato de sub-empreitada, dos factos provados resulta claro que a instalação dos aparelhos de ar condicionado dependia da conclusão das obras de construção a cargo da Ré. Contudo, esta parou as obras em questão no início de 1998 tendo, entretanto, abandonado o respectivo projecto.
É, assim, manifesto que a prestação que cabia à Autora no âmbito do contrato de sub-empreitada se tornou impossível por facto imputável apenas à Ré.
É que, num primeiro momento, quando a Ré parou as obras de construção, a mesma incorreu em mora porque não praticou os actos necessários para que a Autora pudesse cumprir a sua obrigação de instalação dos aparelhos – cfr. artigo 802º do CC. Num segundo momento, ao abandonar o projecto em questão, a Ré fez com que a Autora ou quem quer que fosse jamais pudesse instalar os mesmos aparelhos.
Já a mora da Autora na entrega dos aparelhos de ar condicionado em nada afectou a possibilidade de estes mesmos aparelhos serem instalados. Com efeito, os mesmos nunca poderiam ter sido instalados ainda que tivesse sido cumprido o prazo de entrega pelo simples facto de a instalação não podia ser feita antes da conclusão das obras a cargo da Ré.
Ademais, nada ficou provado quanto à alegada obrigação de entrega dos documentos relativos à importação dos aparelhos de ar condicionado e ao seu incumprimento.
Pelo que, não pode proceder a pretensão da Ré.
Nos termos do artigo 779º, nº 1, do CC, “A obrigação extingue-se quando a prestação se torna impossível por causa não imputável ao devedor.”
Assim, fica a Autora exonerada da obrigação de instalação a que estava adstrito.
Em princípio, por força disso, a Ré fica também desonerada da obrigação resultante do contrato de sub-empreitada. Pois, conforme o artigo 784º, nº 1, do CC “Quando no contrato bilateral uma das prestações se torne impossível, fica o credor desobrigado da contraprestação ...”
Porém, “Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação ...” – cfr. artigo 784º, nº 2, do CC.
Ora, como foi já referido, a prestação da Autora tornou-se impossível por facto imputável apenas à Ré. Assim, deve a Ré cumprir a sua obrigação de pagar o preço da sub-empreitada.
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Responsabilidade das partes
Flui do acima exposto que a frustração do contrato de sub-empreitada é da exclusiva responsabilidade da Ré. Pelo que, não assiste a esta qualquer direito de indemnização.
No que diz respeito aos direitos da Autora, ter-se-á que analisar um por um os pedidos por ela formulados.
Nenhuma dúvida se suscita acerca da obrigação da Ré de lhe pagar o remanescente do preço dos aparelhos de ar condicionado no valor de HK$330.000,00 (HK$3.300.000,00 – HK$2.970.000,00) bem como o preço da sub-empreitada no valor de HK$469.586,00.
Quanto aos juros, resulta dos factos assentes que a Autora por diversas vezes interpelou a Ré a pagar o respectivo preço.
Conforme o artigo 793º, nº 1, e 794º, nº 1, do CC acima transcritos, a Ré fica obrigada a reparar os danos causados à Autora pela falta de pagamento dos preços a partir do momento da interpelação feita por esta última.
Nos termos do artigo 795º, nº 1, do CC, “Na obrigação pecuniária a indemnização corresponde aos juros a contar do dia da constituição em mora.”
Por sua vez, dispõe o artigo 795º, nº 2, do CC que “Os juros devidos são os juros legais …”
Sucede que nada foi invocado e, consequentemente, provado acerca das datas em que as referidas interpelações foram feitas. Assim, a única data em que se pode basear para determinar o termo inicial para a contagem dos juros acima referidos é a da citação da Ré a qual ocorreu em 5 de Fevereiro de 2004(cfr. fls 68).
Pelo que, deve a Ré pagar à Autora juros legais calculados sobre o valor de HK$799.586,00 (HK$330.000,00 + HK$469.586,00) a partir de 6 de Fevereiro de 2004.
Finalmente, no que concerne aos honorários pagos pela Autora por causa da presente acção, não obstante estar provado que a Autora despendeu a quantia de MOP$20.000,00, por não se afigurar de incluir dentro da indemnização prevista pelo artº 562º, nº 1, do CC, improcede o respectivo pedido sem prejuízo da procuradoria a que a Autora tem direito nos termos do regime das custas – cfr. Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 23 de Maio de 2002.
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Litigância de má fé
Conforme a Ré, a Autora deve ser condenada por litigância de má fé uma vez que alegou factos que não correspondem à verdade nomeadamente negando que alguma vez tinha recebido as cartas enviadas por aquela e omitindo que nunca tinha entregue os documentos alfandegários àquela.
Porém, não ficaram provados os respectivos factos alegados pela Ré. Assim, na falta desses factos não se pode concluir que a Autora litigou de má fé.
A Autora também veio pedir a condenação da Ré como litigante de má fé por alegadamente esta ter afirmado falsamente que tinha enviado cartas à Autora, que a entrega dos aparelhos tinha sido feito fora do prazo e que houve cumprimento defeituoso nessa entrega.
Da mesma forma, não se provaram os factos respeitantes à alegada má fé da Ré. Pelo que, também não se pode afirmar que a Ré ligitou de má fé.
Nestes termos, julga-se não verificada a alegada litigância de má fé.
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IV – Decisão (裁 決):
Em face de todo o que fica exposto e justificado, o Tribunal julga parcialmente procedente a acção e totalmente improcedente a reconvenção e, em consequência, decide:
1. Condenar a Ré, B, a pagar à Autora, A a quantia de HK$799.586,00 (setenta e noventa e nove mil, quinhentos e oitenta e seis dollares de Hong Kong);
2. Condenar a Ré a pagar à Autora juros legais calculados sobre o valor de HK$799.586,00 a partir de 6 de Fevereiro de 2004 até integralmente paga a quantia devida;
3. Absolver a Ré dos restantes pedidos formulados pela Autora; e
4. Absolver a Autora dos pedidos reconvencionais formulados pela Ré.
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據上論結,本法庭裁定訴訟理由部份成立及反訴理由不成立,裁決如下:
1. 判處被告B,向原告A支付總金額為港幣799,586.00元 (柒拾玖萬玖千伍佰捌拾陸元正);
2. 判處被告向原告支付港幣799,586.00元(柒拾玖萬玖千伍佰捌拾陸元正)自2004年2月6日起計之法定利息,直至完全付清為止;
3. 開釋原告針對被告提出的其他請求;
4. 開釋被告針對原告的全部反訴請求。
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Custas pelas Autora e Ré na proporção dos respectivos decaimentos.
訴訟費用由各原告及被告按勝負比例分擔。
Registe e Notifique.
依法作出通知及登錄本判決。
Não se conformando com o decidido, veio a Ré B recorrer da mesma concluindo que:
1. Errou a Sentença recorrida pelo facto de não ter tirado qualquer conclusão da provada mora da Recorrida, porquanto esta apenas forneceu os aparelhos em data posterior à acordada.
2. Põe-se também em causa o facto de não ter considerado que os dois contratos aqui em discussão estarem interligados.
3. Na verdade a mora da Recorrida foi, ao contrário do decidido, decisiva no alegado incumprimento do contrato por parte da aqui Recorente.
4. Tendo decidido que a Recorrida não chegou a instalar quaisquer aparelhos de ar-condicionado não poderia a Sentença recorrida condenar a ora Recorrente no pagamento do montante de HKD$ 469,586.00 (quatrocentos e sessenta e nove mil, quinhentos e oitenta e seis dólares de Hong Kong), que foi acordado como contrapartida da prestação dessa instalação, e que integra o valor total peticionado de 799,586.00 (setecentos e noventa e nove mil, quinhentos e oitenta e seis dólares de Hong Kong) e que corresponde totalmente ao valor em que foi condenada a aqui Recorrente.
5. Sendo a relação contratual entre as partes também um contrato de empreitada uma das obrigações que incumbia à Recorrida era a de “praticar os actos compreendidos no mandato (leia-se, no contrato), segundo as instruções do mandante” (cfr. artigo 1.087º, al. a), do CC, aqui aplicável por remissão do artigo 1.082º do mesmo código).
6. Errou o Tribunal a quo ao não ter levado em linha de conta na douta decisão proferida o que foi estipulado pelas partes no contrato celebrado “Se o projecto não for terminado no prazo de três meses por culpa da parte A (ora Recorrente), mesmo assim a Parte A é obrigada a pagar as despesas de instalação, material e equipamentos que foram efectivamente concluídos” (na versão original Chinesa com a seguinte redacção: “10.3 如因甲方導致工程不能在3個月內完工,甲方仍需清已完成之工程,材料及設備之款項。”) (vide Doc. N.º 2 junto à Contestação).
7. Não tendo sido concluídos quaisquer serviços de instalação - como ficou provado - considera a Recorrente que o pedido efectuado pela Recorrida a este respeito deveria ter sido julgado improcedente, ao invés do que, a final, veio a ser decidido pelo Tribunal a quo.
8. Por outro lado, à luz dos ditames do Código Civil, o Tribunal a quo deveria ter legitimado a conduta da Recorrente de recusar-se a pagar à Recorrida a retribuição que ao caso competia (cfr. artigos 1.093º, al. b), e 422º, n.º 1, ambos do CC), norma que deveria ter sido aplicada.
9. Ainda que, em teoria, se possa invocar que a Recorrente não atribuiu ao incumprimento da Recorrida o efeito de legitimar a excepção de não cumprimento, sempre se dirá que os factos que consubstanciam tal excepção foram alegados oportunamente e que o Tribunal não estava vinculado à qualificação jurídica que as partes dão aos factos submetidos à apreciação jurisdicional- tal como V. Exas. já doutamente acordaram4.1
10. Decidindo da forma como decidiu, i.e., condenando a Recorrente a pagar o montante de HKD$ 469,586.00 (quatrocentos e sessenta e nove mil, quinhentos e oitenta e seis dólares de Hong Kong), correspondente ao valor do contrato de instalação dos aparelhos de ar-condicionado, sem que - como ficou provado - as obrigações da Recorrida tenham sido cumpridas, parece tal decisão enfermar ou, pelo menos, e mais uma vez ressalvado o devido respeito, legitimar um clamoroso e ilícito enriquecimento sem causa da Recorrida, o que é vedado pelos artigos 467º e seguintes do CC, e deveria ter sido atendido pelo Tribunal a quo, cuja decisão é contrária aos ditames do referido instituto.
11. A decisão recorrida errou ao não ter considerado que a Recorrida deveria ter provado que, apesar da mora, tinha o material disponível para entrega na data acordada (cfr. resposta ao quesito 19º da douta base instrutória), que o material apenas pôde ser entregue posteriormente porque as obras estavam atrasadas (cfr. resposta ao quesito 20º da douta base instrutória), que o adiamento da entrega foi solicitado pela Recorrente (cfr. resposta ao quesito 21º da douta base instrutória) ou que foi face à solicitação da Recorrente e ao motivo por esta invocado que a Recorrida entregou os aparelhos de ar-condicionado muito para além da data acordada (cfr. resposta ao quesito 22º da douta base instrutória).
12. A apreciação das consequências da mora da Recorrida não foram correctamente analisadas pelo Tribunal a quo que, pura e simplesmente, as considerou irrelevantes.
13. As respostas dadas pelo douto Tribunal aos quesitos 12º, 13º e, em particular, 17º da douta base instrutória, devem ser apreciadas de forma diferente em face de toda a documentação existente.
14. Até porque, existindo mora por parte da Recorrida, forçoso seria o Tribunal considerar que existia uma relação de causalidade entre facto e prejuízo, isto é, entre o atraso no fornecimento dos aparelhos de ar-condicionado e o lucro cessante decorrente do pagamento apenas parcial a que se refere o quesito 17º da douta base instrutória, até porque se a Recorrente se viu impedida de receber os aparelhos na data indicada, ficou prejudicado o contrato de empreitada.
15. Por outro lado, o Tribunal a quo ter considerado, até por ser um facto público e notório, que apenas com os documentos alfandegários seria possível instalar os aparelhos no local da obra, devendo, a final, ter concluído pelo cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por parte da Recorrida.
16. Sem prejuízo do já concluído e em face do exposto, a Recorrente pugna pela procedência do pedido reconvencional, por mor da mora da Recorrida na entrega dos aparelhos que causaram prejuízos à Recorrente.
17. Finalmente, errou a decisão, na medida em que condenou ao pagamento de juros desde a data da citação.
18. Como tem sido considerado por Vossas Excelências, apenas quando existe dívida líquida, certa ou exigível são devidos juros.
19. O Mmo. Juiz a quo deveria ter considerado que a citação não configuravam uma interpelação para cumprir, nos termos do artigo 794º do CC.
20. Apenas com a prolação da sentença, a prestação em causa - e no caso de ser julgado improcedente o recurso no restante, é líquida, certa e exigível.
21. Nesta matéria a decisão recorrida deveria ter aplicado e tomado em consideração os números 2 do artigo 793º, 4 do artigo 794º, 1 do artigo 795º, todos do CC e, a alínea a) do número 1 do artigo 175º, o número 1 do artigo 678º e o artigo 686º, estes todos do CPC; In iliquidis not fit in mora.
Nestes termos, nos melhores de direito, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências deverá ser julgado procedente o recurso, revogando-se a Sentença que condenou a Recorrente a pagar à Recorrida o montante de HKD 330,000.00 relativos ao contrato de compra e venda e de HKD 459,586.90 relativos ao contrato de sub-empreitada e, bem assim, ao pagamento dos juros sobre aquele montante a partir da citação, substituindo-se por outra que absolva a Recorrente do pedido, e que condene a Recorrida ao pagamento dos lucros cessantes da Recorrente ou, caso assim não se entenda - o que se concede por cautela de patrocínio - seja a Recorrente apenas condenada no pagamento de juros a contar do trânsito em julgado da decisão que ponha termo ao presente processo.
Fazendo assim, Vossas Excelências
A Costumada e Sã Justiça!
Nada respondeu a Autora.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Conforme resulta do disposto nos artºs 563º/2, 567º e 589º/3 do CPC, são as conclusões do recurso que delimitam o seu objecto, salvas as questões cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e as que sejam de conhecimento oficioso.
A recorrente questiona a matéria de facto dada assente em primeira instância, impugnando as respostas dadas aos quesitos 11º, 12º, 13º, 17º, 19º, 20º, 21º, 22º.
O CPC estabelece no seu artº 599º, sob a epígrafe “ónus do recorrente que impugne a decisão de facto” que:
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
Ora, conforme resulta do Acórdão do Colectivo que decidiu a matéria de facto, as respostas aos quesitos fundamentam-se na convicção do Tribunal resultante da análise crítica e comparativa dos documentos juntos aos autos, e dos depoimentos das testemunhas inquiridas – cf. fls. 231v dos presentes autos.
Todavia, ao impugnar a matéria de facto, apesar de ter especificado quais os pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados, a recorrente limita-se a dizer vagamente que o Tribunal a quo errou e que as respostas devem ser apreciadas de forma diferente em face de toda a documentação existente.
Obviamente não foi dado cumprimento integral ao disposto no citado artº 599º, pois ai exige expressamente a especificação, sob pena de rejeição, de quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
Não tendo sido cumprido o ónus de especificação, não nos resta outra alternativa que não seja a de rejeição do recurso na parte que impugnou a matéria de facto.
Então avancemos.
Em face das conclusões na petição de recurso, são em síntese as seguintes questões de direito levantadas pela ora recorrente:
1. Da irrelevância dada pela sentença recorrida à mora da Autora na entrega dos aparelhos de ar-condicionado;
2. Da indevida condenação do pagamento do preço da empreitada/subempreitada
3. Do lucro cessante;
4. Do cumprimento defeituoso por não entrega dos documentos alfandegários; e
5. Da contagem dos juros.
Apreciemos.
1. Da irrelevância dada pela sentença recorrida à mora da Autora na entrega dos aparelhos de ar-condicionado;
Para a recorrente, a sentença recorrida errou pelo facto de não ter tirado qualquer conclusão da provada mora da recorrida, porquanto esta apenas forneceu os aparelhos em data posterior à acordada.
Não é verdade que a sentença não tenha tirado qualquer conclusão da provada mora da recorrida, uma vez que como vimos na sentença recorrida, o Tribunal a quo analisou a consequência jurídica da mora da Autora na entrega dos aparelhos.
Ao contrário do que alegou a recorrente, o Tribunal apreciou globalmente as atitudes de ambas as partes no cumprimento dos seus deveres contratuais no âmbito do contrato de empreitada.
Ora, o plano de fundo das coisas é que, para além de compra e venda dos aparelhos de ar-condicionado, entre a Ré, ora recorrente, e a Autora, ora recorrida, foi celebrado um contrato de empreitada ou subempreitada, nos termos do qual, a Autora deve instalar nos imóveis, que no momento da celebração do contrato se encontravam ainda em construção, os aparelhos de ar-condicionado objecto daquele contrato de compra e venda.
A este propósito, diz a sentença recorrida que num primeiro momento, quando a Ré parou as obras de construção, a mesma incorreu em mora porque não praticou os actos necessários para que a Autora pudesse cumprir a sua obrigação de instalação dos aparelhos e que num segundo momento, ao abandonar o projecto em questão, a Ré fez com que a Autora ou quem quer que fosse jamais pudesse instalar os mesmos aparelhos.
Salienta ainda que já a mora da Autora na entrega dos aparelhos de ar-condicionado em nada afectou a possibilidade de estes mesmos aparelhos serem instalados e com efeito, os mesmos nunca poderiam ter sido instalados ainda que tivesse sido cumprido o prazo de entrega pelo simples facto de a instalação não podia ser feita antes da conclusão das obras a cargo da Ré.
Só que a recorrente, nas suas alegações, procurou ignorar estas circunstâncias e limitou-se procurar sustentar o seu pedido reconvencional com fundamento na mora da Autora, ou seja, procurar estabelecer o nexo de causalidade entre o atraso de entrega dos aparelhos e o facto de a empresa D apenas ter-lhe efectuado o pagamento no valor de HKD2.141.735,00, e não o valor de HKD4.283.495,00, conforme o alegadamente acordado entre a Ré e aquela outra empresa.
Todavia, ao contrário do que assim defende a recorrente, o facto por ela alegado e posteriormente submetido ao julgamento, sob o quesito 17º, que tem o teor de “em face do atraso provocado pela Autora no fornecimento e da não entrega da documentação alfandegária necessária, a empresa D, através da sua subsidiária de Macau, denominada “Kam On Trading Company Limited” apenas efectuou o pagamento à Ré/Reconvinte no valor de HKD2.141.735,00?”, ficou apenas provado que “a empresa D apenas efectuou o pagamento à Ré/Reconvinte no valor de HKD2.141.735,00”.
Ou seja não ficou provado o facto demonstrativo do alegado nexo de causalidade.
Assim, não tendo sido os danos consubstanciados no não recebimento da totalidade do preço comprovadamente causados pela mora da Autora, naturalmente não tem a Autora a obrigação de reparar esses danos.
Assim, andou bem o Tribunal a quo neste aspecto uma vez que apontou a razão da não atribuição da relevância à mora da Autora na entrega dos aparelhos, nomeadamente para efeitos de indemnização pelos danos alegadamente sofridos nas relações entre a Ré e aquela outra empresa..
Aliás aqui está a conclusão correcta que a sentença recorrida retirou da mora da Autora.
2. Da indevida condenação do pagamento do preço da empreitada/subempreitada
Pela sentença recorrida, a Ré ora recorrente foi condenada no pagamento à Autora do preço da subempreitada de instalação dos aparelhos de ar-condicionado, pois o Tribunal a quo entende que tendo-se a instalação tornado impossível por facto imputável apenas a Ré, deve assim ser a Ré a cumprir a sua obrigação de pagar o preço da subempreitada, por força do disposto no artº 784º/2 do CC.
Para a Ré ora recorrente, o Tribunal a quo andou mal por não ter levado em conta a cláusula 10.3 do contrato de subempreitada, nos termos do qual 如因甲方導致工程不能在3個月內完工,甲方仍需清已完成之工程,材料及設備之款項 (cuja tradução em português pode ser “se por razões imputáveis à Parte A as obras não puderem ser concluídas no prazo de 3 meses, a Parte A tem a obrigação de pagar as despesas resultantes da realização da parte das obras entretanto concluída e dos materiais e equipamentos.”).
Ora, o princípio da liberdade contratual consagrado no artº 399º do CC comporta, como um dos seus corolários, a possibilidade de as partes, na regulamentação convencional dos seus interesses, se afastarem dos contratos típicos ou paradigmáticos disciplinados na lei ou de incluírem em qualquer destes contratos paradigmáticos cláusulas divergentes da regulamentação supletiva contida no Código Civil – Pires Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª Ed. pág. 355.
In casu, por um lado, por vontade das partes, foi convencionada qual será a consequência jurídica da impossiblidade da realização das obras de instalação por razões imputáveis à Ré, enquanto credor das prestação.
Mas por outro lado, existe a norma na lei dizendo que nos contratos bilaterais, se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, não fica este desobrigado da contraprestação – artº 784º/2 do CC.
Portanto urge saber agora se a norma contida no artº 784º/2 do CC em que se apoiou a decisão do Tribunal a quo tem natureza imperativa ou supletiva, isto é, ser ou não susceptível de ser afastada pela vontade das partes.
A própria norma não comporta as menções demonstrativas da nautreza imperativa ou supletiva, tais como as “não pode ......”, na falta de estipulação das partes......”, ou “excepto se outro for o regime convencionado......”, há que averiguar a sua natureza através da análise dos interesses em jogo e da eventual existência de interesse da protecção de uma determinada parte contraente que justifica limitações à autonomia privada.
Trata-se de uma norma que tem por objectivo regular as relações contratuais entre duas partes, nelas estando em jogo interesses patrimoniais.
Por outro lado, não vimos como é quê uma das partes por ser por exemplo mais fraca ou menos experiente merece maior protecção.
Assim sendo, não vimos razões para não considerar como supletiva a norma contida no artº 784º/2 do CC, em que se apoiou a condenação ora posta em crise pela recorrente.
Sendo supletiva que é, prevalece in casu a invocada cláusula que estipula as consequências da impossibilidade da conclusão das obras por causa imputável à Ré.
Ficou provado que as obras de instalação do ar-condicionado se tornaram impossíveis.
O que significa que não foram realizadas quaisquer obras visando à instalação dos aparelhos.
O que por sua vez não deu lugar à qualquer contraprestação a cargo da Ré, pois aquela cláusula estipula que a Ré tem obrigação de apenas pagar o preço da parte das obras entretanto realizada e dos materiais e equipamentos utilizados.
Não é de manter assim esta condenação da Ré no pagamento à Autora do preço da empreitada/subempreitada.
3. Do lucro cessante
A recorrente entende que foi por mora da Autora na entrega dos aparelhos de ar-condicionado que ela deixou de receber a totalidade do preço acordado no contrato que celebrou com a empresaD.
Pelo que ficou decidido no ponto 1, é de improceder esta argumentação, uma vez que não foi demonstrado o nexo da causalidade entre os dois factos.
4. Do cumprimento defeituoso por não entrega dos documentos alfandegários
Aqui a recorrente pretende tirar a consequência de um facto por ela alegado mas não provado nos presentes autos.
Pretende dizer ser um facto público e notório que apenas com os documentos alfandegários seria possível instalar os aparelhos no local das obras.
Ora, diz o artº 434º/1 do CPC que se consideram como factos notórios os factos que são do conhecimento geral.
Não parece que assim seja o facto alegado pela Ré, ora recorrente.
O que não lhe exonera o seu ónus de prova.
Improcede assim esta parte do recurso.
5. Da contagem dos juros
Na primeira instância, foi a Ré, ora recorrente, condenada no pagamento à Autora dos juros legais calculados a partir de 06FEV2004 até ao integral pagamento da quantia devida.
Para a recorrente, por não ser a quantia peticionada líquida, certa e exigível, os juros legais não devem ser contados a partir da citação.
Pelo que foi dito no ponto 2 sai fora a condenação dos juros sobre o preço de empreitada uma vez que o recurso dessa condenação foi por nós julgado procedente.
Só nos debruçamos sobre os juros da condenação sobre o valor de HKD330.000,00.
Ser certa e líquida uma obrigação quando for determinada e o seu montante for quantificado e exigível quando vencida.
In casu, o valor de HKD330.000,00 corresponde ao remanescente do preço dos aparelhos de ar-condicionado, sendo exactamente o valor já ab initio peticionado pela Autora na petição inicial.
Não se vê porque é que não é certa, líquida e exigível a dívida em causa.
Sem mais delonga, é de julgar procedente esta parte do recurso.
Tudo visto, resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso interposto pela Ré, revogando a sentença recorrida na parte que condenou a Ré no pagamento de HKD469.586,00 e juros legais sobre esse valor, mantendo as restantes partes da sentença recorrida.
Custas pela Ré pelo decaimento.
Notifique.
RAEM, 12JAN2012
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
4 Neste sentido, entre muitos outros, veja-se o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância número 257/2004, de 14 de Dezembro de 2004, in http://www.court.gov.mo/p/pdefault.htm; e, a título meramente comparativo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça Português, de 26 de Setembro de 2002, Rev. N.º 2144/02-7-°: sumários, 9/2002.
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Ac. 446/2010-1