Processo nº 984/2010
(Autos de Recurso Civil e Laboral)
Data: 12 de Janeiro de 2012
ASSUNTO:
- Modificabilidade da decisão de facto
- Usucapião do domínio útil
SUMÁRIO:
- Nos termos do nº 1 do artº 599º e do nº 1 do artº 629º do CPCM, este Tribunal de recurso pode alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal de primeira instância quando:
i. Foi cumprido o ónus de impugnação específica da decisão de facto;
ii. Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida;
iii. Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e
iv. Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
- Tendo o domínio útil do prédio em referência já integrado na esfera jurídica privada antes do estabelecimento da RAEM, o mesmo é susceptível de aquisição por usucapião.
O Relator,
Ho Wai Neng
Processo nº 984/2010
(Recurso civil e laboral)
Data: 12 de Janeiro de 2012
Recorrente: A
Recorridos: - Herdeiros desconhecidos de B
- Herdeiros desconhecidos de C
- Herdeiros desconhecidos de D
- E
- Ministério Público e interessados incertos
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – Relatório
Por sentença proferida nos presentes autos, decidiu-se julgar improcedente o pedido do Autor A, pelo qual pede que seja declarado como titular do domínio útil sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 4749, a fls. 140 do Livro B21, sito na Taipa, com entrada actualmente pelos nºs 32-34 da Rua Correia da Silva, por usucapião.
Dessa decisão vem recorrer o Autor, alegando, em sede conclusiva:
1. Em primeiro lugar, vem o recorrente impugnar a decisão de facto ao abrigo do artigo 599°, n.º 1, do CPC (vide, ainda, artigo 629°, n. 1, alíneas a) e b), do CPC respeitante à modificabilidade da decisão de facto), especificando, em seguida, o concreto ponto da matéria de facto que considera incorrectamente julgado (quesito 1°) e os meios probatórios, constantes do processo, que impunham sobre esse ponto decisão diversa da recorrida.
2. Não obstante a documentação constante dos autos com valor probatório totalmente inabalável comprovativa daquela matéria, particularmente de que o prédio em causa foi concedido por aforamento ao abrigo da referida escritura, por um lado, e de que B foi foreiro daquele imóvel desde, pelo menos, 1964, por outro lado, o certo é que o Tribunal considerou NÃO PROVADO o quesito acima aludido, por decisão judicial de fls. 380 dos autos.
3. O Tribunal a quo incorreu assim num perfeito equívoco ao considerar apenas como provado o pagamento do foro do prédio em causa (v., resposta ao quesito 17°), sem ter dado ainda como assente a existência de uma efectiva concessão por aforamento ou enfiteuse do mesmo prédio pelo então Território de Macau, alegação fáctica essa constante do quesito 1° que se encontra materialmente comprovada pela certidão predial de fls. 9 e ss. dos autos.
4. A inscrição predial n.º 192 do livro FK1 revela cabalmente que o direito de propriedade incidente sobre o prédio em causa foi desmembrado em domínio directo e em domínio útil, ao abrigo da escritura de 24 de Fevereiro de 1893 da Repartição da Fazenda Provincial, sendo que o domínio directo passou a estar inscrito a favor do então Território de Macau.
5. Por outro lado, mostra-se ainda como plenamente assente que foi foreiro desse imóvel o Sr. B, sendo que os documentos de fls. 70 a 80 dos autos autos comprovam inequivocamente o pagamento do respectivo foro desde 1964 a 1981, altura em que se deixou de pagar por ser de montante diminuto como resulta da resposta ao quesito 17°.
6. Temos assim que a resposta do Colectivo a quo dada ao quesito 1.º formulado em sede de despacho saneador encerra claramente um claro erro de julgamento que importa corrigir, sendo que os meios probatórios constantes dos autos acima identificados impõem sobre aquele ponto concreto da matéria de facto decisão diversa da recorrida (v., artigos 599°, n.º 1, al. b), e 629°, n.º 1, al. b), do CPC).
7. Com efeito, a decisão de facto adoptada pelo Tribunal Colectivo a quo ao não dar por provado que o referido prédio foi concedido por aforamento violou inquestionavelmente a força probatória plena do documento de fls. 9 e ss. apresentado junto com a respectiva petição inicial.
8. É que trata-se de um documento autêntico com a virtualidade de comprovar plenamente que houve efectivamente uma concessão, por aforamento, desse mesmo prédio pelo então Território de Macau ao abrigo da referida escritura, tomando em consideração a força probatória plena que aquele documento encerra (vide, para o efeito, artigo 365° do Código Civil).
9. Sendo que os factos sujeitos a registo predial provam-se por meio de certidões emitidas pela respectiva Conservatória, constituindo tais certidões documentos autênticos que provam plenamente os factos que neles são atestados, sendo que a força probatória desses documentos apenas pode ser ilidida com base na sua falsidade (vide, nesse sentido, Acórdão do TSI de 5 de Maio de 2005, Processo nº 83/2005).
10. E, neste prisma, constando dos autos a certidão predial em causa, para mais tratando-se de um documento autêntico com força probatória plena e relativamente ao qual não foi arguida a respectiva falsidade (v., artigos 363º e seguintes do Código Civil), não restaria ao Tribunal Colectivo, na sua tarefa de julgar a matéria de facto, outra solução do que considerar provada aquela matéria, sob pena de exorbitar as suas funções, tomando em conta que o quesito 1º limita-se, ao fim ao cabo, a retratar o conteúdo daquele mesmo documento.
11. Em suma, os meios probatórios concretos que constam do processo e que impunham sobre esse ponto da matéria de facto uma decisão diversa da que foi proferida pelo Tribunal Colectivo consistem nos documentos nºs 1 e 14 juntos com a petição inicial, sendo que competia ao Tribunal a quo, em bom rigor, dar como provado que o prédio a que alude a alínea A) dos Factos Assentes foi concedido por aforamento, por escritura de 24 de Fevereiro de 1893 da Repartição de Fazenda Provincial, tendo sido foreiro o Sr. B desde, pelo menos, 1964, sobretudo se levarmos em conta que, de acordo com o disposto no artigo 556º do CPC, as "respostas aos quesitos não têm de ser meramente afirmativas ou negativas, podendo ser restritivas ou explicativas, desde que se contenham dentro da matéria articulada" - vide Acórdão do STJ, de 3.12.1974: BMJ, 242º - 212.
12. Em segundo lugar, vem o recorrente impugnar ainda a mesma decisão de facto relativa à resposta que foi dada ao quesito 1°, com base num documento novo superveniente que ora se junta que consiste numa nova certidão predial datada de 12 de Outubro de 2010 respeitante ao mesmo prédio, ao abrigo do disposto no artigo 629°, n. 1, alínea c), do CPC (Modificabilidade da decisão de facto).
13. Em face do novo elemento registral que a mesma certidão encerra (ou seja, o nome do enfiteuta, B, a favor do qual foi concedido, por aforamento, o referido prédio, ao abrigo da referida escritura de 24 de Fevereiro de 1893), fica assim plenamente provado que o direito de propriedade incidente sobre o prédio em causa foi desmembrado em domínio directo e em domínio útil, ao abrigo da escritura de 24 de Fevereiro de 1893 da Repartição da Fazenda Provincial, passando o domínio directo a estar inscrito a favor do então Território de Macau e o domínio útil inscrito a favor de B, obrigando-se este a pagar anualmente o foro de MOP$0.32.
14. Em suma, o documento novo superveniente ora junto certifica, por si só, a matéria constante do quesito 1°, ou seja, de que "O PRÉDIO A QUE ALUDE A ALÍNEA A) DOS FACTOS ASSENTES FOI CONCEDIDO A B POR AFORAMENTO, POR ESCRITURA DE 24 DE FEVEREIRO DE 1893 DA REPARTIÇÃO DE FAZENDA PROVINCIAL".
15. Sendo que se trata de um documento novo superveniente porquanto não apenas foi só recentemente emitido (12/10/2010) como também porque o recorrente só tomou conhecimento do seu contéudo, particularmente do novo elemento registraI que se prende com a indicação do nome do enfiteuta e que foi inscrito apenas em 17 de Janeiro de 2006, no preciso momento em que o mesmo documento foi emitido e entregue ao recorrente, i.e., em 12 de Outubro de 2010.
16. Efectivamente, em 17 de Janeiro de 2006, após a interposição da presente acção judicial (e da própria junção da certidão de fls. 9 e ss.) foi aditada à inscrição n.º 192, a fls. 65 verso, do livro FK1, o nome do enfiteuta, facto este de que o ora recorrente só agora tomou conhecimento aquando da emissão da certidão predial ora junta.
17. Devendo como tal admitir-se o documento em causa por se mostrar oportuna e essencial à decisão do presente pleito a sua junção, sendo que se trata de um documento novo superveniente com especial relevância em virtude do julgamento da matéria de facto proferido em 1ª instância.
18. Em conclusão, exige-se que a resposta do quesito 1º seja conforme não só com o que consta dos documentos juntos aos autos, seja o documento autêntico de fls. 9 e ss. sejam os documentos de fls.70 e ss., mas também com o teor da própria certidão predial ora junta, sendo que, remetendo-se sobretudo para a matéria constante das referidas certidões prediais, haverá necessariamente que considerar assente a matéria vertida no quesito 1º.
19. Do supra exposto, dúvidas não restam que foi incorrectamente julgado o quesito 1º da Base Instrutória uma vez que este quesito limita-se a transcrever literalmente o teor de documentos autênticos juntos aos autos, in casu, das certidões prediais acima identificadas, em relação às quais não foi arguida a respectiva falsidade.
20. O correcto julgamento do quesito 1° da Base Instrutória traduz-se em dar como assentes os factos que constam daqueles documentos, pelo que o Tribunal Colectivo a quo, por força do estatuído no artigo 558°, n.º 2, do CPC, artigo 365° do CC e no artigo 100° do CRP, deveria ter-se limitado a dar como assente a matéria do quesito em causa, impondo-se assim que a decisão de facto recorrida seja revogada por V. Exas. nesse sentido.
21. A sentença assenta num pressuposto de facto absolutamente errado porquanto, como se viu, ficou plenamente assente que o domínio útil daquele prédio foi legalmente reconhecido e integrado na esfera jurídica privada a partir de 1893, ou seja, a partir da outorga da escritura pública da Repartição da Fazenda Municipal no âmbito da qual se consagrou a concessão por aforamento daquele prédio a favor de um particular, Chau Pui Fong, muito antes do estabelecimento da Região Administrativa Especial de Macau.
22. Ora, o artigo 7.° da Lei Básica não obsta a que o domínio útil de terreno concedido por aforamento pelo Território de Macau a particulares, por escritura pública e registado na Conservatória do Registo Predial, possa ser adquirido por usucapião, ainda que o titular do domínio directo seja actualmente a Região Administrativa Especial de Macau, tal como vem sendo defendido pelo TUI.
23. No caso em apreço, o domínio útil do prédio urbano em causa foi criado e cedido onerosamente a favor de um particular, sendo evidente que a propriedade desse domínio útil passou a ser uma propriedade privada, sendo, de todo, irrelevante, que o domínio directo continue a ser público: a titularidade pública do domínio directo não tem qualquer influência na natureza privada do domínio útil, se este foi constituído - como foi o caso - a favor de um particular para este o utilizasse livremente a troco do pagamento de um foro.
24. ln casu, foi constituído definitivamente sobre o domínio útil daquele imóvel, de acordo com a lei então vigente, um direito de propriedade privada, que estava reconhecido como tal, como exige a Lei Básica, porquanto foi adquirido por escritura pública e tinha um registo na respectiva Conservatória muito antes do estabelecimento da RAEM.
25. Ora, a Lei Básica não impede que a propriedade privada se adquira pelas formas previstas na lei ordinária (art. 1242.° do Código Civil vigente), bem pelo contrário, protege o direito à propriedade (v., art. 6.° da LBRAEM), sendo que a usucapião é uma dessas formas de aquisição.
26. No caso em apreço, resulta da factualidade dada como provada de que a propriedade plena incidente sobre o prédio urbano em questão foi desdobrada nos chamados "domínio directo" e "domínio útil", através da concessão por aforamento que consiste, grosso modo, num acto através do qual um particular adquire um direito de propriedade imperfeito sobre aquele domínio útil, o qual, como se viu, encontra-se, pelo menos desde 1893, atribuído e reconhecido como propriedade particular.
27. Podendo assim concluir-se, sem sombra de dúvida, que o domínio útil daquele prédio é passível de usucapião.
28. Resulta, na verdade, da matéria de facto dada como assente que o recorrente agiu sempre na convicção de ser o dono do dito prédio, à vista de toda a gente e reconhecido por todos como tal, sem violência nem oposição de ninguém, de forma continuada e com a consciência de não estar a lesar o direito de quem quer que seja (vide, respostas aos quesitos 5° e 8° a 16°), mostrando-se assim verificados os requisitos materiais e temporais legalmente previstos (cfr., art°s 1251°, 1263°, 1268º, 1287° e 1296° do C.C. de 1966) para que, tal como se peticiona, seja declarado judicialmente que o recorrente adquiriu o seu domínio útil por usucapião.
29. Na verdade, o recorrente vem praticando desde 11 de Setembro de 1979 um conjunto de actos como os que pratica um proprietário do domínio útil, com a convicção de ser o seu efectivo titular, configurando esta situação o conceito de posse do domínio útil.
30. Como se sabe, a posse caracteriza-se por uma situação de facto, o corpus, os actos materiais praticados sobre a coisa e por um elemento psicológico, o animus, a intenção de agir como titular do direito a que o exercício do poder de facto se refere.
31. Ora, existem os actos materiais praticados sobre a coisa, sendo que o ora recorrente tem vindo a agir há longo tempo como titular do domínio útil daquele prédio.
32. A posse do recorrente é pacífica porquanto foi adquirida sem violência e é publica já que todos a podem conhecer (arts. 1261.° e 1262.° do Código Civil de 1966) e toda a gente a reconhece efectivamente.
33. O art. 1287.° do Código Civil de 1966 determina que a posse do direito de propriedade ou de outros direitos reais de gozo, mantida por certo lapso de tempo (no máximo 20 anos), faculta ao possuidor, salvo disposição em contrário, a aquisição do direito de propriedade a cujo exercício corresponde a sua actuação: é o que se chama usucapião.
34. A posse do domínio útil foi adquirida pelo recorrente em 1979, é pública e pacífica, pelo que o recorrente adquiriu a titularidade do domínio útil do prédio em causa, por usucapião, nos termos dos arts. 1261.°, 1262.°, 1287.° e 1296.° do Código Civil de 1966.
35. Devendo em conformidade o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão recorrida ser revogada, condenando-se os R.R. no pedido e reconhecendo-se judicialmente o ora recorrente como único e legítimo titular do domínio útil do prédio urbano em causa.
Pedindo no final a revogação da sentença recorrida e substituída por outra que julgue procedente o seu pedido.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Vêm provados os factos seguintes:
1. Sobre o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° 4749, a folhas 140 do Livro B21, com a área total de 32 metros quadrados, sito na Taipa, freguesia de Nossa Senhora do Carmo, constava na respectiva descrição que se situa na Rua dos Bem Casados, nº 14. (A)
2. Actualmente, tem entrada pelo nº 32-34 da Rua Correia da Silva, conforme consta da planta cadastral nº 61302002, emitida em 7 de Janeiro de 2004, tendo as seguintes confrontações: NE - o prédio n° 16 da Rua dos Bem Casados (conforme descrição n° 11358 da CRP) e que, no local, corresponde ao prédio n° 36 da Rua Correia da Silva; SE - a Rua Correia da Silva; sw - Rua dos Bem Casados n° 13-15 (descrito na CRP sob o n° 4747); NW - Rua dos Bem Casados. (B)
3. O domínio directo do prédio a que alude a alínea A) supra encontra-se registado na Conservatória do Registo Predial a favor da RAEM, conforme inscrição nº 192 a f1s. nº 65v do Livro FKl. (C)
4. Encontra-se inscrito o referido prédio na matriz predial urbana da freguesia de Nossa Senhora do Carmo (Taipa) sob o artigo 40167, em nome de C. (2°)
5. Em 11 de Setembro de 1979, por escrito particular, "D" também romanizado por "D" vendeu a F, pelo preço de HKD$65.000,00, equivalente a MOP$66.950,00, o imóvel referido em A). (4º)
6. Nessa mesma data o F entregou o imóvel a A para que nele residisse. (5º)
7. A e E são filhos de F. (6°)
8. E, em 1975, fixou, definitivamente, residência em Hong Kong onde ainda hoje se encontra a residir. (7º)
9. Primeiramente, o imóvel aqui em apreço era utilizado para fins habitacionais do A. e sua família. (8º)
10. Em 1985 o A. instalou a mercearia denominada "G". (9°)
11. Como proprietário da referida mercearia "G" o A. pagou sempre a respectiva contribuição industrial devida pela exploração de tal estabelecimento comercial. (10° )
12. Bem como o imposto sobre o rendimento. (11°)
13. E sempre agiu como verdadeiro proprietário, administrando tal imóvel que considera como fazendo parte do seu património. (12°)
14. E sempre foi considerado por toda a gente como proprietário desse imóvel. (13º)
15. Sem oposição de quem quer que seja. (14º)
16. E com consciência de que não está a violar o direito de quem quer que seja. (15°)
17. Sendo o A. a fazer as reparações e todas as obras necessárias à sua conservação. (16°)
18. O foro do imóvel foi pago até 1981, altura em que se deixou de pagar por ser de montante diminuto. (17º)
*
III – Fundamentos
O Autor vem impugnar a decisão da matéria de facto quanto ao quesito 1º da Base Instrutória, entendendo que o mesmo deveria ser considerado provado face à prova documental junto aos autos.
E uma vez provado o referido quesito 1º, deve-se julgar procedente o seu pedido, por deixar de existir obstáculo legal para o efeito.
Nos termos do nº 1 do artº 599º e do nº 1 do artº 629º do CPCM, este Tribunal de recurso pode alterar a matéria de facto fixada pelo tribunal de primeira instância quando:
v. Foi cumprido o ónus de impugnação específica da decisão de facto;
vi. Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida;
vii. Se os elementos fornecidos pelo processo impuserem decisão diversa, insusceptível de ser destruída por quaisquer outras provas; e
viii. Se o recorrente apresentar documento novo superveniente e que, por si só, seja suficiente para destruir a prova em que a decisão assentou.
No caso em apreço, cremos que o Autor tenha razão.
Resulta da certidão do registo predial junta como doc. nº 1 da petição inicial que o foro anual do prédio em causa é de MOP$0.32, conforme escritura de 24/02/1893 da Repartição de Fazenda Provincial (fls. 13 dos autos), o que evidencia que a propriedade do prédio em referência foi desmembrada, ao abrigo da identificada escritura, em domínio directo, inscrito a favor do então Território de Macau, e em domínio útil.
É certo que da referida certidão não consta o nome do foreiro, porém, face aos recibos do pagamento do foro emitidos pela autoridade competente constantes a fls. 70 a 80 dos autos, bem como ao teor das novas certidões de registo predial (fls. 437 a 440 e fls. 462 e 463 dos autos), podemos concluir sem qualquer margem de dúvida de que o foreiro é um indivíduo de nome B.
Nesta conformidade, deve-se considerar provado o quesito 1º da Base Instrutória, ficando assente o facto seguinte:
“O prédio identificado nos autos foi concedido a B por aforamento, ao abrigo da escritura de 24/02/1893 da Repartição de Fazenda Provincial.”
Tendo o domínio útil do prédio em referência já integrado na esfera jurídica privada antes do estabelecimento da RAEM, o mesmo é susceptível de aquisição por usucapião.
No mesmo sentido, veja-se o Ac. do TUI, de 16/01/2008, Proc. nº 41/2007.
Vamos ver se estão reunidos os pressupostos para usucapião – cfr. artº. 1218º e seguintes do CCM.
Ficaram provados que:
* Primeiramente, o imóvel aqui em apreço era utilizado para fins habitacionais do A. e sua família.
* Em 1985 o A. instalou a mercearia denominada "G".
* Como proprietário da referida mercearia "G" o A. pagou sempre a respectiva contribuição industrial devida pela exploração de tal estabelecimento comercial.
* Bem como o imposto sobre o rendimento.
* E sempre agiu como verdadeiro proprietário, administrando tal imóvel que considera como fazendo parte do seu património.
* E sempre foi considerado por toda a gente como proprietário desse imóvel.
* Sem oposição de quem quer que seja.
* E com consciência de que não está a violar o direito de quem quer que seja.
* Sendo o A. a fazer as reparações e todas as obras necessárias à sua conservação.
Pelo exposto, não resta qualquer margem de dúvida de que ficaram preenchidos todos os requisitos legais da usucapião do domínio útil do prédio identificado, pelo que deve-se julgar procedente o presente recurso.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em:
- dar por provado o quesito 1º da Base Instrutória pela forma seguinte:
“O prédio identificado nos autos foi concedido a B por aforamento, ao abrigo da escritura de 24/02/1893 da Repartição de Fazenda Provincial.”
e
- conceder provimento ao recurso interposto, revogando a sentença recorrida e declarando o Autor A ser o titular do domínio útil sobre o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº 4749, a fls. 140 do Livro B21, sito na Taipa, com entrada actualmente pelos nºs 32-34 da Rua Correia da Silva.
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Sem custas em ambas as instâncias.
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RAEM, aos 12 de Janeiro de 2012.
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
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984/2010