Processo nº 772/2011 Data: 19.01.2012
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Crime de tráfico de estupefaciente.
Insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
Qualificação juridica.
SUMÁRIO
1. O vício de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão apenas ocorre “quando o Tribunal não se pronuncia sobre toda a matéria objecto do processo.
2. Para a subsunção no crime de “tráfico”, e seja ele o do art. 8° ou 11° da Lei n.° 17/2009, basta a “detenção de estupefaciente fora dos casos previstos no art. 14°”, que, como se sabe, pune o “consumo” ou a “detenção para consumo” (próprio).
Assim, e provado estando que o estupefaciente que a recorrente detinha “não era para o seu consumo”, evidente é que integra a sua conduta a prática de 1 crime de “tráfico”.
3. Verificando-se que em causa está uma quantidade líquida de 3,632g de Ketamina, e sendo que esta excede em cinco vezes a dose diária deste estupefaciente (0,6g), adequada não é a qualificação da conduta da arguida como a prática de 1 crime de “tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, mas sim de 1 crime de “tráfico”, p. e p. pelo art. 8°.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 772/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se condenar A (XXX), como autora de 1 crime de “tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos; (cfr., fls. 541-v a 542 que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou e, a final, produziu as conclusões seguintes:
“1. De acordo com os pontos 8 a 10 dos factos provados constantes a fls.6 e 7 do acórdão, indicou-se expressamente que: “Em seguida, agentes da Polícia Judiciária encontraram, no cacifo da arguida A, um saco contendo matéria cristalina de cor branca (vd. auto de apreensão, fls. 49 dos autos). Após feito o exame laboratorial, confirmou-se que a supracitada matéria cristalina continha Ketamina, substância abrangida pela Tabela II-C da Lei n.º17/2009, com peso líquido de 4.045g (feita a análise quantitativa, verificou-se que continha 89.80% de Ketamina, com peso de 3.632g). Os supracitados estupefacientes foram adquiridos pela arguida A junto a um indivíduo não identificado, mas não para a finalidade do seu consumo pessoal.”
2. O cometimento de cada crime tem o certo fim, por exemplo, na prática de crime de tráfico, as drogas detidas pelo agente são para vender ou fornecer a outra pessoa.
3. Contudo, no presente caso, o Tribunal recorrido não apurou qual a finalidade dos estupefacientes adquiridos pela recorrente junto a um indivíduo não identificado, mas sim os ditos estupefacientes não eram para o seu consumo próprio.
4. Pelo que, não pode o Tribunal recorrido vir a presumir que todos esses estupefacientes eram para vender por terem sido adquiridos pela recorrente junto a um indivíduo não identificado mas não para a finalidade do seu consumo pessoal.
5. Assim sendo, o Tribunal recorrido padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provado.
6. Ao mesmo tempo, também contra o princípio da “presunção de inocência” previsto no art.º 29º, n.º2 da Lei Básica.
7. Pelo que, segundo o douto acórdão recorrido que condenou a recorrente pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade, o qual violou efectivamente o dispositivo e o espírito legislativo do art.º 11º, n.º 1 e art.ºs 7º a 9º da Lei n.º17/2009, devendo a recorrente ser absolvida do respectivo crime.
8. Por outro lado, ao aplicar-se correctamente o princípio da presunção de inocência, deve a recorrente também ser absolvida do respectivo crime.
9. Caso assim não for entendido pelo Tribunal, deve o presente processo ser devolvido ao Tribunal Judicial de Base para nova apreciação”; (cfr., fls. 553 a 556-v e 615 a 624).
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Respondendo, afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:
“1. Independentemente do disposto nos art.º 8º e 11º da Lei n.º17/2009 ora vigente ou, dos art.º 8º e 9º do antigo Decreto-Lei n.º5/91/M, a lei pune todos os actos relativos à detenção e ao tráfico de droga.
2. Mesmo que o Tribunal a quo não tenha especificado qual o terceiro quem adquire estupefacientes junto à recorrente, nem a finalidade dos estupefacientes detidos pela recorrente, não impede a verificação do crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 11º, n.º1 da Lei n.º17/2009. Uma vez que o elemento essencial do tipo legal desse crime é a detenção ilícita de droga com quantidade diminuta que não se destina ao seu consumo pessoal.
3. De acordo com os factos provados 8º e 10º constantes respectivamente do acórdão do Tribunal a quo: “Em seguida, agentes da Polícia Judiciária encontraram, no cacifo da arguida A, um saco contendo matéria cristalina de cor branca.” e “os supracitados estupefacientes foram adquiridos pela arguida A junto a um indivíduo não identificado, mas não para a finalidade do seu consumo pessoal”, daí se pode verificar que a finalidade de detenção pela recorrente dos respectivos estupefacientes não era para o seu consumo pessoal, e isso já constituiu o acto de detenção ilícita, verificando-se assim o crime previsto no art.º 11º, n.º1 da norma vigente.
4. No acórdão recorrido nunca se referiu que os estupefacientes detidos pela recorrente se destinassem à venda, enquanto, o Tribunal Recorrido também não chegou a fazer qualquer presunção sobre isso. Pelo que, o acórdão recorrido também não violou o princípio da presunção de inocência.
5. De acordo com os autos e o acórdão recorrido, pode-se verificar que, em particular, da parte da “Convicção do Tribunal” (vd. fls. 539v e 540), tendo o Tribunal Recorrido analisado sintética e objectivamente as declarações prestadas na audiência de julgamento pelo 1º arguido, e nos termos do art.º 338º, n.º1, al. a) do Código de Processo Penal, procedido à leitura das declarações prestadas respectivamente no Ministério Público pelos 2º, 3ª e 4ª arguidos, bem como de acordo com as declarações prestadas na audiência de julgamento por um agente da Polícia Judiciária e provas tais como exames laboratórios feitos pela PJ, o Tribunal a quo já totalmente apurou e apreciou todo o objecto da causa sem qualquer omissão. Pelo que, o Tribunal a quo não padece do vício previsto no art.º 400º, n.º2, al. a) do Código de Processo Penal.
6. De facto, a motivação da recorrente não tem nada a ver com o vício previsto no art.º 400º, n.2, al. a) do Código de Processo Penal, mas sim com a interpretação jurídica dos art.º 8º e 11º da Lei n.º17/2009.
7. Na aplicação da lei, o Tribunal a quo também não violou o disposto no art.º 400º, n.º1, nem o disposto nos art.ºs 8º, n.º1 e 11º, n.º1 da Lei n.º17/2009, pelo que, a motivação da recorrente evidentemente não procede”; (cfr., fls. 575 a 577 e 625 a 632).
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Admitido o recurso, vieram os autos a este T.S.I..
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Em sede de vista emitiu o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Nada temos a acrescentar, de relevante, às doutas considerações expendidas pela Exma colega junto do tribunal “a quo” que, por si, revelam expressa, clara, suficiente e congruentemente, as razões por que, no caso vertente, não assiste qualquer razão à recorrente na sua argumentação.
Na verdade, o facto de o tribunal “a quo” ter consignado como provado ter sido encontrado no cacifo da recorrente a droga em questão, que a mesma adquirira a indivíduo não identificado é, por si só, suficiente para a condenação alcançada, já que a lei, seja o n° 1 do art° 8° da Lei 17/2009, seja o n° 1 do art° 8° do Dec Lei 5/91/M, não exige o apuramento do facto da cedência a terceiros para a verificação do tráfico de droga (de menor gravidade, no caso ), bastando-se com a mera detenção, conquanto não seja para consumo pessoal ou próprio, revelando-se, pois, desde logo, inócua a alegação da recorrente atinente a suposta ocorrência do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por se não ter apurado qual a finalidade dos estupefacientes por si adquiridos.
Por outra banda, e, no fundo, pelos mesmos motivos, o tribunal, ao contrário do pretendido pela recorrente, não careceu de “presumir” que os estupefacientes que aquela adquirira e detinha se destinavam à venda a terceiros, pela simples razão que, não carecia, em absoluto, de tal elemento para preenchimento do tipo, razão por que não faz qualquer sentido esgrimir-se com pretensa ofensa do princípio da presunção de inocência.
Tudo razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 635 a 636).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos elencados a fls. 538 a 539-v do Acórdão recorrido e que aqui se dão como integralmente reproduzidos.
Do direito
3. Vem a arguida A recorrer da decisão que a condenou como autora de 1 crime de “tráfico de menor gravidade”, p. e p. pelo art. 11°, n.° 1 da Lei n.° 17/2009, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão suspensa na sua execução por 2 anos.
No seu recurso, alega que incorreu o Tribunal a quo no vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, afirmando também que a decisão recorrida padece de “erro de direito”, mais concretamente, quanto à “qualificação jurídico-penal da sua conduta”.
Vejamos.
Quanto à “insuficiência”.
No que toca a este vício da matéria de facto, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que o mesmo apenas se verifica quando o Tribunal não emite pronúncia sobre todo o objecto do processo; (cfr., v.g. Acórdão de 02.06.2011, Processo n.° 198/2011).
E, sendo de manter este entendimento, evidente é que inexiste o imputado vício, pois que não deixou o Colectivo a quo de apreciar toda a matéria objecto do processo, emitindo pronúncia em conformidade, bastando uma leitura ao Acórdão recorrido para assim concluir.
–– Continuemos, passando agora para o “erro de direito”.
Diz a recorrente que inadequada é a decisão recorrida, pois que apenas se provou que a mesma detinha estupefaciente que não era destinado ao seu consumo, sem se explicitar se era para venda ou cedência a terceiros.
Vejamos.
Nos termos do art. 8° da Lei n.° 17/2009:
“1. Quem, sem se encontrar autorizado, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, ceder, comprar ou por qualquer título receber, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 14.º, plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a III é punido com pena de prisão de 3 a 15 anos.
2. Quem, tendo obtido autorização mas agindo em contrário da mesma, praticar os actos referidos no número anterior, é punido com pena de prisão de 4 a 16 anos.
3. Se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV, o agente é punido com pena de prisão:
1) De 6 meses a 5 anos, no caso do n.º 1;
2) De 1 a 8 anos, no caso do n.º 2”.
Estatui também o art. 11° do mesmo diploma legal que:
“1. Se a ilicitude dos factos descritos nos artigos 7.º a 9.º se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados, a pena é de:
1) Prisão de 1 a 5 anos, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos nas tabelas I a III, V ou VI;
2) Prisão até 3 anos ou multa, se se tratar de plantas, de substâncias ou de preparados compreendidos na tabela IV.
2. Na ponderação da ilicitude consideravelmente diminuída, nos termos do número anterior, deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”.
E, preceitua o art. 14° que:
“Quem consumir ilicitamente ou, para seu exclusivo consumo pessoal, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, adquirir ou detiver ilicitamente plantas, substâncias ou preparados compreendidos nas tabelas I a IV, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
Perante isto, cabe dizer que também aqui não tem a recorrente razão.
De facto, para a subsunção no crime de “tráfico”, e seja ele o do art. 8° ou 11°, basta a “detenção de estupefaciente fora dos casos previstos no art. 14°”, que, como se sabe, pune o “consumo” ou a “detenção para consumo” (próprio).
Assim, e provado estando que o estupefaciente que a ora recorrente detinha “não era para o seu consumo”, evidente é que integra a sua conduta a prática de 1 crime de “tráfico”.
–– Aqui chegados, um outro aspecto importa considerar.
Como se vê do que se deixou relatado, foi a ora recorrente surpreendida com 3,632g (líquidos) de Ketamina.
Para a qualificação da sua conduta como a prática do crime de “tráfico de menor gravidade”, necessário seria a verificação de uma “ilicitude consideravelmente diminuída”, nos termos do n.° 2 do art. 4° da Lei n.° 17/2009, ou seja, “deve considerar-se especialmente o facto de a quantidade das plantas, das substâncias ou dos preparados encontrados na disponibilidade do agente não exceder cinco vezes a quantidade constante do mapa da quantidade de referência de uso diário anexo à presente lei, da qual faz parte integrante”.
No caso, em conformidade com o dito mapa, é de 0,6g a “dose diária” de Ketamina.
Verifica-se assim que a ora recorrente detinha uma quantidade de Ketamina superior a cinco doses diárias, (que corresponde a 3g), o que afasta a aplicação do art. 11° e faz com que a sua conduta deva ser qualificada como a prática de 1 crime de “tráfico” do art. 8°, n.° 1 do D.L. em questão.
Observado que foi o contraditório, (em audiência), e podendo este T.S.I. proceder à alteração oficiosa da qualificação jurídico-penal efectuada pelo T.J.B., há pois que decidir em conformidade, mantendo-se, porém, a pena aplicada, por respeito ao estatuído no art. 399° do C.P.P.M..
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam negar provimento ao recurso, alterando-se oficiosamente a qualificação jurídico-penal operada pelo T.J.B..
Pagará a arguida 6 UCs de taxa de justiça.
Macau, aos 19 de Janeiro de 2012
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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