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Processo nº 740/2010
(Autos de Recurso Contencioso)

Data: 17 de Novembro de 2011


ASSUNTO
- Ocupação do terreno
- Usucapião do terreno sem titularidade registada


SUMÁRIO
- Quer no âmbito do Diploma Legislativo nº 651, de 03/02/1940, quer do Diploma Legislativo nº 1679, de 21/08/1963, quer da Lei nº 6/80/M, de 05/07/1980, a ocupação do terreno é sempre documentada por licença.
- A usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada já não é legalmente permitida face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM, a não ser que o domínio útil do mesmo tenha transitado para o regime da propriedade privada antes da entrada em vigor do citado diploma legal
O Relator,
Ho Wai Neng

Proc. nº 740/2010
(Autos de Recurso Contencioso)


Data: 17 de Novembro de 2011
Recorrente: A
Entidade recorrida: O Chefe do Executivo da RAEM

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
A, melhor identificada nos autos, vem interpor o presente recurso contencioso contra o despacho do Senhor Chefe do Executivo, de 16/08/2010, pelo qual se ordenou a desocupação do terreno e demolição do compartimento não autorizado, removendo os materiais e equipamentos nele depositados, bem como a entrega do terreno ao Governo da RAEM sem direito a qualquer indemnização, com os fundamentos seguintes:
a) Recorre-se do despacho de S. Exa. o Chefe do Executivo de 16 de Agosto de 2010;
b) O recurso é tempestivo; Assim,
c) O despacho recorrido é anulável, por violação de lei, por erro nos pressupostos de facto e de direito; Já que,
d) Salvo o devido respeito, o despacho ignora ostensivamente a posse da recorrente e dos seus antecessores sobre o terreno em causa - facto que, aliás, não só é notório, como é comum aos demais possuidores de terrenos, na Ilha de Coloane, em situações identicas;
e) O que se traduz em violação de lei, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários (art.º 21º n° 1, al. d) do CPCA). Finalmente,
f) A recorrente irá intentar acção judicial em que pedirá a aquisição do terreno por usucapião.
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Regularmente citada, a entidade recorrida contestou nos termos constantes a fls. 35 a 41 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pelo não provimento do recurso.
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Apenas a recorrente é que apresentou as alegações facultativas, mantendo, no essencial, a posição já tomada na petição inicial.
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O Ministério Público é de parecer da improcedência do recurso, a saber:
“Vem "A" impugnar o despacho do Chefe do executivo de 16/8/10 que, na sequência do procedimento respectivo, ordenou, no prazo de 30 dias, a desocupação do terreno sito junto ao poste n° 918CO9 da povoação de Hac Sá, da ilha de Coloane, e demolição do compartimento ali implantado, removendo os materiais e equipamentos nele depositados, bem como a entrega do terreno ao Governo da RAEM sem direito a qualquer indemnização, assacando-lho vícios de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, além de total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários, argumentando, em síntese, que tal terreno, por 2 parcelas, terá sido adquirido a terceiros, os quais, por sua vez, os terão adquirido a outros, sendo que, em seu critério, terá existido, desde há "várias dezenas de anos" posse desse terreno, de boa fé e à vista de todos, por sucessivos intervenientes, o último dos quais a recorrente, razão por que, em seu critério, se mostrará adquirido o mesmo, por usucapião, por parte daquela, a qual haverá que configurar como legítima proprietária.
Não lhe assiste, contudo, em nosso critério, qualquer razão.
Dispondo, além do mais, o artº 7° da LBRAEM que "Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau", e, tendo o acórdão do Venerando TUI, proferido no âmbito do proc. 32/2005, publicado no B.O., II Série, de 2/8/06, consignado que "Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor de particulares, dos referidos terrenos, através de decisão judicial, independentemente de acção a ser proposta antes ou depois da criação da Região", todo o argumentado pelo recorrente, sendo estimável, se revela inócuo, já que, quer antes, quer depois do estabelecimento da RAEM, não logrou estabelecer o registo, a seu favor, do direito de propriedade ou qualquer outro direito real, designadamente de concessão, por aforamento ou arrendamento, que lhe confira legitimidade para o que se arroga.
Por outra banda, cabendo ao Governo da Região, ainda nos termos do artº 7º da LBRAEM anunciado, a responsabilidade pela gestão, uso e desenvolvimento dos solos, bem como o seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, ficando os rendimentos daí resultantes exclusivamente à disposição do Governo da RAEM, apresenta-se a ordem de despejo e demolição, além de justa e adequada, como a mais consonante com a prossecução do interesse público, já que, tendo a Administração detectado a situação, não poderia pactuar com a mesma não se vendo que outra medida ou medidas, no quadro da prossecução daquele interesse público, pudessem ser tomadas, menos gravosas para a posição jurídica do interessado: revelando-se a ocupação do terreno e a obra detectada como ilegais e não legalizáveis, outra medida consonante com o interesse público não restaria senão a ordem aqui questionada.
Tudo razões por que, não se descortinando a ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.”
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Foram colhidos os vistos legais dos Mmºs Juizes-Adjuntos.
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O Tribunal é o competente.
As partes possuem a personalidade e a capacidade judiciárias.
Mostram-se legítimas e regularmente patrocinadas.
Não há questões prévias, nulidades ou outras excepções que obstam ao conhecimento do mérito da causa.

II – Factos
Com base nos elementos constantes dos autos e do respectivo PA, é assente a seguinte factualidade com interesse para a boa decisão da causa:
- Em 05/07/2009, a DSSOPT detectou que no limite do terreno situado junto ao poste nº 918C09 da Povoação de Hác-Sá na Ilha de Coloane foi vedado com placa de zinco e pavimentado o terreno com betão, bem como foram executadas construções compostas por cobertura em chapa de zinco e tapume, mas sem a devida licença ou autorização para o efeito.
- De acordo com certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial, em 02/06/2010, sobre o terreno em referência não se encontra registado o direito de propriedade privada ou qualquer outro direito real, nomeadamente de concessão, aforamento ou arrrendamento.
- Em consequência, foi instaurado o procedimento administrativo nº 40/DC/2009/F, de desocupação e restituição do terreno.
- Por despacho do Senhor Chefe do Executivo da RAEM, de 16/08/2010, exarado sobre a informação nº 5024/DURDEP/2010, de 26/07/2010, foi ordenado que os ocupantes desconhecidos para, no prazo de 30 dias, procederem à desocupação do terreno situado junto ao poste nº 918C09 da Povoação de Hác-Sá na Ilha de Coloane, removendo os materiais e equipamentos nele depositados, bem como à entrega do terreno ao Governo da RAEM, sem direito à indemnização.
- Em data não apurada, por acordos constantes a fls. 12, 13, 14 e 15 dos autos, cujos teores aqui se dão integralmente reproduzidos, os indivíduos de nome B, C, D e E, arrogando como comproprietários do terreno em referência, declararam vender as suas quotas partes do terreno a um indivíduo de nome F.
- Em 10/09/1970, por acordo constante a fls. 21 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, o referido F declarou vender a metade do terreno em referência a um indivíduo de nome G.
- Em 21/03/1980, por acordo constante a fls. 18 e 19 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, o referido F declarou vender outra metade do terreno em referência a um indivíduo de nome H, que, por sua vez, declarou vender, em 22/08/1986, à Companhia de Investimento e Fomento Predial Nam Tung (Macau) SARL.
- Em 10/01/2005, por acordos constantes a fls. 23 e 24, 25 e 26, cujos teores aqui se dão integralmente reproduzidos, o aludido G e a Companhia de Investimento e Fomento Predial Nam Tung (Macau) SARL declararam vender à recorrente os seus direitos inerentes ao terreno em referência.

III – Fundamentos
Na óptica da recorrente, o acto recorrido “ignora ostensivamente a posse da recorrente e dos seus antecessores sobre o terreno em causa - facto que, aliás, não só é notório, como é comum aos demais possuidores de terrenos, na Ilha de Coloane, em situações identica”, “o que se traduz em violação de lei, já que se trata de erro manifesto e de uma total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários (art. º 21º n° 1, al. d) do CPCA)”.
Mas não lhe assiste razão.
Em primeiro lugar, não foi feita prova da existência da licença da ocupação do terreno a favor da recorrente, já que quer no âmbito do Diploma Legislativo nº 651, de 03/02/1940, quer do Diploma Legislativo nº 1679, de 21/08/1963, quer da Lei nº 6/80/M, de 05/07/1980, a ocupação do terreno é sempre documentada por licença.
Nos termos da Lei de Terras (Lei nº 6/80/M, de 5 de Julho), os terrenos de Macau são classificados em terrenos do domínio público do Território (hoje RAEM), terrenos do seu domínio privado e terrenos de propriedade privada, e apenas os últimos são passíveis de aquisição por usucapião.
Dispõe o artº 5º da citada Lei de Terras, na nova redacção dada pela Lei nº 2/94/M, de 4 de Julho, que:
Artigo 5.º
(Propriedade privada)
1. Consideram-se sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público.
2. O Governo procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade privada, confinem com o domínio público.
3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pelo Território é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
Como é sabido, é pacífica e unânime na jurisprudência da RAEM que após a entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, a usucapião do domínio útil dos terrenos sem titularidade registada já não é legalmente permitida face ao disposto do artº 7º do citado diploma legal, a não ser que o domínio útil do mesmo tenha transitado para o regime da propriedade privada antes da entrada em vigor do citado diploma legal (cfr. Acórdão do TUI, de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007).
No caso em apreço, como não foi feita prova de o terreno em causa ter a natureza de propriedade privada, ou o seu domínio útil ter integrado naquele regime, o mesmo não é passível de aquisição por usucapião face ao disposto do artº 7º da Lei Básica da RAEM.
Não tendo a recorrente qualquer título legítimo para ocupar o terreno em referência, nem havendo possibilidade legal da aquisição por usucapião, quer da propriedade, quer apenas do domínio útil do terreno, é inevitável a sua desocupação e restituição ao Governo da RAEM.
Por outro lado, como bem observou o Dignº Magistrado do Mº Pº junto deste Tribunal, que “cabendo ao Governo da Região, ainda nos termos do artº 7º da LBRAEM anunciado, a responsabilidade pela gestão, uso e desenvolvimento dos solos, bem como o seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento, ficando os rendimentos daí resultantes exclusivamente à disposição do Governo da RAEM, apresenta-se a ordem de despejo e demolição, além de justa e adequada, como a mais consonante com a prossecução do interesse público, já que, tendo a Administração detectado a situação, não poderia pactuar com a mesma não se vendo que outra medida ou medidas, no quadro da prossecução daquele interesse público, pudessem ser tomadas, menos gravosas para a posição jurídica do interessado: revelando-se a ocupação do terreno e a obra detectada como ilegais e não legalizáveis, outra medida consonante com o interesse público não restaria senão a ordem aqui questionada.”.
Não há, portanto, qualquer desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários.
Aliás, o que está em causa nem é o exercício de um poder discricionário, mas sim um acto vinculado.
Assim, o presente recurso contencioso não deixa de se julgar improcedente.

IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao presente recurso contencioso, mantendo o acto recorrido.

Custas pelo recorrente, com 8UC de taxa de justiça.
Notifique e registe.

RAEM, aos 17 de Novembro de 2011.

Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho Presente
Lai Kin Hong Vitor Coelho




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