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Proc. nº 760/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 17 de Novembro de 2011
Descritores: Juízo de Pequenas Causas
Valor da causa
Desistência do pedido
Renúncia abdicativa
SUMÁRIO:
I- O art. 1285º, nº1 do CPC é um preceito que se determina por um duplo requisito: o do valor (proémio do nº1) e o dos fins (alíneas a) e b), do nº1).
II- O nº2, ao mandar atender ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor, para efeitos do nº1, e ao manifestar a irrelevância do fraccionamento arbitrário daquele valor com o mérito propósito de aproveitar esta forma de processo especial, apenas pretende impedir a multiplicidade de acções com valores peticionados de forma a caberem na alçada do tribunal de pequenas causas (cinquenta mil patacas) e que, se peticionados em conjunto, elevariam o valor global da pretensão com reflexos na competência do tribunal.
III- Não se pode considerar fraccionamento em sentido estrito, se o autor, que acha que o valor global do seu crédito é de $60.000,00, amputa este valor, reduzindo “ab initio” a pretensão para $50.000,00.
IV- Tal declaração contida na petição inicial deve ser considerada de renúncia abdicativa unilateral, irrevogável, não receptícia e irrecusável por banda do devedor.
V- Nesse caso, a acção deve continuar no juízo de pequenas causas, por ser o competente.
VI- A desistência do pedido implica a existência de um pedido inicial, devidamente formulado na petição inicial, mas de que o autor se despoja (total ou parcialmente) em momento posterior, quando o processo já está em marcha. Tal não é o caso sempre que o autor, muito embora se ache no direito de pedir mais, resolve logo na petição inicial pedir menos, isto é, quando formula um pedido em substância ou em valor numa dimensão menor do que aquela a cujo direito se arroga.




Proc. Nº 760/2010
(Recurso Cível e Laboral)

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.

I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, intentou no Juizo de Pequenas Causa Cíveis TJB acção contra B, pedindo que este seja condenado a pagar-lhe o montante de Mop$ 50.000,00, parte do prémio do “Concurso de Desenho Conceptual do Pavilhão de Macau” na Exposição Mundial de Xangai.

Na sua contestação, o réu excepcionou o valor da acção e o erro na forma de processo, propugnando pela sua nulidade.

Pelo despacho de fls. 69 e 70 (traduzido no anexo «Traduções» o M.mo Juiz decidiu manter o valor da acção em Mop$ 50.000,00 e julgou improcedente o erro na forma de processo suscitada pelo contestante.

É deste despacho que o réu da acção ora recorre, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
(a) “Seguem a forma de processo especial referente a pequenas causas as acções cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de primeira instância e que se destinem a qualquer um dos seguintes fins: a) A condenação no pagamento de quantia certa em cumprimento de obrigações pecuniárias.” - vd. artigo 1285.º, n. º1, al. a) do CPC -, sendo a alçada dos tribunais de primeira instância fixado em $50,000 - vd. artigo 18.º, n.º 1 da Lei n.º 9/1999;
(b) Determina, o artigo 1285.º, n.º 2 do CPC, que “Para os efeitos do n.º 1 (…) atender-se-á, na fixação do valor da causa, ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor, sendo irrelevante o seu fraccionamento arbitrário com o mero propósito de aproveitar esta forma de processo especial.” (sublinhado nosso).
(c) O Autor entende, no artigo 16.º da sua petição inicial, ser o valor global da relação jurídica, de que emerge o seu pedido, o valor correspondente à dívida de um terço do prémio monetário no valor de $180,000.00, ou seja, uma divida no valor de $60,000.00;
(d) Não existe nenhum fundamento de facto ou de direito que permita o fraccionamento do pedido, o qual é assim arbitrário e decorrente do desejo em aproveitar esta forma de processo especial;
(e) O valor da causa impugnado devia assim ter sido fixado em $60,000.00 conforme requerido pelo ora Recorrente ao abrigo do artigo 256.º, n.º 1 do CPC;
(f) “A instância inicia-se pela proposição da acção e esta considera-se proposta logo que seja recebida na secretaria a respectiva petição inicial, sem prejuízo do disposto no artigo 100.º” - vd. artigo 211.º, n.º 1 do CPC;
(g) “O autor pode, em qualquer estado do processo, desistir de todo o pedido ou de parte dele, tal como o réu o pode confessar, no todo ou em parte.” - vd. artigo 235.º, n.º 1 -, sendo pois necessária a existência ou decurso de um processo para que este possa ter um “estado” e para que possa existir um pedido do qual o Autor venha mais tarde a desistir, total ou parcialmente;
(h) Preceitua o artigo 242.º do CPC, que a desistência efectua-se por documento autêntico, que tem de ser junto aos autos, ou por termo no processo, tomado na secretaria; Ou seja,
(i) Não é admissível uma desistência ab initio ou “pré-desistência” e nem se alegue estarmos perante um pedido parcial pois o Autor refere expressamente que desiste parcialmente do pedido e porque tais pedidos não são admissíveis - vd. 1285.º, n.º 2 do CPC;
(j) Nem estamos perante uma remissão porquanto a mesma exige a concordância do, alegado, devedor;
(l) Por ser irrelevante o fraccionamento arbitrário do valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor e por não ser admissível uma desistência parcial ab initio do pedido, mas apenas de um pedido já formulado na acção proposta, devia ter sido fixado à acção um valor de $60,000.00, conforme rectificação requerida pelo ora Recorrente, ao abrigo do artigo 256.º, n.º 1 do CPC, e, por não se verificarem os requisitos necessários à submissão à forma de processo especial referente às pequenas causas, previstos no artigo 1285.º, n.º 1, do CPC, ter-se declarado incompetente o Juízo de Pequenas Causas Cíveis.
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Não houve contra-alegações.
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Cumpre decidir.

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II- Os Factos
1- A, com os demais sinais dos autos, intentou no Juízo de Pequenas Causa Cíveis do TJB acção contra B.

2- Na petição inicial refere que tem direito a receber um terço do prémio com o valor global de Mop$ 180.000,00 atribuído pelo júri do concurso para selecção do projecto para representar o Pavilhão de Macau na Exposição Mundial de Xangai.

3- No entanto, para evitar a constituição de advogado e para confinar o pedido dentro da alçada dos tribunais de 1ª instância, a fim de que a acção ser julgada no Juízo de Pequenas Causas, o autor no art. 17º da petição inicial desiste do pedido em relação a 10.000,00, restringindo o pedido a Mop$ 50.000,00.

***
III- O Direito
A questão é de natureza processual.
Vejamos o que disse o tribunal “a quo”:
«Os nºs 16 e 17 da petição inicial do autor expõem claramente: “o autor tem direito a exigir ao réu a parte do prémio, no valor de MOP60.000,00, que pertence a si próprio. Uma vez que a constituição de advogado envolve uma certa quantia de dinheiro, e o autor não preenche os requisitos para a assistência judiciária, o mesmo decide desistir de parte do seu pedido, ou seja, um montante de MOP 10.000,00, nos termos do artigo 235º, nº 1 do Código de Processo Civil, no sentido de poder ser julgada a acção no Juízo de Pequenas Causas Cíveis.” Isso manifesta que o autor sabe bem que é obrigatória a constituição de um advogado se o valor pedido é de MOP60.000,00. Nesta situação, o autor optou por desistir de parte do seu pedido. Contudo, o autor citou erradamente o artigo 235º, nº 1 do CPC como o fundamento jurídico para a desistência. Mesmo assim, o erro do autor não impede o Juízo de qualificar juridicamente os factos. A parte do pedido de que o autor desiste é obrigação disponível e divisível. Nestes termos e tendo analisado o teor da petição inicial e a excepção deduzida pelo réu, entende este Juízo que o autor tem direito a desistir do pedido de MOP10.000,00 ao réu.
O artigo 29º - A da Lei de Bases da Organização Judiciária, alterada pela Lei nº 9/2004, estabelece: Sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos de Pequenas Causas Cíveis as acções que devam seguir os termos do processo especial referente a pequenas causas, incluindo todos os seus incidentes e questões.
O nº 2 do artigo 1286º do CPC diz que é dispensada a narração de forma articulada da petição inicial e esta pode ser apresentada através de impresso. O nº 2 do artigo 1294º do mesmo código dispõe que o juiz não está limitado às provas oferecidas pelas partes, podendo determinar a produção de quaisquer outras que, no seu prudente arbítrio, considere necessárias e adequadas à boa decisão da causa.
Daí verifica-se que, os processos de pequenas causas cíveis são diferentes dos processos gerais em matéria cível, nos quais o juiz tem competência e dever para esclarecer o pedido do autor e o teor da contestação do réu.
Pelo exposto, este Juízo decide manter o valor de acção em MOP50.000,00 e julga improcedente a excepção deduzida pelo réu que arguiu o erro na forma de processo».
Duas questões se levantam:
1ª A declaração do autor contida no art. 17º da petição é relevante como desistência parcial do pedido?
2ª Pode a dimensão valorativa do pedido ser diferente do valor geral da relação jurídica de que emerge o direito do autor para efeitos do nº2 do art. 1285º do CPC?
Vejamos.
No artigo 10 da petição inicial o autor disse: «De acordo com os requisitos estabelecidos pela entidade organizadora do Concurso, o prémio devia ser levantado pelo chefe da equipa, assim, a pedido do réu, o autor e C assinaram uma procuração em que concordaram que o réu ia levantar o prémio de cento e oitenta mil patacas (Mop180.000,00)».
Disse depois no art. 11 do mesmo articulado: «Após, o réu recebeu o prémio de Mop180.000,00(…), o autor exigiu ao mesmo para lhe dar um terço do prémio (Mop60.000,00)».
Prosseguiu no art. 12º: «Contudo, o réu recusou dar o prémio pertencente ao autor, alegando que a obra foi apresentada ao concurso em nome da sua firma».
E no 14º: «Tal como foi dito no art. 8º desta petição inicial, a obra foi apresentada em grupo, não foi em nome individual».
E nos dois seguintes: «Assim sendo, o prémio do 1º classificado deve pertencer ao grupo e não só ao réu ou à sua firma. O réu apenas levantou o prémio na qualidade do chefe do grupo» (15º) «Portanto, o autor tem direito a exigir ao réu a parte do prémio, no valor de MOP 60.000,00, que pertence a si próprio» (16º).
No artigo 17º reside aquela que constitui a questão em torno da qual o réu constrói a sua tese: «Uma vez que a constituição de advogado envolve uma certa quantia de dinheiro e o autor não preenche os requisitos para a assistência judiciária, o mesmo decide desistir de parte do seu pedido, ou seja, um montante de MOP10.000,00, nos termos do art. 235º, nº1, do Código de Processo Civil, no sentido de poder ser julgada a acção no Juízo de Pequenas Causas Cíveis».
Estendida assim a matéria de facto mais relevante, parece claro que a vontade manifestada no art. 17º transcrito não pode ser encarada como desistência no sentido estrito do termo. Quer dizer, a posição do autor não é de desistência do pedido nos moldes em que o CPC a prevê. Com efeito, a desistência pressupõe uma atitude de despojamento de uma parte da pretensão inicial fá formulada. Significa que em relação ao pedido manifestado na petição o autor abdica posteriormente de uma parte dele, fazendo baixar a dimensão do direito de que ele se arrogava inicialmente. Ou seja, a desistência implica sempre uma instância já instaurada (art. 211º do CPC), com uma pretensão já expressada nos autos e representa uma intervenção processual posterior – portanto superveniente. O próprio art. 235º, no que à desistência do pedido especificamente concerne, é muito claro ao estatuir que a desistência pode ter lugar “em qualquer estado do processo”, bem revelador de que subentende a existência de um processo já em marcha no momento em que a desistência se verifica.
Ora, tal não é o caso sempre que o autor, muito embora se ache no direito de pedir mais, resolve logo na petição inicial pedir menos, isto é, quando formula um pedido em substância ou em valor numa dimensão menor do que aquela a cujo direito se arroga.
E na verdade, o que o autor na presente acção pretende é reclamar o pagamento da quantia de MOP50.000,00, embora considere que a situação obrigacional que descreve lhe concederia o direito a exigir do réu um montante superior. Contudo, a fatia de que prescinde, de que abdica, é feita, não segundo uma concepção de desistência (porque tal é feito na própria petição inicial), mas segundo razões de estratégia processual bem definida e explicada.
Portanto, a situação não se enquadra na figura da desistência a que se referem os artigos 229º, al. c), 235º e 237º, nº1, do CPC.
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Avancemos agora para a interpretação do art. 1285º, nº2 do CPC.
Prevê o art. 29º-A da Lei de Bases da Organização Judiciária (aditado pela Lei nº 9/2004, de 16/08) que «Sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos de Pequenas Causas Cíveis as acções que devam seguir os termos do processo especial referente a pequenas causas, incluindo todos os seus incidentes e questões». Eis como através de um mecanismo de remissão, o legislador criou no dispositivo transcrito uma norma atributiva de competência.
E uma das fontes normativas para que o art. 29º-A abstractamente remete é, precisamente, o art. 1285º. Preceito que, para cumprir aquele desiderato, se determina por um duplo requisito: o do valor (proémio do nº1) e o dos fins (alíneas a) e b), do nº1). No nº1, estabelece-se que as causas cujo “valor” não exceda a alçada dos tribunais de 1ª instância e que se destinem a um dos “fins” previstos nas alíneas a) e b), do nº1 do preceito citado, seguem a forma de processo especial.
Todavia, o nº2 desse mesmo artigo é exigente porque, segundo o seu texto: «Para os efeitos do disposto no nº1, e sem prejuízo da consideração autónoma das prestações de execução periódica, atender-se-á, na fixação do valor da causa, ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor, sendo irrelevante o seu fraccionamento arbitrário com o mero propósito de aproveitar esta forma de processo especial».
A expressão literal da disposição parece remeter o intérprete para uma noção que se não quede pela parte, mas antes se atenha ao todo da relação jurídica de que emerge o pedido do autor. Ou seja, o que terá querido o legislador é estabelecer um critério aferidor do valor que diverge do definido no art. 248º, nº1 do CPC. Não bastará a expressão económica da pretensão para definir o valor da acção, mas é necessário que o valor da acção atenda à expressão económica global da relação jurídica onde assente o pedido do impetrante. Por isso mesmo é que a 2ª parte do nº2 acentua esta ideia ao tornar irrelevante o seu fraccionamento arbitrário com o mero propósito de aproveitar esta forma de processo especial.
O que quer isto dizer? Significa que o legislador não deixou ao critério da parte a escolha da forma de processo e do tribunal (juízo) onde deve correr a acção; não permitiu que, em matéria de competência como esta, a opção fosse deixada ao arbítrio do autor. Sendo a competência jurisdicional uma questão de ordem pública, fixou ele desde logo, sem nenhuma complacência, uma regra rígida e apertada.
“O valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor” é, assim o ponto de partida da hermenêutica.
No caso, se o autor, considerando que a relação negocial se estabeleceu a três, e se a contrapartida haveria de ser igualmente tripartida, as contas não o deixaram ao engano: tendo o réu recebido cento e oitenta mil patacas pelo 1º prémio alcançado no concurso, cada um dos três participantes na candidatura apresentada teria direito a um terço desse valor: logo, 60 mil patacas! A questão foi bem posta e facilmente será demonstrável em sede própria.
Olhando para esta tranche económica, o autor, em princípio, não poderia intentar a acção no juízo de pequenas causas. Isso é claro, porque a alçada a que está subjugado é de cinquenta mil patacas (art. 18º, nº1, da Lei nº 9/1999: Lei de Bases da Organização Judiciária).
Mas, poderá o autor manter-se dentro desta alçada se, àquele valor a que se considera ter direito, reduzir 10.000,00 patacas?
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O nº2 em causa tem uma leitura que pode não corresponder ao seu sentido mais literal e por isso merece uma mais funda reflexão. Talvez possamos avistar ali um duplo sentido na sua estatuição complexa: um peremptório ao dizer que “na fixação do valor da causa se atenderá ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor”. Esta força afirmativa seria vista isoladamente e descobre-se na 1ª parte da norma.
Se assim for de entender, a afirmação normativa é feita ao modo de uma regra inquebrável, querendo dizer que se deverá atender sempre ao valor da relação global onde se funda o direito peticionado! Essa parte da estatuição seria dominante e em caso nenhum a 2ª parte da estatuição (parte final do nº2) serviria para afastá-la.
Nesta concepção, a parte final do nº2 não seria mais do que exemplificativa ou explicativa. Serviria para ilustrar que nenhum fraccionamento daquele valor aproveitaria ao autor para se servir desta forma de processo especial. Poderia dizer-se que, sendo meramente ilustrativo, nem mereceria ser lei, isto é, nem era preciso estar mencionado na norma, sendo dispensável.
Ligando estas duas prescrições normativas, e descendo ao exemplo dos autos, teria que atender-se somente ao valor da fracção monetária que ao autor caberia por direito: 60.000,00 patacas. Parece ser esta a posição do réu, ora recorrente. Seríamos levados a concluir que a acção deveria ter o valor global (60 mil) de onde o autor retirou uma parte (dez mil), o que levaria negar a forma de processo escolhida (e o juízo de pequenas causa também não seria competente).
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Mas também pode ter uma segunda interpretação: o de que a força peremptória da 1ª parte só é absoluta nos casos em que o autor queira “fraccionar” o referido “valor global”, ficando por dar resposta evidente às situações em que o autor não quer fraccionar, mas simplesmente pedir menos abdicando do resto. Nesta concepção, a 1ª parte da estatuição não se deve entender por dominante, porque ela tem que ser relacionada, num todo indivisível, com a 2ª parte.
Esta interpretação tem sentido porque parte da noção de que fraccionar significa dividir, formar parcelas a partir de um todo. Nesta lógica, o legislador quereria evitar que, por exemplo, para um “valor global” de cem mil patacas não possa o alegado credor servir-se de vinte acções para um valor peticionado de 50 mil em cada uma, porque estaríamos aí perante um fraccionamento arbitrário com razões processuais estratégicas (“…com o mero propósito de aproveitar esta forma de processo especial”). Estaria em perigo, se assim não fosse, a segurança jurídica do próprio demandado que se veria comandado por critérios discricionários de conveniência do autor (o autor poderia intentar as vinte acções quando quisesse, uma após outra, ou todas em simultâneo). O legislador teria querido desta maneira até evitar que o tribunal fosse inundado de acções de pequeno valor (resultado do fraccionamento) cujo objectivo podia ser alcançado numa só acção noutro tribunal! Estariam à vista razões de eficácia.
Portanto, se a primeira parte do nº2 só constitui regra nos casos de fraccionamento arbitrário apontados na segunda, então parece ser de inferir a possibilidade de a acção ter um valor inferior ao valor global sempre que o autor, em vez de fraccionar, reduzir ab initio o valor da pretensão em termos definitivos e abdicativos. Este seria o valor da relação jurídica introduzida em juízo e só a ela teríamos que nos ater.
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Que dizer destes caminhos de interpretação?
A resposta não é fácil, mas em favor desta 2ª via de interpretação ainda se poderia invocar o conceito de arbitrariedade ali inscrito. E, então, numa aproximação ao sentido da norma poderíamos ser tentados a dizer que não seria arbitrária a manifestação processual do autor se a razão que apresentada é plausível, se não é comandada por caprichos de vontade dirigidos a um fim proibido por lei. E se o caso não for de fraccionamento (no sentido acima apresentado), então, por maioria de razão, a não reunião destes conceitos abriria as portas à utilização deste meio.
Acontece que nas regras de hermenêutica deve o intérprete tentar reconstituir o pensamento do legislador (art. 8º, nº1, do CC), sendo certo que nessa análise não pode o intérprete considerar o pensamento que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal (art. 8º, nº2, do CC). Isto sem deixar de ter presente que o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 8º, nº3, do CC).
Serve isto para dizer que muito embora o nº2 tenha duas secções, admitimos que só a primeira possa decisiva para valer enquanto estatuição, na medida em que a forma como ela está redigida deixa pouca margem ao intérprete para presumir coisa diferente daquilo que ela exprime.
Realmente, diz a 1ª secção, que para fixação do valor da causa se atenderá (critério aparentemente único e imperativo) ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor. E tanto assim é que o fraccionamento se mostra irrelevante (diz a 2ª secção). O fraccionamento, nesta acepção, deixa de ter um sentido puramente literal, escapando, portanto, a regras de semântica pura, para passar a ter um alcance mais geral e lato, de forma a abranger todas as situações em que o autor não pede todo o valor da relação jurídica que invoca, mas apenas uma parte dele. Deixa de interessar se este abaixamento se deve a uma divisão pura e simples, ou seja a um fraccionamento orientado a um fim múltiplo, ou a uma redução definitiva.
Em abono ainda desta tese, ainda se pode argumentar que a circunstância de o autor “reduzir” o pedido desde logo (não no sentido da redução após a introdução do feito em juízo, tal como atrás referimos) não é vinculativa para si mesmo, nem preclusiva de nova acção futura. Ou seja, o facto de ele dizer que apenas pede 50 não o inibirá de mais tarde pedir os outros 10.
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Mas será assim?
Não terá nenhum valor, não produzirá qualquer efeito, a declaração do autor em pedir menos do que aquilo a que se acha com direito?
Vejamos.
O que move o ânimo do declarante (autor) é privar-se de parte do seu crédito pelo motivo egoístico de se furtar a despesas de interpelação judicial e de propositura da acção no tribunal. Seria uma remissão feita com intuito abdicativo de renúncia ao crédito.
Ora, para alguma doutrina francesa clássica, sendo a relação jurídica creditícia invocada uma relação bilateral, ela só pode ser extinta, no todo ou em parte, com o acordo do devedor e, «…por conseguinte, mesmo que se admita, como parece admitir-se, uma renúncia ao crédito com finalidade puramente abdicativa, uma tal finalidade só pode realizar-se(…) mediante uma convenção ou contrato»1.
Não está em causa, por ora, a divergência entre vontade e declaração, isto é, não podemos perscrutar se há algum vício entre a declaração manifestada na petição acerca da auto-perda de parte do direito2 e a verdadeira vontade. E também não se discute se essa auto-perda está dentro da disponibilidade da situação jurídica dos direitos (não haverá dúvida de que é um direito disponível).
Problema maior é saber se, afinal de contas, é possível com tal declaração unilateral inserta na petição em juízo extrair uma autêntica e eficaz renúncia abdicativa. Será possível que o declarante possa fazer seguir a acção no juízo de pequenas causas reclamando o crédito de 50.000,00 patacas e em momento distinto posterior voltar ao tribunal para pedir a parte restante (10.000,00 patacas)?
A questão é dúplice: de eventual necessidade de intervenção da vontade do devedor, por um lado, e de forma, por outro. Comecemos pela primeira.
O assunto foi tratado proficientemente por Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, que concluiu que esta remissão de crédito de causa abdicativa, não carece de intervenção do devedor, bastando, para a produção de efeitos, uma simples declaração unilateral do credor (ob. cit., pag. 118/119).
Neste sentido, o art. 863º do CC Português (no CC de Macau, art. 854º) apenas teria aplicação aos casos de remissão atributiva3. Nos de remissão de causa abdicativa seria suficiente a declaração unilateral respectiva por parte do credor4.
E esta posição acaba por revelar-se lógica e com pleno sentido, se a confrontarmos com outros institutos espalhados no Código. Na verdade, se até o crédito se pode extinguir pelo cumprimento por terceiro (art. 757º, nº1, do CCM), não se vê que na renúncia abdicativa se haja, diferentemente, de valorizar o interesse do devedor. Da mesma maneira, também nos casos de cessão do crédito a relação creditícia pode ser extinta independentemente do consentimento do devedor (art. 571º do CCM), sem esquecer a cessação do direito por força da desistência do pedido no âmbito da respectiva acção em que o papel da vontade do devedor demandado não tem nenhuma influência (art. 237º e 238º, nº2, do CPCM). São situações em que a vontade do devedor pode ser irrelevante, havendo todas as razões para que na renúncia abdicativa se pense de modo semelhante.
Sendo assim, a coerência da solução aponta para a natureza não receptícia da declaração do credor. Quer dizer, o negócio renunciativo deve considerar-se perfeito no momento em que a declaração correspondente é emitida5.
E esta conclusão até responde à pergunta formulada sobre se algo impediria o credor declarante de revogar posteriormente a declaração e vir intentar nova acção com um pedido limitado a Mop$ 10.000,00. Neste ponto, é de considerar que a declaração unilateral é irrevogável. Quer dizer, se a declaração se acha perfeita e se não carece de declaração de vontade coincidente por parte do devedor, não parece fazer qualquer sentido que, uma vez feita a declaração de remissão abdicativa - que o beneficiário nem sequer pode recusar6 - possa o credor impedir o seu efeito através de uma declaração posterior de sinal oposto, isto é, através de uma declaração posterior revogatória da abdicação7.
O segundo problema consiste na necessidade da forma da declaração. Será que a declaração abdicativa de crédito só terá valor renunciativo (supondo-se tratar-se de direito disponível, como é o caso) com o respeito de regras especiais de forma?
A resposta parece simples: Fora dos campos em que o objecto da renúncia implica a sujeição a forma especial (por exemplo, escritura pública no que respeita a imóveis), nos casos de renúncia a crédito a solução é a da sua não sujeição a forma (arts. 213º, nº2 e 214º, nº2, ambos do CCM8.
*
Ora, sendo assim, é válida e eficaz a declaração escrita contida na petição inicial de renúncia a dez mil patacas por parte do credor autor, o que faz necessariamente baixar o valor da causa para cinquenta mil patacas, que assim fica sob o domínio da competência do juízo de pequenas causas.
Seria, aliás, injusto penalizar o autor obrigando-o a accionar o outro tribunal com custos judiciais mais elevados (basta pensar na necessidade de advogado) e com um grau menos célere na resolução definitiva dos casos, se ele mesmo voluntariamente se despoja de parte do seu crédito.
Significa que, em nossa opinião, o fraccionamento de que trata o art. 1285º do CPC visa evitar múltiplas acções que podiam ser reunidas numa só, em função do valor, com fins de estratégia processual (por exemplo, de celeridade). Tal estratégia, se fosse possível, inundaria o juízo de pequenas causas, tornando-o pouco expedito e dificilmente funcional, ao contrário do que esteve na sua génese e que era, precisamente, aliviar a carga do tribunal judicial com os incontáveis processos de menor valor. É isso o que o legislador teve em mente (mens legistoris) ao prescrever daquela maneira.
Portanto, a justificação clara, lógica e verosímil e confessada do autor de que a abdicação tinha o “…sentido de poder ser a acção julgada no Juízo de pequenas Causas Cíveis” (art. 17º, da p.i.), não pode ser interpretada como fraccionamento, como estratégia para permitir um aproveitamento múltiplo do todo, mas como o sinal de uma verdadeira amputação de parte do todo, portanto, como uma razão plausível, mesmo à custa de um prejuízo (que no caso ascende a dez mil patacas) perfeita e definitivamente assumido através de uma declaração unilateral, irrevogável, não receptícia e irrecusável que o seu beneficiário (réu demandado) sempre poderá invocar em seu benefício sempre que o entender necessário ou conveniente.
O caso não cabe, pois, no âmbito do nº2 do art. 1285º do CPC.
***
IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando o despacho recorrido.
Custas pelo recorrente.

TSI, 17 / 11 / 2011

José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 A este propósito, ver Francisco Manuel de Brito Pereira Coelho, in A Renúncia abdicativa no direito civil, Boletim da Faculdade de Direito, Studia Iuridica, 8, pag. 27-28, que não concorda que a remissão só através de contrato possa realizar-se (pag. 118).
2 Seria, então, uma renúncia parcial, funcionando aí, na esteira de José de Oliveira Ascensão, não como causa de extinção do direito, mas como causa de modificação de uma situação jurídica (Direito Civil – Teoria Geral, Vol. III, pag. 151).
3 Sobre a distinção entre atributiva e abdicativa, ver Francisco Manuel de brito Pereira Coelho, ob. cit, pag. 13 e sgs.
4 Autor e ob. cit., pag. 123 e 124.
5 Autor e ob. cit., pag. 126. Na lei, esta solução acha-se consagrada no art. 216º, nº1, 2ª parte, doo CCM.
6 Considerando que esta declaração unilateral, não receptícia e irrevogável como sendo irrecusável, ainda, uma vez mais, o autor e ob. cit., pag. 127-128.
7 Apud, Autor e ob. cit. pag. 126-127.
8 Neste sentido, A. Vaz Serra, Remissão, reconhecimento negativo de dívida e contrato extintivo da relação obrigacional bilateral, in BMJ, nº 43, 1954; Francisco M. Pereira Coelho, ob. cit., pag. 133-140.
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