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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso civil
N.° 32 / 2005

Recorrente: A
Recorridos: B
Região Administrativa Especial de Macau
Interessados incertos





1. Relatório
   A intentou a acção declarativa com processo ordinário perante o então Tribunal de Competência Genérica, pedindo que seja declarada proprietária do prédio onde está instalado o Templo A1 ou subsidiariamente proprietária do domínio útil do mesmo prédio.
   Após o julgamento, o Tribunal Judicial de Base declarou a autora como titular do domínio útil do referido prédio.
   A ré B interpôs recurso desta sentença para o Tribunal de Segunda Instância, pedindo que seja revogada a referida sentença, absolvida a ré da instância ou mesmo do pedido, e condenada a autora como litigante de má-fé. Por seu lado, a autora, como recorrida, para além de pedir a improcedência do recurso, requereu a ampliação do recurso no sentido de a declarar proprietária do prédio em causa e a condenação da ré-recorrente por litigância de má-fé.
   Por acórdão proferido no processo n.º 245/2004, o Tribunal de Segunda Instância concedeu provimento parcial ao recurso, revogando a sentença do Tribunal Judicial de Base, por os pedidos da autora estarem manifestamente em oposição com a disposição do art.º 7.º da Lei Básica, e julgou improcedentes os pedidos de condenação por litigância de má-fé formulados por ambas as partes do recurso.
   Inconformada com o acórdão, vem a A recorrer para este Tribunal de Última Instância, formulando as seguintes conclusões nas suas alegações:
   “1. O presente recurso é interposto do douto acórdão que com declaração de voto de vencido, concedeu provimento parcial ao recurso apresentado pela Associação contestante, então recorrente, revogando a decisão que julgou a procedência da acção.
   2. O objecto do presente recurso, por força do disposto no art.º 638.º do Código de Processo Civil actualmente vigente – que prevê a inadmissibilidade de recurso das decisões proferidas pelo Tribunal de Segunda Instância que confirmem, sem voto de vencido, e ainda que por diverso fundamento, a decisão proferida na primeira instância – limita-se à impugnação da decisão de improcedência do pedido subsidiário formulado na petição inicial o qual se traduz em declarar a autora, para todos os efeitos legais, nomeadamente de registo, como a exclusiva titular do domínio útil do prédio composto pela edificação central do Pagode ou Templo A1.
   3. Da matéria de facto que resultou assente da discussão da causa resulta que, a autora provou os fundamentos do seu pedido subsidiário e que está em equação no presente recurso, como resultou também não ter qualquer fundamento a pretensão de ser declarado como terreno vago a edificação central do Templo ou Pagode A1.
   4. Efectivamente, o prédio em causa não se integra no domínio privado do Território, nem é pelo facto de o mesmo estar omisso na Conservatória do Registo Predial de Macau que deve ser declarado como terreno vago nos termos do art.º 7.º da Lei de Terras (o qual é pura e simplesmente inaplicável à presente situação) e, como tal, insusceptível de aquisição por usucapião.
   5. O que releva para a aquisição por usucapião do domínio útil deste prédio por parte da autora, tendo em conta as normas legais que são realmente aplicáveis à presente situação, é que, esta alegou e provou que vem possuindo o Templo ou Pagode A1 desde 1926 como se de uma verdadeira proprietária se tratasse e que este imóvel foi construído e vem sendo possuído e considerado propriedade particular há mais de 450 anos.
   6. Elemento essencial para essa aquisição é então a posse que a autora vem mantendo sobre o Templo ou Pagode A1.
   7. Como resulta da matéria provada, a recorrente vem exercendo sobre o Templo ou Pagode A1 um conjunto de poderes de facto e acções, alguns isolados, outros com carácter continuado, que correspondem a actos de gozo material reveladores de uma relação possessória.
   8. Da matéria de facto assente resulta também que a autora actuou sempre, e continua a actuar na convicção de ser a proprietária do Templo ou Pagode A1, ou seja actua com animus sibi habendi.
   9. A autora detém a posse do Templo ou Pagode A1 uma vez que desde a sua constituição em 1926, até aos dias de hoje goza do domínio de facto sobre esse imóvel, traduzido no exercício efectivo de poderes materiais sobre o mesmo, como titular do direito correspondente àquele domínio de facto, ou seja, o direito de propriedade.
   10. A posse que a autora vem exercendo sobre o imóvel em apreço é uma posse de boa fé, pacífica e pública – conforme o disposto nos art.ºs 1259.º, 1260.º, 1261.º e 1262.º do Código Civil de 1966, correspondentes aos art.ºs 1183.°, 1184.°, 1185.° e 1186.° do Código Civil actualmente em vigor.
   11. A posse exercida com as características supra enunciadas, permitiria, em princípio, à autora invocar a aquisição, por prescrição aquisitiva (usucapião) do direito de propriedade do Templo ou Pagode A1. No entanto, face à aparente ausência de título em que se fundaria a aquisição desse direito a referida situação estará excluída. Deste modo, há que fazer apelo ao disposto no n.º 4 do art.º 5.° da Lei de Terras (Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho), aditado pela Lei n.º 2/94/M, de 4 de Julho, cuja aplicação, como se verá em seguida, não se encontra excluída pela Lei Básica da RAEM.
   12. O disposto no n.º 4 do art.º 5.° da Lei de Terras permite à autora, face à posse que provou, invocar a aquisição por usucapião do domínio útil sobre o Templo ou Pagode A1, ao abrigo do disposto nos art.ºs 1287.° a 1289.° , e 1296.° do Código Civil de 1966 (correspondentes aos art.ºs 1212.° a 1214.° e 1221.º do actual Código Civil) e dos n.ºs 3 e 4 do art.º 5.° da Lei de Terras, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 2/94/M de 4 de Julho.
   13. Não havendo registo do Templo ou Pagode A1 (o prédio está omisso na Conservatória do Registo Predial), a lei faz presumir o aforamento dos prédios urbanos desde que não haja título de aquisição ou registo destes, ou prova do pagamento do foro e a sua posse por particular há mais de vinte anos (como sucede no caso sub judice), estabelecendo que o domínio útil é adquirível por usucapião, nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 5.° da Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho (Lei de Terras).
   14. In casu, não restam dúvidas que se está no campo das relações meramente privadas, em que a recorrente possuiu, como continua a possuir o mencionado prédio, e em tudo se comporta como proprietária, à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sendo como tal reconhecida por todos, durante esse tempo, pelo que adquiriu o direito correspondente aos actos praticados, através do mecanismo da usucapião e, atendendo ao disposto nos n.ºs 3 e 4 do art.º 5.º da Lei de Terras, ou seja, adquiriu o domínio útil do referido prédio.
   15. O que importa ter presente para o efeito legal de aquisição por usucapião do domínio útil deste prédio, em relação ao qual não existe título de aquisição e não há indício de concessão por aforamento, é a sua posse por particular há mais de 20 anos. É esta a solução imposta pelo Direito objectivo, que no n.º 4 do art.º 5.º da mencionada Lei, com a redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 2/94/M de 4 de Julho, consagra uma presunção legal de aforamento pelo Território dos prédios urbanos detida pública, pacífica e ininterruptamente, por particular há mais de 20 anos e a consagração legal expressa de que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
   16. É a própria lei que, no caso dos prédios com aquelas características, ficciona o seu aforamento, admitindo a aquisição por usucapião do respectivo domínio útil, não do domínio directo, exigindo para tal, que o particular em questão demonstre a sua posse sobre os imóveis, por um período de tempo superior a vinte anos, o que no presente caso sucedeu.
   17. ‘Para ser considerado legalmente como vago (...) não basta que o terreno não tenha entrado definitivamente no regime de propriedade privada ou no regime do domínio público (...) É necessário que ele não tenha sido ainda afectado, a título definitivo, a qualquer finalidade pública ou privada. E quanto a esta afectação – que basta para afastar a incorporação do terreno no círculo dos terrenos vagos – a lei não exige nenhum título, não estabelece nenhuma forma externa especial. Contenta-se manifestamente com uma afectação de facto, com um aproveitamento real, com uma aplicação efectiva do terreno a qualquer finalidade (a qualquer, note-se bem!) pública e privada. E essa afectação de facto (ou aplicação efectiva) do imóvel, retirando-o da área dos terrenos vagos, integra-o naturalmente no regime da propriedade privada ou no regime da dominialidade, consoante a natureza privada ou publicística da afectação que lhe foi dada’ – Antunes Varela, A aquisição de imóveis por usucapião no Território de Macau, in Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 127°, n.º 3838, p. 8.
   18. Além disso, importa referir que o prédio em questão tem toda a sua área edificada e, assim, totalmente ocupada pelo edifício nele incorporado (vide resposta ao quesito 1.°) pelo que a autora tem, indubitavelmente, o direito a adquirir, pelo menos, o domínio útil da totalidade do imóvel em questão, por aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 2/94/M de 4 de Julho.
   19. A autora vem fruindo o referido imóvel há mais de 77 anos, continuamente, por forma pública e pacífica, perante todos e, sem oposição, e com a convicção de ser a dona e legítima proprietária do mesmo, sendo que tal posse confere-lhe o direito de aquisição por usucapião do imóvel em causa nos termos das disposições legais supra mencionadas.
   20. ‘Nem se diga que o regime das Terras em vigor na RAEM obsta ao reconhecimento do direito da autora.
   (...)
   É que não havendo registo do Templo ou Pagode A1 (o prédio está omisso na Conservatória do Registo Predial), a lei faz presumir o aforamento dos prédios urbanos desde que não haja título de aquisição ou registo destes, ou prova do pagamento do foro e a sua posse por particular há mais de vinte anos (como sucede no caso sub judice), estabelecendo que o domínio útil é adquirível por usucapião, nos termos do disposto no n.º 4 do art.º 5.º da Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho (Lei de Terras).
   (...)
   In casu, não restam dúvidas que se está no campo das relações meramente privadas, em que a autora possui, como continua a possuir o mencionado prédio, e em tudo se comporta como titular do Direito Real à vista de toda a gente, de forma pacífica e continuada, sendo como tal reconhecida por todos, durante esse tempo, pelo que adquiriu o direito correspondente aos actos praticados, através do mecanismo da usucapião (...)”.
   21. Ao defender a aplicação ao presente caso do art.º 7.° da Lei Básica, nomeadamente para concluir, não mais ser possível, desde a sua entrada em vigor a aquisição por usucapião do domínio útil a que se refere o art.º 5.°, n.º 4 da Lei de Terras, o douto acórdão recorrido faz uma errada aplicação da lei substantiva.
   22. Ao contrário do que defende a decisão recorrida, o escopo do art.º 7.º da Lei Básica não são os prédios urbanos mas apenas os terrenos.
   23. A letra da lei não é de molde a deixar dúvidas quanto a este aspecto. O legislador da Lei Básica quis quanto a este aspecto particular manter e fazer respeitar o quadro legislativo que já vigorava em Macau. Com efeito, não podem confundir-se os conceitos de prédio urbano e de terreno vago, por muito extenso que seja o sentido a atribuir a esta expressão legal. Na verdade, não se pode sem ofensa do preceituado no art.º 9.º, n.º 3 do Código Civil, afirmar que o legislador escreveu ‘terrenos’ onde queria dizer ‘imóveis.’.
   24. A Jurisprudência por diversas vezes foi chamada a pronunciar-se sobre a aquisição por usucapião de prédios urbanos do domínio privado do Estado, mas o certo é que unanimemente e em uníssono tem concluído pela possibilidade dessa forma de aquisição. Cite-se a título meramente exemplificativo o acórdão proferido em 8 de Fevereiro de 1978 pelo Tribunal da Relação de Lisboa: ‘no direito português a publicidade das coisas resulta da lei: é um carácter atribuído pelo direito positivo. Os bens imóveis ingressados no domínio privado do Estado podem ser adquiridos por usucapião’ (in BMJ 276.º-314). Tal entendimento é não só partilhado pacificamente pela Jurisprudência como pela Doutrina, vejam-se as sábias palavras de Marcello Caetano: ‘a prescrição extintiva, como a aquisitiva, actua a favor ou contra a Administração nos termos gerais do Direito privado e também em casos especialmente contemplados pela lei administrativa’, in Manual de Direito Administrativo, Vol. I.
   25. O previsto no n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras em nada viola o previsto no art.º 7.º da Lei Básica, uma vez que ao presumir o aforamento pela RAEM dos prédios dos quais não consta qualquer título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro não faz com que o possuidor há mais de vinte anos se torne proprietário do prédio.
   26. A Lei faz operar, conforme supra exposto, uma presunção segundo a qual o Governo da RAEM se torna proprietário do imóvel e assim se ficciona que dá o de aforamento ao possuidor há mais de vinte anos.
   27. O que a autora adquire por usucapião é o domínio útil do prédio urbano e não o domínio directo, ou seja, a titularidade do terreno, a qual se presume passar a pertencer ao Governo da RAEM. Tudo em conformidade com o previsto no art.º 7.° da Lei Básica, o qual prevê precisamente que os ‘solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado (...)’ – o qual – ‘é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas (...).
   28. Há no douto acórdão recorrido uma patente contradição. É que, por um lado entende que o art.º 7.° da Lei Básica ‘impede a limitação ou desdobramento do direito real máximo em que se traduz o direito de propriedade conferido, sem limitação, ao Estado, a partir de 20 de Dezembro de 1999.’, mas conclui que o referido normativo legal ‘só permite o arrendamento ou concessão das terras pertencentes à Região Administrativa Especial de Macau.’
   29. A Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau permite, no seu art.º 7.°, a concessão por aforamento dos terrenos pertencentes ao Governo de Macau, tal entendimento, é tanto aceite pela Jurisprudência, pela Doutrina como pelo Ministério Público.
   30. Desde Dezembro de 1999, os Tribunais de Macau têm julgado dezenas de processos judiciais em que o pedido em apreciação tem sido, à semelhança do que sucede com a presente, a declaração de aquisição por particulares do domínio útil de prédios urbanos não registados, em relação aos quais não há prova do pagamento do foro, por aqueles os virem possuindo há mais de vinte anos, sem jamais ter sido suscitada a aplicação do art.º 7.° da Lei Básica ou a alegada revogação tácita do n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras que aquele normativo implicaria.
   31. Assim, à falta de acerto do douto acórdão recorrido acresce a sua total incongruência e incompatibilidade com aquela que tem sido a prática dos Tribunais e da própria Administração desde a entrada em vigor da Lei Básica, que coincidiu com a criação da RAEM. A realização da justiça no caso presente passa também por dar aos presentes autos o mesmo tratamento jurídico que tem sido dado a casos similares, sob pena de se frustrarem as legítimas expectativas de quem recorre aos Tribunais.
   32. É errada a aplicação ao caso dos autos do art.º 7.º da Lei Básica, assim como é incorrecta a não aplicação do regime previsto no n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras na redacção dada pela Lei n.º 2/94/M de 4 de Julho.
   33. Face aos condicionalismos que os autos apresentam, resulta evidente que o art.º 7.º da Lei Básica jamais poderá impedir o efeito pretendido pela autora, defendendo mesmo a produção desses efeitos.
   34. O teor do voto de vencido constitui, no que respeita às suas páginas 1 a 13, fundamento do presente recurso, sendo dele parte integrante para todos os efeitos legais, nomeadamente para os previstos no art.º 639.º do Código de Processo Civil.
   35. Na situação dos autos, em que a autora propôs a acção pedindo a declaração do seu direito de propriedade, ou, subsidiariamente, a declaração de titular do domínio útil sobre o aludido prédio, antes da entrada em vigor da Lei Básica, ser-lhe-ão aplicáveis as conclusões acima expendidas?
   36. A resposta passa pela dilucidação de duas questões: aplicação da lei no tempo e natureza da acção em causa.
   37. Quanto à primeira das supra referidas questões ‘O art.º 12.º não fornece a resposta, não apresenta um critério orientador. Esse critério tem de ser determinado doutrinariamente. Penso que o critério exacto é dado pela distinção atrás formulada entre situações jurídicas instantâneas e situações jurídicas duradouras. São as segundas que se traduzem num exercício continuado ou periódico, as visadas afinal na 2ª parte do n.° 2 do art.º 12.°. Pela sua permanência maior ou menor, elas escapam, quanto ao futuro, à lei antiga, entrando na órbita da lei nova. É a lei nova que define a partir da sua vigência o conteúdo dos poderes do proprietário ou do tutor ou do cabeça de casal, etc.’.
   38. Perante isto, há que relevar esta interpretação que apontaria no sentido de que o conteúdo do direito real anteriormente estabelecido passaria a ser regido pela lei nova, enquanto no que respeita à constituição do direito tempus legis regit. Aliás, o próprio texto da lei Fundamental, no seu art.º 7.º, ressalva ‘os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.’.
   39. Qual o momento em que determinado terreno passou a ser considerado propriedade privada. Face à Lei Básica, só se respeitam as constituições de propriedade privada sobre os terrenos existentes na RAEM até 19 de Dezembro de 1999.
   40. Importa saber qual é o facto constitutivo do direito real por prescrição aquisitiva, se é a posse e o mero decurso do prazo ou se é a sentença que constitui o direito na ordem jurídica.
   41. Neste tipo de acções o que se pretende ver reconhecido é o direito real que se adquire pela posse e pelo decurso do prazo. São estes os pressupostos nucleares constitutivos do direito (elencamos apenas estes, por ora) e que conduzem à sua aquisição, pelo que, indubitavelmente, somos a pronunciar-nos pela natureza não constitutiva desta acção, limitando-se a sentença proferida a reconhecer a existência do direito.
   42. Daqui resulta que quando se pede o reconhecimento de um direito real por ter sido adquirido por via da usucapião não é a sentença que vai operar qualquer mudança na ordem jurídica existente, mas tão somente reconhecer que o interessado adquiriu o direito que pretende ver reconhecido por terceiros e até, eventualmente, registar. E pode até fazê-lo sem recorrer a qualquer acção, bastando recorrer a uma justificação notarial do seu direito, o que por si só é demonstrativo que não é a sentença que confere o direito, ou, pelo menos, de que não é só por essa via que se opera esse reconhecimento.
   43. O acto judicial ou extrajudicial pelo qual se exercita o reconhecimento do direito real por força da usucapião é meramente certificativo, pois a invocação da usucapião tem eficácia retroactiva à data do início da posse (art.º 1213.º do C. Civil). Para acrescentar ainda, reforçando esta ideia, que a aquisição por usucapião é originária, o que significa que o direito se funda apenas na posse e não deriva de qualquer direito na titularidade de outrem, sendo tal posse a medida do direito prescrito, quantum possessum tantum praescriptum.
   44. Estamos então em condições, à luz destes princípios, de iluminar o caso sub judice para se concluir que não há-de ser a sentença o factor constitutivo do direito peticionado.
   45. À usucapião aplicam-se, de um modo geral, por força do art.º 1217.º do C. Civil, as regras da prescrição. Daqui decorre uma importante consequência com repercussão directa no nosso caso: a usucapião também não conduz ipso jure à aquisição do direito em causa, pois que ela tem de ser invocada judicial ou extrajudicialmente, o que vale dizer que tem de ocorrer uma interpelação de terceiros, a chamada invocação perante outrem, seja por via da citação na acção ou das publicações editais no caso das justificações notariais, por força do artigo 296.º do C. Civil.
   46. A publicidade é uma característica dos direitos reais, sendo consabido que a posse oculta não releva. Daí, a necessidade da invocação do direito, elemento fulcral na questão em aberto quanto à determinação do momento relevante para efeitos de respeito pelas situações de propriedade privada pré-constituídas a que se refere o art.º 7.º do Lei Básica. Não sendo a sentença o elemento decisor, não o sendo o decurso do prazo relativo ao exercício da posse boa para usucapir, não sendo sequer o registo predial do direito adquirido (o registo não tem natureza constitutiva, a não ser em situações excepcionais que não respeitam à hipótese sob apreciação), há-de ser pela propositura da acção, com salvaguarda do prazo necessário para proceder à citação que não deixará de ter um efeito interpelativo, que se deve aferir da tempestividade do meio para reconhecimento do direito não impedido pela entrada em vigor da Lei Básica.
   47. Em face deste enquadramento, podemos concluir que se acção foi proposta em Maio de 1999, vários meses antes da entrada em vigor da Lei Básica, vista a natureza da acção e os pressupostos de efectivação daquela aquisição originária, não se vê razão para aplicar ao caso o facto impeditivo proclamado pela Lei Básica, ela própria reconhecendo as situações pré-constituídas.
   48. O acórdão recorrido faz uma errada aplicação do art.º 7.º da Lei Básica ao caso dos autos, como incorre numa incorrecta interpretação do mesmo, pois como se demonstra pela brilhante exposição acima transcrita aquele normativo legal protege e reconhece os efeitos da aquisição originária em apreço nos autos.”
   Pedindo que seja dado provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido com a consequente procedência do pedido subsidiário formulado na petição inicial, sendo declarada como titular do domínio útil do prédio em causa.
   
   Em resposta, a recorrida B apresentou as seguintes conclusões:
   “1. À data da entrada em vigor da Lei Básica da RAEM, não se encontrava ainda declarada / reconhecida a usucapião do domínio útil invocada nestes autos, pelo que não lhe é aplicável a ressalva de reconhecimento do direito de propriedade contida no seu art.º 7.º.
   2. De qualquer modo, a planta cadastral do prédio urbano em causa mostra que este excede a extensão imposta pelo n.º 1 do art.º 2.º da Lei n.º 2/94/M, não podendo, por isso, ser objecto da usucapião prevista no n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras.”
   Pedindo que seja negado provimento ao recurso, confirmando a acórdão recorrido.
   
   Em representação dos recorridos RAEM e interessados incertos, o Ministério Público emitiu a seguinte resposta:
   “1. Recorre a autora do douto acórdão que revogou a decisão que havia julgado procedente a acção.
   Cremos, todavia, que não lhe assiste razão.
   E não podemos, de facto, deixar de subscrever as judiciosas considerações do acórdão recorrido.
   Antes, porém, tentaremos fazer, a propósito, um breve enquadramento histórico.
   2. A partir da data da sua instalação, em Abril de 1993, o Tribunal Superior de Justiça mostrou-se dividido quanto à questão de saber se, face aos art.ºs 5.º, 6.º, 7.º e 8.º da Lei de Terras (Lei n.º 6/80/M, de 5 de Julho) e a normas jurídicas de outros Diplomas legais, podia ser declarada a usucapião do direito de propriedade de terrenos a favor de particulares com base na posse, se estes não comprovassem a existência de um título formal de aquisição do direito.
   Pronunciaram-se negativamente, entre outros, os acórdãos de 22.9.93, 28.9.94 e 7.12.94, prolatados nos processos n.ºs 1, 197 e 213, respectivamente.
   E, em sentido contrário, decidiram os acórdãos de 9.7.93 e 29.3.95, tirados nos processos n.ºs 31 e 235, respectivamente.
   Pelo assento de 18.10.95, proferido no processo n.º 295, vingou a primeira tese, tendo sido uniformizada jurisprudência no sentido de que ‘nas acções de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre terrenos, intentada contra o Território de Macau, incumbe ao autor provar a existência de título formal de aquisição’.
   Entretanto, nunca suscitou dúvidas que podia ser adquirido por usucapião o domínio útil de prédios, já pertencente a particulares, em que o domínio directo pertencesse ao Território (cfr. acórdãos de 14.7.93, 22.9.93 e 13.10.93, processos n.ºs 16, 36 e 67, respectivamente).
   3. O legislador, perante a divisão da jurisprudência, tendo em conta o facto de muitos particulares, estando há longo tempo na posse de terrenos e imóveis, não conseguirem regularizar a situação dos mesmos, por não possuírem título formal de aquisição do direito, acabou por aditar o n.º 4 do art.º 5.º à Lei de Terras, pelo qual ‘não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pelo Território e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil’.
   Permitiu-se, assim, resolver a situação dos particulares, até porque a nova disposição legal propiciou, àqueles que tinham visto improceder as acções judiciais em que haviam pedido o reconhecimento do direito de propriedade, a propositura de uma nova acção, pedindo agora a aquisição do domínio útil por usucapião, tendo, por outro lado, autorizado a contagem desde o início do seu exercício da posse invocada para efeitos de usucapião do domínio útil (cfr. art.º 3.º da Lei n.º 2/94/M, de 4.7).
   Há que recordar que o mencionado assento constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais, ex vi da al. b) do n.º 6 do art.º 2.º do Decreto-Lei n.º 55/99/M, de 8.10, na redacção da Lei n.º 9/1999.
   Por outro lado, nos termos do acórdão do Tribunal Superior de Justiça, de 13.2.96, prolatado no processo n.º 413, o mesmo assento aplica-se, também, a prédios urbanos e não apenas a meros terrenos.
   4. Dispõe o art.º 7.º da Lei Básica:
   ‘Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau’.
   A questão fulcral consiste na interpretação desta norma.
   E ela não poderá deixar de significar, efectivamente, que todos os terrenos sitos em Macau são propriedade do Estado, salvo aqueles sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por particulares (como se expressa o n.º 1 do art.º 5.º da Lei de Terras), de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM.
   O que releva é que, em 19.12.99, não tinha sido reconhecido como privado o terreno dos autos, não se mostrando que a Lei Básica tenha ressalvado os casos que dependessem de processos pendentes naquela data.
   Por conseguinte, o n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras tem de considerar-se revogado pela norma em apreço, pois que, se todos os solos são propriedade do Estado, salvo aqueles que tenham sido reconhecidos como privados antes do estabelecimento da RAEM, não se pode adquirir o domínio útil sobre terrenos após 19.12.99, já que este direito real menor é incompatível com o direito de propriedade do Estado.
   Ora, sobre o terreno dos autos não foi constituído definitivamente um direito de propriedade por particulares, de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM, uma vez que não estava registado a favor da autora nem esta obteve sentença transitada em julgado a reconhecer a aquisição do direito de propriedade ou do domínio útil até 19.12.99.
   É certo, também, que a autora não pode invocar qualquer frustração de expectativas, sendo certo que a Lei Básica foi aprovada e promulgada em 31.3.93 e amplamente divulgada em Macau, tendo o aditamento do n.º 4 do art.º 5.º da Lei de Terras sido efectuado em 4 de Julho de 1994.
   E não poderia esperar, naturalmente, que a acção em foco, proposta em 15 de Setembro de 1999, pudesse ter o seu termo em 3 meses.
   É irrelevante, finalmente, que a Lei Básica se refira a terrenos e o prédio dos autos seja integrado por construções urbanas.
   É que a recorrente não pode obter o domínio útil apenas sobre as construções sem adquirir a propriedade ou o domínio útil sobre o respectivo terreno.
   5. Improcedem, pelo exposto, as conclusões da recorrente.
   Deve, consequentemente, ser confirmada a douta decisão recorrida.”
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   2.1 O Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância consideraram provados os seguintes factos:
   “Da matéria de facto assente:
   - A autora é uma associação. (alínea A da Especificação).
   - Que reúne só descendentes dos fundadores da Igreja de culto budista vulgarmente conhecida por Pagode “A”, mais conhecido por Templo A1, erigido em Macau há mais de 450 anos, numa povoação. (alínea B da Especificação).
   - A associação autora, cujos estatutos foram aprovados pela Portaria n.° XX-X, de X de X de XXXX, publicada no BOM n.° X, de XX/X/XXXX, encontra-se inscrita nos Serviços de Identificação de Macau sob o n.° XXX (alínea C da Especificação).
   - O prédio composto pela edificação central do Templo ou Pagode A1, ora em causa nestes autos, encontra-se representado na planta emitida pela Direcção dos Serviços de Cartografia e Cadastro (alínea D da Especificação).
   - Tal imóvel situa-se na [Endereço(1)] sem número de polícia (alínea E da Especificação).
   Tem as seguintes confrontações:
   NE - Terreno junto à [Endereço(1)] (descrito sob o n.° XXXXX);
   SE - Terreno junto à [Endereço(1)] (descrito sob n.° XXXXX e XXXXX);
   SW - Terreno junto à [Endereço(1)] (descrito sob n.ºs XXXXX e XXXXX);
   NW - [Endereço(2)], n.° X (descrito sob o n.° XXXX), n.ºs X-X (descrito sob o n.° XXXXX), n.° XX (descrito sob o n.° XXXXX) e n.° XX (descrito sob o n.° XXXX), terrenos juntos à [Endereço(3)] e à [Endereço(2)] (que se presumem omissos na CRP), terreno junto à [Endereço(3)] (descrito sob o n.° XXXXX) e viela sem designação junto à [Endereço(3)] (alínea F da Especificação).
   - O mesmo imóvel encontra-se omisso na Conservatória Registo Predial de Macau (alínea G da Especificação).
   - Estando omisso na matriz predial urbana (alínea H da Especificação).
   - O prédio ora em causa, atento o seu prestígio religioso, beleza arquitectónica e interesse histórico-cultural, tem sido já classificado oficialmente como monumento pelo próprio Governo de Macau e por várias vezes, a última das quais através do Decreto-Lei n.º XX/XX/M, de XX de X (alínea I da Especificação).

   Da base instrutória:
   - O imóvel tem uma área total de X.XXXm2, toda ela edificada e assim, totalmente ocupada pelo edifício que nela está incorporado (resposta ao quesito 1º).
   - O prédio em causa foi adquirido, inicialmente, para a referida Igreja ou Pagode, pelos seus fundadores, há mais de quatro séculos e meio, por contratos não identificados (resposta ao quesito 2º).
   - Desde então, foi sempre possuído por aquela Igreja de culto budista erigida em Macau, através dos seus fundadores e, sucessivamente, dos descendentes destes, sempre na convicção de que o prédio lhes pertencia (resposta ao quesito 3º).
   - Pelo que, quando a autora legalizou a existência dessa Igreja ou Pagode agora sob a forma associativa, numa associação que reunia (e reúne) exactamente os descendentes dos fundadores daquela, estes doaram à autora o referido prédio (resposta ao quesito 4º).
   - A autora passou, a partir daí até hoje a ser considerada por várias pessoas como legítima ‘proprietária’ do templo (resposta ao quesito 5º).
   - A autora, desde então, manteve sempre a sua sede efectiva no mencionado prédio, nele e a partir dele sempre exercendo as suas actividades religiosas e de beneficência até aos dias de hoje (resposta ao quesito 6º).
   - Foi na convicção de legítima proprietária que, desde então e até hoje sempre nele efectuou, a expensas suas e à vista de todos, as obras, nomeadamente de construção, manutenção, conservação e beneficiação, que considerou necessárias ou convenientes (resposta ao quesito 7º).
   - A recuperação, constante limpeza e regular manutenção e beneficiação das variadíssimas capelas e respectivos altares nele existentes e destinadas à prática da religião budista, que sempre foram utilizadas pelos membros da Associação para venerar Buda e os deuses da sua religião, exercer os ritos do seu culto, fazer propaganda das suas doutrinas, e, bem assim, para proporcionar aos devotos e visitantes a veneração e prática do culto supra referidas e os doutos ensinamentos do budismo (resposta ao quesito 8º).
   - A constante manutenção e conservação do espaço nele situado destinado à veneração dos antepassados (onde se guarda e exibe inúmeras pequenas placas com fotografias de falecidos), que sempre foi utilizada pela autora para proporcionar aos descendentes e devotos essa veneração e, assim, a prática em toda a sua dimensão espiritual, da religião budista (resposta ao quesito 9º).
   - A remodelação quase total e a constante manutenção da sala nele situada destinada a refeitório, que sempre foi utilizada pela autora para proporcionar refeições a grupos de visitantes, nomeadamente devotos e carenciados, após serviços religiosos (resposta ao quesito 10º).
   - A renovação quase total, a periódica reparação e a constante manutenção e limpeza dos anexos nele integrados destinados a dormitório, sala de estar e aposentos em geral, que sempre foram utilizados pelos membros da Associação que vivem no pagode – os bonzos – para esse fim e para que, sem serem perturbados, possam praticar, no dia a dia, religião budista a que votaram a sua vida (resposta ao quesito 11º).
   - A construção de alguns e a regular manutenção de todos os compartimentos situados no edifício que sempre foram utilizados pela autora para armazenar os mais diversos utensílios, ornamentos e apetrechos, necessários ou úteis a toda a actividade religiosa, de beneficência e de misericórdia da autora (resposta ao quesito 12º).
   - A edificação e regular reparação, substituição e manutenção de vários tectos, clarabóias e coberturas e a colocação e regular manutenção de portas ou divisórias nas ditas capelas, espaços, salas, anexos e compartimentos supra referidos, assim como nos inúmeros e estreitos corredores que as separam (resposta ao quesito 13º).
   - A recuperação e periódica reparação e manutenção das paredes e do telhado do edifício principal do Pagode, dentro do qual se entrecruzam as capelas, compartimentos, salas, anexos espaços e corredores supra referidos (resposta ao quesito 14º).
   - O restauro e constante conservação dos monumentos religiosos espalhados pelo prédio que sempre foram usufruídos pela autora para proporcionar os mais variados ritos do culto budista, desde a queima de incenso até à veneração directa de estátuas que simbolizam Buda ou os vários deuses budistas (resposta ao quesito 15º).
   - A reconstrução parcial e constante conservação, manutenção e limpeza do amplo átrio de entrada, em parte ao ar livre, que sempre foi utilizado pela autora quer para permitir e proporcionar a entrada, de forma ampla, no edifício principal do Pagode, por parte dos seus próprios membros, dos devotos, visitante, pobres e necessitados, quer para, nas festividades religiosas, organizar a entrada, de forma calma, dos enormes aglomerados de devotos que pretendem venerar a deusa e praticar o culto budista (resposta ao quesito 16º).
   - E, pelo menos até à década de 1980, a manutenção e pintura periódica dos muros que delimitam prédio em causa do exterior (resposta ao quesito 17º).
   - A autora nunca pagou as rendas (resposta ao quesito 18º).
   - A autora sempre exerceu sobre o imóvel o poder de facto desde a sua constituição e a doação nessa altura efectuada (resposta ao quesito 19º).
   - Como tal sempre foi considerada, por maioria veneradora do culto budista da deusa, frequenta a edificação central do pagode ou que, não sendo budista, atendendo ao seu enorme interesse e beleza, já o visitou (resposta ao quesito 20º).
   - O prédio é conhecido e apelidado pela população e pelo próprio Governo de Macau exactamente com o nome da ‘A1’ (resposta ao quesito 21º).
   - A autora vem, desde a sua constituição em 1926, exercendo uma posse sobre o prédio em causa, fundada na referida doação, de modo a poder ser constatada por todos, sem violência, nem oposição de ninguém, de forma ininterrupta e com a convicção de não estar a lesar o direito de outrem, posse que desde então continua a exercer, com o animus de ser titular do correspondente direito de propriedade (resposta ao quesito 22º).
   - A autora detém assim, a posse, do prédio em questão, desde 1926 (resposta ao quesito 23º).
   - Posse que sempre manteve, até ao presente, de forma pacífica, pública e contínua (resposta ao quesito 24º).
   - O prédio em causa foi construído e vem sendo possuído e considerado como propriedade particular há mais de 450 anos (resposta ao quesito 26º).
   - O prédio em causa cuja área ocupada com construção com 1.935m2, área descoberta com 1.929m2, área ocupada por barracas com 38m2 e área ocupada por telheiros com 660m2 (resposta ao quesito 27º).
   - Em data não apurada, mas nos tempos remotos por pessoas não identificada e sempre tem sido administrado por bonzo-mor (resposta aos quesitos 28º e 29º).
   - Os bonzos-mor eram responsáveis pela realização das obras de construção e ampliação do referido Templo (resposta ao quesito 30º).
   - No ano cíclico “Peng Chi” da República da China (1936), o Templo apresentava um avançado estado de degradação por falta de reparações, pelo que foi reconstruído com a traça que hoje se vê pelo banzo C (resposta ao quesito 31º).
   - Desde a fundação da igreja de culto budista também denominada Pagode A, mas vulgarmente conhecida por A1, até aos dias de hoje tem sido a A de facto constituída pelo conjunto dos bonzos do Templo, tem promovido a celebração de todas as cerimónias de culto e festividades religiosas, bem como efectuado todas as obras de conservação ordinária, extraordinária e de beneficiação, tidas por necessárias e/ou convenientes.
   (i) A reparação das capelas e respectivos altares, (ii) a manutenção do espaço destinado à veneração dos antepassados, (iii) a recuperação dos anexos, dependências e aposentos em geral, (iv) a reparação dos tectos, clarabóias e coberturas, (v) a recuperação das paredes e do telhado do edifício principal, (vi) a reestruturação do sistema de saneamento básico, bem como (vii) a pintura e consolidação da muralha exterior do Templo (resposta aos quesitos 32º e 33º).
   - Entre as competências do Bonzo-mor, sempre se inscrevera sem interrupção até aos dias de hoje, as funções de administração do Templo (resposta ao quesito 34º).
   - Ao longo dos séculos até aos dias de hoje, tem sido os próprios bonzos, liderados pelos sucessivos bonzos-mor que executam a gestão administrativa, do Templo nos termos supra descritos, bem como a organização e execução de todas as festividades e cerimónias religiosas aí realizadas, relativas à sustentação do culto de Buda (resposta ao quesito 35º).
   - Têm sido os bonzos do templo que supervisam e/ou levam a cabo todas as actividades de natureza religiosa, beneficente, recreativa e cultural realizadas no ou a partir do Pagode em questão (resposta ao quesito 36º).
   - A Administração do Templo tem sido exercida pelos bonzos do Templo sucessivamente representados pelos seus bonzos-mor, tais como D (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), E, (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), F (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), G, (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX)), H (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), I (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), J (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), K (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), L (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), M (XXXX-XXXX); N (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), O (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), P (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), e actualmente, Q (XXXX-XXXX-XXXX-XXXX), o qual tem sido ‘chefe/administrador’ do Templo (resposta aos quesitos 40º e 41º).”
   
   
   2.2 Questões a apreciar
   A recorrente, para além de invocar a usucapião do domínio útil ao abrigo do art.º 5.º, n.º 4 da Lei da Terra (Lei n.º 6/80/M de 5 de Julho), considera que esta norma em nada viola o art.º 7.º da Lei Básica, uma vez que ao presumir o aforamento pela RAEM dos prédios dos quais não consta qualquer título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento do foro, não se torna o possuidor em proprietário do prédio que pertence ao Governo da Região. Por outro lado, entende ainda que a acção de reconhecimento do direito real com base na usucapião não tem natureza constitutiva. Por a presente acção ter sido proposta antes da entrada em vigor da Lei Básica, não é aplicável a disposição impeditiva do seu art.º 7.º.
   
   Uma vez que a presente acção foi instaurada antes do estabelecimento da Região, em que se discute a questão de pertença do terreno da Região que é expressamente tratada na Lei Básica, temos que apreciar, antes de mais, a questão da transição de processos judiciais anteriores existentes em Macau para a RAEM e dos efeitos da entrada em vigor da Lei Básica sobre a acção.
   
   
   2.3 O efeito da criação da RAEM e da entrada em vigor da Lei Básica sobre o sistema jurídico e os processos judiciais anteriores de Macau
   O sistema jurídico, incluído o sistema judicial, anteriormente vigente em Macau, transitou para a RAEM de modo selectivo, em obediência ao princípio de transição condicional. A criação da Região e a constituição do seu novo sistema jurídico trazem necessariamente consequências aos direitos e deveres da ordem jurídica primitiva de Macau. A questão já foi abordada no acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no dia 26 de Setembro de 2001 no âmbito do processo n.º 7/2001:1
   
   O art.º 11.º da Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China (adiante abreviada por Lei Básica) dispõe sobre a base do sistema fundamental da Região:
   “De acordo com o artigo 31.º da Constituição da República Popular da China, os sistemas e políticas aplicados na Região Administrativa Especial de Macau, incluindo os sistemas social e económico, o sistema de garantia dos direitos e liberdades fundamentais dos seus residentes, os sistemas executivo, legislativo e judicial, bem como as políticas com eles relacionadas, baseiam-se nas disposições desta Lei.
   Nenhuma lei, decreto-lei, regulamento administrativo ou acto normativo da Região Administrativa Especial de Macau pode contrariar esta Lei.”
   Em relação à transição de leis anteriormente vigentes em Macau, prescreve assim o art.º 8.º da Lei Básica:
   “As leis, os decretos-leis, os regulamentos administrativos e demais actos normativos previamente vigentes em Macau mantêm-se, salvo no que contrariar esta Lei ou no que for sujeito a emendas em conformidade com os procedimentos legais, pelo órgão legislativo ou por outros órgãos competentes da Região Administrativa Especial de Macau.”
   Reflectem aqui “os princípios de os sistemas e políticas da RAEM se fundamentarem na Lei Básica e da transição condicional das leis previamente vigentes em Macau.”
   
   “As leis previamente vigentes em Macau, para poderem ser adoptadas como lei da RAEM e continuar a produzir efeitos, têm de estar em conformidade com o estatuto de Macau sobre que a República Popular da China reassumiu o exercício da soberania, assim como o disposto na Lei Básica, não podendo a contrariar. Em consequência disso, não se trata de uma transição jurídica completa e incondicional, mas sim, de uma transição jurídica condicional e selectiva que tem por critério a Lei Básica. Entre o ordenamento jurídico previamente existente em Macau e o actual da RAEM, existe diferença de princípios que deve ter em atenção na aplicação das leis, em particular das leis previamente vigentes em Macau.”
   Se não ocorresse o retorno de Macau, a alteração do seu estatuto político, nem a modificação substancial do sistema jurídico, então estaríamos simplesmente perante uma questão de pura sucessão de leis aplicáveis, devendo manter a continuidade na sua aplicação.
   “No entanto, não se pode deixar de reconhecer o facto de que a RAEM se fundou no dia 20 de Dezembro de 1999 e a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau da República Popular da China e a Lei de Reunificação, que entraram em vigor no mesmo dia, procederam à alteração de princípios do sistema jurídico previamente vigente, adaptando-o ao novo estatuto político da RAEM. Sob o princípio de manter as leis basicamente inalteradas e tendo a Lei Básica como critério, o ordenamento jurídico previamente existente transita, de forma condicional e selectiva, para o ordenamento jurídico da RAEM. O que ocorre não é uma sucessão de leis em situação normal, mas sim, uma mudança de princípios de todo o ordenamento jurídico. As leis previamente vigentes que estão em desconformidade com os princípios do novo ordenamento não são adoptadas nem podem permanecer aplicáveis. Num ordenamento jurídico, não se pode aceitar a verificação de um novo facto jurídico contrário aos seus princípios. Eis a razão pela qual, no novo ordenamento jurídico, não se pode aplicar uma lei previamente vigente contrária aos seus princípios sob o pretexto da sucessão comum de leis.”
   
   Nos termos do art.° 10.º da Lei de Reunificação:
   “Os procedimentos judiciais, os actos processuais e o sistema judicial existentes antes de 20 de Dezembro de 1999, incluindo os direitos adquiridos pelos magistrados do quadro local nomeados definitivamente, mantêm-se, salvo no que contrariarem a Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau, a presente lei e demais diplomas legais aplicáveis.”
   “A transição do sistema judicial previamente existente em Macau observa igualmente o princípio de transição condicional. Para se manter o sistema judicial previamente existente, incluindo os diversos procedimentos judiciais e actos processuais, tem de estar em conformidade com a Lei Básica, a Lei de Reunificação e outros diplomas legais aplicáveis, em particular a Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999), o que representa o estatuto da Lei Básica como lei constitucional no ordenamento jurídico da RAEM e o princípio de que a Lei Básica constitui a base de todos os sistemas e políticas da RAEM.”
   Por causa da transição condicional dos sistemas jurídico e judicial pré-existentes em Macau, não se pode apreciar os processos judiciais pendentes aquando da criação da Região segundo os princípios que regem a sucessão normal das leis. Antes pelo contrário, tais processos devem ser julgados com o pressuposto de não contrariar a Lei Básica.
   É possível que as transição e alteração substanciais, tão raras como estas, prejudiquem a certeza e a segurança de certas situações jurídicas. No entanto, isso é inevitável face à mudança do estatuto político de Macau.
   Tal como pouco depois do início do funcionamento do Tribunal de Última Instância da Região em 2000, foram logo julgados extintos vários processos de recurso interpostos com fundamento na violação da Constituição da República Portuguesa, segundo as disposições da nova Lei de Bases da Organização Judiciária.2 Posteriormente, julgou inexequível um acórdão do antigo Tribunal Superior de Justiça no processo n.º 7/2001 acima mencionado por contrariar a Lei Básica.
   
   
   2.4 Sobre a pertença da propriedade de prédio
   Foi em 15 de Setembro de 1999 que a recorrente instaurou a presente acção no então Tribunal de Competência Genérica, pedindo que seja declarada titular de propriedade ou domínio útil de um prédio situado na península de Macau.
   No dia 20 de Dezembro do mesmo ano, ou seja, cerca de três meses após a instauração da acção, entrou em vigor a Lei Básica.
   Prescreve o art.º 7.º desta Lei:
   “Os solos e os recursos naturais na Região Administrativa Especial de Macau são propriedade do Estado, salvo os terrenos que sejam reconhecidos, de acordo com a lei, como propriedade privada, antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau. O Governo da Região Administrativa Especial de Macau é responsável pela sua gestão, uso e desenvolvimento, bem como pelo seu arrendamento ou concessão a pessoas singulares ou colectivas para uso ou desenvolvimento. Os rendimentos daí resultantes ficam exclusivamente à disposição do Governo da Região Administrativa Especial de Macau.”
   Desta norma resulta que foi estabelecido pela Lei Básica o princípio de que a propriedade e a gestão dos solos e recursos naturais no âmbito da Região cabem respectivamente ao Estado e ao Governo da Região. No entanto, a fim de respeitar e proteger os poucos terrenos da propriedade privada já existentes em Macau, é admitida excepção a este princípio, isto é, continuar a reconhecer os direitos de propriedade privada de terrenos anteriormente existentes.
   Há um requisito para a excepção, que consiste em que os terrenos de propriedade privada devem ser “reconhecidos, de acordo com a lei, antes do estabelecimento da RAEM.”
   Uma vez que após o estabelecimento da Região, todos os terrenos situados no âmbito territorial da Região são de propriedade do Estado, excepto os que foram reconhecidos como propriedade privada nos termos da lei antes do estabelecimento da Região. Em consequência, não é possível constituir nova propriedade privada de terrenos depois da criação da Região, sob pena de violar a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
   
   Se a acção de reconhecimento do direito de propriedade sobre terrenos fosse proposta por interessados apenas depois do estabelecimento da Região, os seus pedidos estariam manifestamente em desconformidade com o art.º 7.º da Lei Básica por que todos os terrenos não reconhecidos como de propriedade privada até ao estabelecimento da Região passam, a partir deste, a integrar na propriedade do Estado.
   Mesmo que a acção fosse instaurada antes do estabelecimento da Região, tal como acontece com o presente processo, os referidos pedidos também não podem proceder se não houver sentença transitada até ao momento do estabelecimento da Região, o que equivale à falta de reconhecimento nos termos da lei e os pedidos de interessados violam a disposição do art.º 7.º da Lei Básica.
   É a mesma a razão de fundo das duas situações. Desde que não fosse confirmada legalmente a natureza privada da propriedade de terrenos antes do estabelecimento da Região, jamais pode obter a confirmação depois da criação da Região, independentemente da qualificação doutrinal deste tipo de acção como constitutiva ou declarativa, sob pena de violação do princípio consagrado no art.º 7.º da Lei Básica, segundo o qual a propriedade dos terrenos na Região cabe ao Estado. Os tribunais não podem proferir sentença de reconhecimento do direito de propriedade privada sobre os terrenos, em desobediência ao disposto na referida norma, após o estabelecimento da Região, ou seja, a partir da entrada em vigor da Lei Básica.
   
   Não há registos do terreno objecto da presente acção na Conservatória do Registo Predial ou na Direcção dos Serviços de Finanças, nem proprietário já reconhecido no momento da instauração da acção. Embora a recorrente instaurasse a acção três meses e tal antes do retorno de Macau, com o objectivo de obter a propriedade do respectivo terreno por meio daquela, não conseguiu decisão com força de caso julgado que lhe reconhece a propriedade até ao retorno e mesmo até agora. Não sendo reconhecido legalmente o seu direito de propriedade sobre o terreno antes do estabelecimento da Região, é impossível, para a recorrente, obter a propriedade do terreno em causa por meio da presente acção.
   
   
   2.5 Sobre a pertença do domínio útil
   No presente recurso, o que a recorrente, autora da acção, pretende é a procedência do seu pedido subsidiário, ou seja, a declaração da sua titularidade do domínio útil do terreno em causa.
   Em relação a um terreno cujos propriedade ou domínio útil nunca foram reconhecidos a particulares, estará conforme com a disposição do art.º 7.º da Lei Básica o reconhecimento actual do seu domínio útil a favor de particular através da decisão judicial?
   
   O chamado domínio útil é uma parte integrante da enfiteuse, que é uma forma antiga dos direitos reais sobre prédios. Uma vez constituída, tinha carácter perpétuo, sem limitação de prazo (art.º 1492.º, n.º 1 do Código Civil Português de 1966). Na realidade, nela se verificava o desmembramento do direito de propriedade sobre prédios em domínio directo e domínio útil (art.º 1491.º, n.º 1 do mesmo Código).
   Era denominado senhorio o titular do domínio directo, com direito a receber o foro (art.º 1499.º, al. a) do referido Código). Quem tinha o domínio útil era o enfiteuta ou foreiro. Ele tinha direito a usar e fruir o prédio como coisa sua, a construir ou extinguir servidões ou o direito de superfície, e até o direito à remissão do foro quando verificados os requisitos legais, que equivalia a obtenção da propriedade plena (art.ºs 1501.º, al.s a), b) e f) e 1511.º do referido Código).
   Embora deixasse de prever a enfiteuse no Código Civil vigente promulgado em 1999 e considerasse nula a constituição de qualquer nova enfiteuse sobre bens do domínio privado dos particulares a partir da entrada em vigor deste Código, mantêm válidas as enfiteuses anteriores. Segundo o n.º 2 do art.º 25.º do Decreto-Lei n.º 39/99/M, às situações de enfiteuse relativas aos referidos bens e constituídas antes da entrada em vigor deste Código continua, até à sua extinção, a ser aplicável o regime constante do Código Civil de 1966.
   Ainda nos termos da al. b) do n.º 2 do art.º 3.º do mesmo Decreto-Lei, continuam em vigor as disposições relativas à enfiteuse, que subsistem como normas subsidiariamente aplicáveis à concessão de terrenos por aforamento, de harmonia com o preceituado no n.º 1 do art.º 45.º da Lei de Terras.
   
   A concessão por aforamento é uma das formas de disposição de terrenos públicos previstas na Lei de Terras.
   Está regulado no art.º 45.º da Lei de Terras o regime jurídico desta forma de concessão:
   “1. O aforamento rege-se pelas disposições desta lei e diplomas complementares, bem como pelas cláusulas dos respectivos contratos, observando-se em todo o omisso os preceitos aplicáveis do Código Civil.
   2. Não é permitido o subaforamento, nem consentida a remição do foro.”
   Para o concessionário que beneficia da concessão por aforamento, é legítimo usar e fruir o respectivo terreno nos termos definidos pelo art.º 1501.º, al. a) do Código Civil de 1966 e cláusulas do contrato de concessão, só que não lhe é permitida a remissão do foro, isto é, o direito de obter a plena propriedade.
   
   A recorrente pretende adquirir o domínio útil do prédio em causa com base na usucapião.
   Segundo o art.º 5.º da Lei de Terras (cujos n.ºs 3 e 4 foram aditados pela Lei n.º 2/94/M):
“Artigo 5.º
(Propriedade privada)
   1. Consideram-se sujeitos ao regime de propriedade privada os terrenos sobre os quais tenha sido constituído definitivamente um direito de propriedade por outrem que não as pessoas colectivas de direito público.
   2. O Governo procederá à delimitação dos terrenos que, constituindo propriedade privada, confinem com o domínio público.
   3. O domínio útil de prédio urbano objecto de concessão por aforamento pela Região é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.
   4. Não havendo título de aquisição ou registo deste, ou prova do pagamento de foro, relativo a prédio urbano, a sua posse por particular, há mais de vinte anos, faz presumir o seu aforamento pela Região e que o respectivo domínio útil é adquirível por usucapião nos termos da lei civil.”
   Pode-se presumir, desde já, o aforamento pela Região do terreno quando o domínio útil deste for adquirido por usucapião ao abrigo do n.º 4 do referido artigo. Isso implica que o Estado só pode ser titular do respectivo domínio directo, o que é substancialmente diferente da forma de concessão por arrendamento. Tal como o domínio útil de enfiteuse, embora não seja uma propriedade plena, ele torna-se, de facto, uma forma de possuir terrenos na Região por particulares, atendendo as suas características e o conteúdo do direito, como se fosse a repartição do direito de propriedade entre o particular e o Estado, em violação do princípio de que a propriedade de terrenos cabe ao Estado, consagrado no art.º 7.º da Lei Básica.
   Na mesma linha de consideração acima exposta sobre a aquisição da propriedade de terrenos na Região, o domínio útil só constitui a excepção prevista no art.º 7.º da Lei Básica quando for reconhecido legalmente antes do estabelecimento da Região, e assim continua a integrar na esfera de particulares após a sua criação. Se antes desta não conseguisse o reconhecimento legal do domínio útil de terreno, mesmo que a acção destinada a confirmar a titularidade do mesmo domínio por parte de particulares fosse proposta antes do estabelecimento da Região, depois deste nunca pode ser reconhecido por decisão judicial o domínio útil de terrenos na Região a favor de particulares.
   
   É de acrescentar que a Lei Básica foi aprovada e publicada em 31 de Março de 1993. Foi amplamente sujeita a consultas em Macau na fase de elaboração e constantemente divulgada após a promulgação. A recorrente devia conhecer o conteúdo das disposições da Lei Básica. Por isso, não há expectativa legítima em relação à procedência da acção quando a recorrente instaurou a acção apenas pouco mais de três meses antes do estabelecimento da Região.
   
   Improcede manifestamente o pedido da recorrente por desconformidade com a disposição constante do art.º 7.º da Lei Básica.
   A falta de procedência da acção proposta pela recorrente deve-se à entrada em vigor da Lei Básica, facto excepcional que lhe não é imputável. Por outro lado, não resulta dos autos que a autora obtém benefícios com a presente acção. Considerando o princípio da proporcionalidade, não é tributada esta acção.
   
   
   2.6 Em conclusão:
   1. Os sistema jurídico e processos judiciais anteriores de Macau transitaram condicional e selectivamente para a RAEM, tendo por critério a conformidade com a Lei Básica;
   2. Por isso, os tribunais não podem continuar a julgar os processos pendentes à data do estabelecimento da Região segundo os princípios de sucessão normal das leis;
   3. Os terrenos na Região que não foram reconhecidos legalmente como propriedade privada passam a constituir propriedade do Estado depois da criação da Região;
   4. Após o estabelecimento da Região, não se pode obter o reconhecimento de propriedade privada ou domínio útil a favor de particulares dos referidos terrenos através de decisão judicial, independentemente de a acção ser proposta antes ou depois da criação da Região.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar improcedente o recurso.
   Sem custas.


   Aos 5 de Julho de 2006.


Os juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

1 Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM – 2001, p. 556 a 589.
2 Ver os acórdãos do Tribunal de Última Instância proferidos nos processos n.ºs 1/2000, 2/2000, 4/2000 e 8/2000. Acórdãos do Tribunal de Última Instância da RAEM – 2000, p. 425 a 444.
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Processo n.° 32 / 2005 38