Processo nº 142/2010(() Data: 19.01.2012
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Apreendido.
Destino.
SUMÁRIO
1. O montante apreendido nos autos deve ser entregue ao ofendido se apurado estiver que constitui a comissão paga a terceiros pela sua intermediação na troca de uma certa quantia pecuniária por fichas de jogo, e que é aquela (comissão) o resultado de uma dedução desta última quantia que tinha sido fraudulentamente subtraída ao dito ofendido.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 142/2010(()
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Em sede do Processo Comum de Instrução n.° PCI-045-08-2, proferiu o Mmo Juiz de Instrução Criminal despacho determinando a entrega do montante de H.K.D. $360.640,00, apreendido nos autos, ao “GRUPO JUNKET A”; (cfr., fls. 1033 a 1033-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformada com o assim decidido, a assistente, “H.S.B.C. FUTURES (SINGAPORE) PTE LTD”, recorreu.
Em sede da sua motivação produziu as conclusões seguintes:
“1. Vem o presente recurso interposto do despacho de 5 de Janeiro de 2010 proferido pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, o qual determinou a entrega do montante de HKD$360.640,00 (trezentos e sessenta mil seiscentos e quarenta dólares de Hong Kong) apreendido ao abrigo dos presentes autos ao Grupo Junket A, indeferindo em consequência a pretensão da Assistente que reclamava a devolução da referida quantia.
2. O despacho recorrido fundamenta a sua decisão de atribuir ao intermediário a citada quantia com base não só na alegada boa fé deste, mas também na circunstância de ter considerado que este montante não terá sido retirado dos fundos pertencentes à Assistente e utilizados para a compra das fichas.
3. Ora, ao contrário do que defende o Meritíssimo Juiz a quo da documentação que consta dos autos - designadamente dos registos relativos aos depoimentos prestados pelo funcionário da SJM XXX e do Grupo Junket B - não resulta provado que o montante em apreço não seja proveniente dos HKD$28.000.000,00 fraudulentamente retirados à Assistente.
4. Os esclarecimentos que a SJM prestou quanto a esta matéria são inequívocos na demonstração e reconhecimento da posição da Assistente, ora Recorrente.
5. Efectivamente, não só no requerimento de fls. 963 em que explica o método dos cálculos das comissões a SJM confirma que o montante a que o intermediário na venda das fichas teria direito a título de comissão e que se encontra apreendido foi deduzido dos citados HKD$28.000.000,00, como posteriormente e depois de notificada do requerimento da Assistente de 10 de Setembro de 2009 veio a SJM a fls. 1026 uma vez mais sufragar a posição da ora Recorrente declarando nada ter a reclamar quanto à pretensão desta, e respectivos fundamentos, em lhe serem devolvidos os HKD$360.640,00.
6. Esta posição assumida pela entidade que teria de proceder ao pagamento da comissão em apreço e que, portanto, não tem, ao contrário do que sucede com o Grupo Junket A um interesse directo ou indirecto nesta questão, não pode deixar dúvidas quanto à fonte dos HKD$360.640,00 e ao facto de os mesmos terem sido retirados do montante global de HKD$28.000.000,00 pertença da Assistente.
7. Assim, resultando dos autos que o pagamento da comissão devida pela troca do dinheiro (HKD$28.000.000,00) ilicitamente sonegado à Assistente por fichas de jogo seria efectuado usando parte deste mesmo dinheiro, dúvidas não podem restar que a ora Recorrente tem direito a esta quantia, pela mesma razão que o Tribunal considerou ter direito aos montantes correspondentes às fichas de jogo objecto também objecto da mesma apreensão.
8. O entendimento que ora se vem preconizando encontra acolhimento legal no artigo 103.° do Código Penal, disposição essa que o despacho recorrido ao determinar a entrega dos HKD$360.640,00 ao Grupo Junket A violou.
9. Efectivamente, no caso em apreço o restabelecimento da ordem económica ou a tentativa de reposição do estado de coisas anterior à prática do crime que aquela norma visa só poderá fazer-se com a restituição à Assistente de todas as quantias que lhe foram retiradas por força da burla de que foi vítima e que foram objecto da apreensão e, entre elas, a comissão que iria ser paga ao intermediário Junket e que a SJM reconhece ter em seu poder.
10. Por outro lado, é pura e simplesmente inaceitável defender-se, como o faz o despacho recorrido, que a eventual boa fé do Grupo Junket A - traduzida no seu alegado desconhecimento de que na origem da operação da troca de fichas estava um ilícito criminal e que, portanto, os sujeitos a quem aquele grupo assessorou nessa troca não tinham qualquer legitimidade para dispor do dinheiro utilizado na mesma - tem relevância jurídica no sentido de que, por força dessa boa fé, a ilicitude e invalidade do negócio de compra e venda das fichas não lhes é oponível.
11. É que, sendo inequívoco que o negócio de compra e venda das fichas, por ter sido celebrado com dinheiro produto de uma burla de que a Assistente foi vítima, é inválido, qualquer que seja o regime de invalidade que se entenda atribuir a esse negócio - inexistência ou nulidade - do mesmo não poderá resultar nunca a protecção de direitos que eventuais terceiros de boa fé tenham adquirido com base nesta transacção e, nomeadamente, o direito do intermediário em receber a respectiva comissão pela sua intervenção no negócio inválido.
12. Efectivamente, caso se entenda que a invalidade do negócio em apreço se traduz na sua inexistência – “quando nem sequer aparentemente se verifica o “corpus de certo negócio jurídico (a materialidade correspondente à noção de tal negócio) ou, existindo tal aparência, a realidade não corresponde a tal noção” (in Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 3.3 Edição, pág. 608) - não sendo sequer nulo, há que concluir que o mesmo é incapaz de produzir quaisquer efeitos (nomeadamente o de instituir o grupo junket no direito de receber uma comissão com base num negócio inválido) e, portanto, totalmente ineficaz em relação à ora Recorrente.
13. Doutro passo, caso se considere que o negócio da troca das fichas não é inexistente mas apenas nulo, os direitos ou expectativas que este negócio tenha eventualmente produzido na esfera jurídica dos terceiros de boa fé, nomeadamente o direito do Grupo Junket a receber a comissão pela troca das fichas, não merece também o reconhecimento e a protecção do Direito.
14. Com efeito, por força do disposto no artigo 282° do Código Civil, a nulidade implica que o negócio não produza os seus efeitos desde a sua origem, devendo ser restituído, a quem de direito, tudo o que tiver sido prestado. Estes efeitos da nulidade estendem-se às partes (neste caso os agentes do crime que obtiveram as fichas e a SJM que as trocou) ou a terceiros de boa fé que tenham adquirido quaisquer direitos.
15. Acresce que, tendo o Tribunal recorrido ordenado a destruição dos efeitos da operação de troca de fichas por dinheiro, com a devolução à Assistente do dinheiro correspondente às fichas apreendidas (o que significa que, pelo menos, em relação aos montantes que se logrou recuperar tudo se tenha passado como se esta operação nunca tivesse existido) não faz qualquer sentido manter-se o pagamento de uma comissão que se refere ao montante global, sob pena de um enriquecimento sem causa por parte do Grupo Junket.
16. Finalmente, à cautela sempre se referirá que a posição defendida ao longo dos autos pelo Ministério Público de que a quantia a que se vem fazendo alusão deverá reverter a favor da RAEM, com base no disposto no supra citado artigo 103.°, não poderá também merecer acolhimento uma vez que in casu não se mostram preenchidos os pressupostos legais de que dependeria essa perda”; (cfr., fls. 1045 a 1052).
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Admitido o recurso, foram os autos remetidos a este T.S.I.
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Oportunamente, e em sede de vista, emitiu a Ilustre Procuradora Adjunta o seguinte douto Parecer:
“Inconformando com o douto despacho que ordenou a entrega do montante de HKD$360.640,00 apreendida nos autos ao Grupo Junket A, vem a assistente HSBC FUTURES (SINGAPORE) PTE LTD interpor recurso, pretendendo que lhe seja entregue a quantia em causa.
Antes de mais, convém referir que, tal como tem sustentado o nosso Colega ao longo do processo, afigura-se-nos que o destino a dar à mencionada quantia seria declará-la perdida a favor da RAEM, posição esta que não mereceu acolhimento da Mma. Juiz de Instrução Criminal.
A questão suscitada no presente recurso reside em saber se o montante apreendido nos autos deve ser entregue ao Grupo Junket A ou à assistente.
Analisados os elementos constantes dos autos, parece-nos assistir razão à assistente, acolhendo assim também as suas considerações explanadas na motivação do recurso.
Na realidade, revela-se pertinente, para apreciação da questão levantada, apurar a origem e a proveniência da quantia em causa.
Ora, resulta dos autos (nomeadamente a informação de fls. 928 e 963 dos autos, prestada pela Sociedade de Jogos de Macau) que tal quantia corresponde à comissão que seria devida ao Grupo Junket A a título de remuneração pelo exercício da actividade de promoção de jogos, concretamente pela intermediação no negócio de troca por fichas de casino no montante de HKD$28.000.000,00.
E constata-se que a referida quantia de HKD$28.000.000,00 foi fraudulentamente retirada da assistente., tendo os suspeitos do crime de burla utilizaram a quantia para, através do Grupo Junket A, adquirirem fichas de jogo no mesmo montante.
Ora, mesmo admitindo a boa fé do Grupo Junket A atento o seu desconhecimento da origem ilícita da quantia produto da burla, certo é que, tal como sustenta a assistente, face à invalidade - inexistência ou nulidade - do negócio de compra e venda das fichas, não parecem merecer a tutela ou protecção do Direito os direitos ou expectativas que esse negócio tenha eventualmente produzido na esfera jurídica dos terceiros de boa fé.
Acrescentando, nota-se que, para além da quantia ora em causa, exista uma outra quantia no montante de HKD$157.930,10, também relacionada com o dinheiro de HKD$28.000.000,00, cujo pagamento pretende a Sociedade de Jogos de Macau a título de comissão por força do desenvolvimento da sua actividade.
Sucede que, “atenta a circunstância de se tratar, nos presentes autos, de uma contraprestação por força de uma actividade que, ... , se tem de considerar como neutralizada”, entende o Mmo. Juiz de Instrução Criminal que não tem qualquer justificação a sua cobrança por parte da Sociedade de Jogos de Macau, pelo que determina a restituição dessa quantia à assistente (cfr. despacho de fls. 1008 e 1009 dos autos).
Pelo exposto, parece-nos que se deve julgar procedente o recurso interposto pela assistente” (cfr., fls. 1133 a 1134).
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Conclusos os autos ao ora relator, e verificando-se que o recorrido não tinha ainda sido notificado do presente recurso, determinou-se a sua notificação em conformidade; (cfr., fls. 1135).
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Em resposta, juntou o recorrido o expediente de fls. 1141 a 1143, pugnando pela improcedência do recurso.
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Suprida que assim ficou a assinalada omissão, nada parecendo obstar e colhidos os vistos dos Mmo Juízes-Adjuntos, passa-se a decidir.
Fundamentação
2. Vem a assistente dos presentes autos, “HSBC FUTURES (SINGAPORE) PTE, LTD”, recorrer do despacho do Mmo J.I.C. que determinou a entrega do montante de H.K.D. $360.640,00, apreendido nos autos, ao “GRUPO JUNKET A, ora recorrido.
Vejamos.
Colhe-se dos autos que o montante em causa corresponde à comissão acordada entre a “Sociedade de Jogos de Macau, S.A.” e o ora recorrido, e que a este último seria devida a título de remuneração pela sua actividade de intermediação no negócio de troca por fichas de casino do montante de H.K.D.$28.000.000,00, fraudulentamente sonegados à ora recorrente por terceiro(s).
E, perante isto, mostrando-se-nos de acolher o douto entendimento pela Ilustre Procuradora Adjunta assumido no seu Parecer cujo teor aqui se dá como reproduzido para todos os efeitos legais, cremos que tem a recorrente razão.
De facto, (como se consignou no dito Parecer e como se decidiu a fls. 1008 a 1009 dos autos), o montante em questão, que constitui a “comissão” a que o ora recorrido teria direito em resultado da sua actividade de intermediação no negócio de troca de fichas, tem de se considerar “neutralizado” em virtude da origem ilícita da quantia monetária de H.K.D.$28.000.000,00.
Por sua vez, (e atento o exposto pela S.J.M. a fls. 963), importa não olvidar que a dita quantia correspondente à mencionada comissão, (H.K.D.$360.640.00), foi deduzida do montante de H.K.D.$28.000,000,00, fraudulentamente sonegados à ora recorrente.
Nesta conformidade, cremos pois que deve ser tal quantia entregue à mesma recorrente.
Com efeito, sendo que tal montante de H.K.D.$360.640.00 correspondente à aludida comissão foi deduzido do quantum de H.K.D.$28.000.000,00, pertencente à dita recorrente, natural parece de concluir que aquele a esta pertence.
Aliás, afigura-se-nos até ser esta a única solução justa e que permite repor o “estado de coisas” que existia antes de ser a recorrente desapossada da quantia de H.K.D.$28.000.000,00.
Não se olvida, por sua vez, o argumento invocado pelo Mmo Juiz, quanto à “boa fé” do recorrido.
Porém, sem prejuízo do muito respeito por entendimento em sentido diverso, e como já se referiu, sendo de se considerar o negócio de troca de fichas, (do qual resultaria a “comissão” em questão), despido de qualquer validade, (nulo), dado que nele se utilizou dinheiro ilicitamente substraído à recorrente, e assim, “produto de 1 crime”, adequado parece afirmar que o mesmo não produz efeitos, nomeadamente, o de o ora recorrido receber a dita comissão; (cfr., art. 282° do C.C.M.).
Decisão
3. Face ao exposto, e em conferência, acordam julgar procedente o recurso.
Custas pelo recorrido, com taxa de justiça que se fixa em 4 UCs.
Macau, aos 19 de Janeiro de 2012
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
T Processo redistribuído ao ora relator
d Processo redistribuído ao ora relator
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