Processo n.º 46/2012 Data do acórdão: 2012-1-19
(Autos de pedido de escusa de juiz)
Assuntos:
– imparcialidade do julgador
– judex inhabilis
– judex suspectus
– garantias da imparcialidade
– impedimento do juiz
– recusa do juiz
– escusa do juiz
– desconfiança sobre a imparcialidade do juiz
– art.o 32.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
1. O juiz tem de exercer a sua actividade segundo os ditames da justiça, portanto é condição essencial da sua função a imparcialidade. E as circunstâncias que podem perturbar a rectidão do seu juízo são de duas ordens: subjectivas e objectivas.
2. Designam-se por circunstâncias subjectivas as relações do juiz com as partes, e por circunstâncias objectivas as situações em que o juiz se encontra a respeito do próprio objecto da causa.
3. Como as influências susceptíveis de comprometer a imparcialidade do julgador não revestem todas a mesma gravidade, o legislador tome, em face delas, providências diferentes. Assim, esses factores umas vezes produzem incapacidade absoluta do magistrado, outras vezes incapacidade meramente relativa.
4. Se a incapacidade é absoluta, pode dizer-se que o juiz fica privado do poder jurisdicional. É o caso do judex inhabilis.
5. Se a incapacidade é relativa, o juiz continua dotado de poder jurisdicional, mas não pode exercê-lo a partir do momento em que a incapacidade seja suscitada. É o caso do judex suspectus.
6. No âmbito do Código de Processo Penal de Macau (CPP), consagram-se como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
7. O impedimento caracteriza-se pelo seguinte traço: verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1).
8. A recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave dos do impedimento, traduzidos em correr o risco de ser considerada suspeita a intervenção de um juiz, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade (art.º 32.º, n.os 1 e 2).
9. E a escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
10. Daí que onde houver fundamento para impedimento, não pode verificar-se o incidente da recusa ou escusa. Não há apenas diferença quanto aos fundamentos. Também o regime dos impedimentos é mais severo, já pela sua natureza taxativa, já pelos seus efeitos enérgicos, designadamente o dever imposto ao juiz visado de se declarar impedido, em contraste com a mera faculdade de pedir escusa.
11. Entretanto, não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
12. O simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não constitui fundamento válido para a sua recusa. Há sempre que alegar factos concretos que constituem motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
13. No caso concreto dos presentes autos, sendo de concluir, ante os elementos fácticos aí em questão, que o filho do arguido – o qual irá provavelmente depor como testemunha na futura audiência contraditória – tem sido o bom amigo da juíza requerente de escusa e que esta também conhece da personalidade do arguido, o que, no caso de esta ter que julgar essa causa penal, constituirá naturalmente um motivo, sério e grave, adequado de gerar a desconfiança sobretudo do sujeito ofendido no crime imputado ao arguido, sobre a imparcialidade da mesma juíza na condução da audiência de julgamento e na emissão da decisão final sobre a causa, procede o pedido de escusa, por estar verificado o requisito material exigido na parte final do n.o 1 do art.o 32.o do CPP.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 46/2012
(Autos de pedido de escusa de juiz)
Requerente: Mm.a Juíza Dr.a A (A法官)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Veio a Mm.a Juíza de Primeira Instância Dr.a A pedir, ao abrigo do disposto sobretudo nos art.os 32.o, n.os 1 e 3, e 33.o do Código de Processo Penal vigente, a escusa de intervenção no julgamento dos autos de Processo Comum Singular n.o CR1-11-0322-PCS, a ela distribuídos como Juiz do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, tendo alegado essencialmente o seguinte no seu requerimento:
– o arguido desse processo penal, a quem se encontra imputada a prática de um crime de ofensa à integridade física do art.o 137.o, n.o 1, do Código Penal vigente, é pai de um amigo seu, conhecido não só desde a época da sua instrução primária, como também no período, de mais de dez anos, em que ela pertencia à Selecção de Natação de Macau, tendo ambos participado em conjunto em treinos e torneios, sendo que presentemente, ambos assistem, em tempos livres, a convívios de amigos comuns;
– além disso, como ela também conhece os familiares do arguido, sabe inclusivamente da personalidade deste;
– ademais, consultados os autos penais em causa, descobre ela que o referido amigo filho do arguido chegou a ser inquirido como testemunha, por ter ficado presente no local dos factos;
– termos em que a participação dela no julgamento desses autos irá gerar facilmente desconfiança, por parte do público e dos sujeitos processuais em questão, sobre a sua imparcialidade na decisão a proferir.
Corridos já os vistos, cumpre decidir do pedido de escusa.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Com pertinência à decisão, é de dar por assente o seguinte, acreditando, pois, e mormente, na fé das palavras da Mm.a Juíza requerente:
– a Mm.a Juíza requerente é actualmente titular do Processo Comum Singular n.o CR1-11-0322-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, processo esse que ainda não se encontra aí julgado;
– o arguido desse processo penal é pai de um amigo da Mm.a Juíza requerente, conhecido por esta não só desde a época da sua instrução primária, como também no período, de mais de dez anos, em que ela pertencia à Selecção de Natação de Macau, tendo ambos participado em conjunto em treinos e torneios, sendo que presentemente, ambos assistem, em tempos livres, a convívios de amigos comuns;
– além disso, ela também conhece o arguido, e sabe inclusivamente da personalidade deste;
– o referido amigo filho do arguido chegou a ser inquirido como testemunha, por ter ficado presente no local dos factos de ofensa simples à integridade física, imputados ao arguido.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Como ensina ALBERTO DOS REIS, in Comentário ao Código de Processo Civil, Vol. 1.º, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1960, pág. 387 e seguintes:
“O Estado, ao organizar o sistema de recrutamento dos magistrados judiciais, procura obter a máxima idoneidade moral e técnica das pessoas a quem vai confiar a delicada função de administrar justiça; mas é claro que, com as suas exigências, tem em vista ùnicamente a capacidade geral do candidato para o desempenho do cargo. Pode, porém, suceder que, sendo irrepreensìvelmente idóneo para o exercício de função jurisdicional em geral, o indivíduo não esteja, por virtude de circunstâncias particulares, em boas condições para a exercer em caso determinado.
Não basta que o magistrado tenha a cultura jurídica e a capacidade intelectual necessárias para interpretar e aplicar correctamente a lei; é indispensável, além disso, que a sua pessoa se encontre colocada fora e acima das paixões e interesses que no pleito se agitam e podem perturbar a rectidão do seu juízo.
O juiz tem de exercer a sua actividade segundo os ditames da justiça, portanto é condição essencial da sua função a imparcialidade. É absolutamente necessário que a convicção do juiz se forme com inteira isenção e objectividade, na apreciação serena e imperturbável dos factos da causa.”
Assim sendo, as “circunstâncias que podem afectar a imparcialidade do magistrado, que podem perturbar a rectidão do seu juízo, são de duas ordens: subjectivas e objectivas. Designamos por circunstâncias subjectivas as relações do juiz com as partes, e por circunstâncias objectivas as situações em que o juiz se encontra a respeito do próprio objecto da causa.”
E como “as influências susceptíveis de comprometer a imparcialidade do julgador não revestem todas a mesma gravidade, ou, por outras palavras, não oferecem o mesmo perigo, não actuam com a mesma intensidade, bem se compreende que o legislador tome, em face delas, atitudes ou providências diferentes. Assim, sucede que esses factores umas vezes produzem incapacidade absoluta do magistrado, outras vezes incapacidade meramente relativa.
Se a incapacidade é absoluta, pode dizer-se que o juiz fica privado do poder jurisdicional. É o caso do judex inhabilis, de que fala Goldschmidt (Derecho procesal civile, pág. 157).
Se a incapacidade é relativa, o juiz continua dotado de poder jurisdicional, mas não pode exercê-lo a partir do momento em que a incapacidade seja suscitada, ou por declaração espontânea do juiz, ou por arguição das partes. Teremos então o judex suspectus.”
Assim, mesmo no âmbito do Código de Processo Penal actualmente vigente em Macau (CPP), consagram-se como espécies de garantias da imparcialidade do julgador, os impedimentos (art.os 28.º e 29.º), as recusas e as escusas (art.º 32.º).
Ora, ainda adaptada a doutrina de ALBERTO DOS REIS na obra ibidem às normas do CPP nesta matéria, é de concluir que:
– o impedimento caracteriza-se pelo seguinte traço: verificado o facto especificado na lei, o juiz tem o dever de imediatamente se declarar impedido e portanto de se abster de intervir (art.º 30.º, n.º 1). Se o não fizer, podem o Ministério Público, o arguido, o assistente ou parte civil, logo que sejam admitidos a intervir no processo, provocar a declaração do impedimento, em qualquer estado do processo (art.º 30.º, n.º 2);
– a recusa tem de ser arguida pelo Ministério Público, arguido, assistente ou parte civil. Os fundamentos dela são necessariamente diversos dos do impedimento, e de carácter menos grave dos do impedimento, traduzidos em “correr o risco de ser considerada suspeita [a intervenção de um juiz], por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade” (art.º 32.º, n.os 1 e 2);
– e a escusa, apesar de se reconduzir aos mesmos fundamentos da recusa, corresponde a um pedido de dispensa dirigido pelo juiz ao tribunal competente (art.º 32.º, n.º 3).
Em moldes semelhantes defendem também MANUEL LEAL-HENRIQUES e MANUEL SIMAS-SANTOS, in Código de Processo Penal de Macau, Macau – 1997, págs. 90 a 91, segundo os quais:
– o dispostivo contido no art.º 32.º do CPP “completa o esquema legal de garantias de imparcialidade das decisões judiciais iniciado com o art.º 28.º… A recusa é um expediente que serve para impedir o juíz de funcionar em determinado processo… Este mecanismo … só pode partir da iniciativa de terceiros… A escusa é outro mecanismo com a mesma finalidade, mas que consiste em ser o próprio juiz a solicitar dispensa de intervenção no processo, quando, também por motivo sério e grave, se possa pôr em dúvida a sua imparcialidade. No Código anterior esta matéria era tratada sob o nome de suspensão dos juízes. … <> (COSTA PIMENTA…).”
Sendo certo que conforme o já defendido no douto Acórdão de 2/2/1999 do Tribunal da Relação de Lisboa de Portugal, no Processo n.º 67445 (in www.dgsi.pt/jtrl.nsf/3318…), citado aqui a título de mera referência académica: a suspeita sobre a imparcialidade do juiz só é susceptível de conduzir à recusa deste quando objectivamente considerada. Não basta um puro convencimento por parte do requerente para se tenha por verificada a suspeição. Nem basta qualquer motivo gerador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, sendo necessário que esse motivo seja grave e sério, circunstâncias que, na falta de critério legal, terão que ser ajuizadas a partir do senso e experiência comuns.
Em sentido convergente, cfr. também, a título de mera referência académica, o douto Acórdão de 10/7/1996 do Tribunal da Relação de Coimbra de Portugal, in Col. Jur. XIX, 4, 62, aliás já citado no douto Acórdão de 15/10/1999 do então Tribunal Superior de Justiça de Macau no Processo n.º 1235 (in Jurisprudência 1999, II Tomo, págs. 659 a 661): a seriedade e gravidade do motivo ou motivos causadores do sentimento de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz têm de ser considerados objectivamente, não bastando um puro convencimento subjectivo para que se possa ter por verificada a ocorrência da suspeição.
Assim, deve ser deferido o incidente da recusa de juiz se a sua actuação se mostra fundada numa predisposição psicológica, num estado de alma legitimante de que a rectidão do julgamento podia ser seriamente afectada tomando em consideração que não basta que o magistrado seja imparcial, sendo necessário que o pareça – cfr. ainda, mas também a título de mera referência académica, o outro douto Acórdão de 1/2/1995 do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de Portugal, no Processo n.º 334653 (in www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182…).
Surgindo, pois, a imparcialidade “como exigência específica de uma verdadeira decisão judicial”, defenida, por via de regra, “como ausência de qualquer pré-juízo ou preconceito em relação à matéria a decidir ou às pessoas afectadas pela decisão” – cfr. o douto Acórdão de 13/1/1988 do Supremo Tribunal de Justiça de Portugal, no Processo n.º 877/97, invocado aqui apenas a título de referência académica.
Aliás, em jeito de terminar, não fica inútil citar também o douto Acórdão da Relação de Coimbra de Portugal, de 2/12/1992, in Col. Jur., XVII, 1992, ainda que a título de mera referência académica, segundo o qual: o simples receio ou temor de que o juiz, no seu subconsciente, já tenha formulado um juízo sobre o thema decidendum, não constitui fundamento válido para a sua recusa. Há sempre que alegar factos concretos que constituem motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
Na esteira de todo o acima abordado a nível jurídico-doutrinário, e agora versando concretamente sobre o pedido de escusa sub judice, é de concluir, ante os elementos fácticos já coligidos na parte II do presente acórdão, que o referido filho do arguido – o qual irá provavelmente depor como testemunha na futura audiência contraditória – tem sido o bom amigo da Mm.a Juíza requerente e que esta também conhece da personalidade do arguido, o que, no caso de esta ter que julgar a causa penal em questão, constituirá naturalmente um motivo, sério e grave, adequado de gerar a desconfiança sobretudo do sujeito ofendido no crime imputado ao arguido, sobre a imparcialidade dela na condução da audiência de julgamento e na emissão da decisão final sobre a causa.
Procede, assim, a pretensão de escusa, por estar verificado o requisito material exigido na parte final do n.o 1 do art.o 32.o do CPP.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em deferir o pedido de escusa da Mm.a Juíza requerente Dr.a A, devendo esta proceder nos termos ditados pelo art.o 35.o do CPP, em relação ao Processo n.o CR1-11-0322-PCS do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base.
Macau, 19 de Janeiro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 46/2012 Pág. 1/13