Recurso nº 158/2011
Data: 17 de Novembro de 2011
Assuntos: - Divórcio
- Separação de facto
- Requisito objectivo
- Requisito subjectivo
- O propósito de não restabelecer a comunião de vida
- Proposição da acção de divórcio
Sumário
1. É fundamento de divórcio litigioso a separação de facto por dois anos consecutivos.
2. Há separação de facto quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos ou de um deles o propósito de não a restabelecer.
3. O elemento objectivo consiste na divisão do habitat, na falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes; o elemento subjectivo consiste num propósito da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.
4. É nitidamente um facto conclusivo que “não existe, pelo menos da parte do A., o propósito da restabelecer a comunhão de vida”.
5. Para a verificação deste requisito, só pode levar em conta os elementos fácticos concretamente acontecido, v.g. as partes não moravam no mesmo tecto; vivia numa outra casa; vivia com outra mulher ou homem, etc.
6. O simples facto de o autor intentar a acção de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido, devendo considerar haver separação de facto quando se verificar o requisito objectivo e o pressu posto de “dois anos consecutivos”.
O Relator,
Choi Mou Pan
Recurso nº 158/2011
Recorrente: A
Recorrida: B
A cordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
A, médico, natural da China, de nacionalidade Chinesa e residente em Macau, intentou contra sua mulher B, médica, natural de Hong Kong, de nacionalidade Chinesa e residente em Macau, Acção Especial de Divórcio Litigioso com Processo Comum Ordinário.
A ré contestou pugnando pela improcedência dos pedidos, e deduziu também a reconvenção contra o autor.
Realizada o julgamento em audiência, foi proferida finalmente pela Mmª Juiz Presidente julgando a acção e a reconversão improcedentes por não provadas e, em consequência, absolver a Ré, B, do pedido de divórcio formulado pelo Autor, A bem como absolver o Autor do pedido de divórcio formulado pela Ré, com a condenação dos Autors e Ré em partes iguais nas custas.
Com esta não conformou, recorreu para esta instância o autor, alegando que:
1. Alegou o A. que desde Abril do ano de 2006, A. e R. se encontravam separados de facto (cfr. art.º 3º da p.i.);
2. Alegado foi, igualmente, que desde essa data o casal não partilhou cama, mesa ou habitação (cfr. artº 4º da p.i);
3. Alegado foi, também, que desde Abril de 2006, não existe comunhão de vida entre A. e R. nem se verifica, pelo menos da parte do A., o propósito de a restabelecer (cfr. artº 5º da p.i.);
4. Por provado se deu que em meados de 2006 o Autor saiu de casa de morada de família para morar sozinho numa outra casa (resposta aos quesitos 1º e 12º da Base Instrutória);
5. Provado igualmente ficou que A. e R. não partilharam, desde essa data, cama, mesa ou habitação (resposta ao quesito 2º); e ainda que
6. Não existe, pelo menos da parte do A., o propósito de restabelecer a comunhão de vida (resposta ao quesito 3º);
7. Em termos de requisitos, a lei somente exige se verifiquem os dois elementos que integram a separação de facto: um mínimo de dois anos quanto ao período de duração da separação à data da propositura da acção (elemento objectivo), e a existência, sem condição temporal mínima fixada, do propósito de não retomar a vida em comum (elemento subjectivo);
8. Se é necessária a verificação cumulativa dos elementos objectivo e subjectivo que caracterizam o conceito legal de separação de facto à data da propositura da acção, tal não significa, nem da lei resulta, que os mesmos hajam de ter igual duração temporária, ou que a sua verificação haja que ocorrer simultaneamente;
9. A propositura da acção de divórcio basta para se considerar verificado o elemento subjectivo constante do artigo 1638º do Código Civil vigente em Macau, ou seja, o propósito de o A. (no caso sub Júdice) em não pretender restabelecer a vida em comum;
10. A orientação jurisprudencial que se vem verificando constante nos últimos anos, ao nível do Supremo Tribunal de Justiça, em Portugal, e que se torna incontornável referir dado, como acima se disse já, as comuns raízes que os sistemas jurídicos da R.A.E.M. e de Portugal partilham, considera suficiente a propositura da acção de divórcio para se considerar preenchido o elemento subjectivo do divórcio para se considerar preenchido o elemento subjectivo do divórcio requerido com base na separação de facto por 2 anos (veja-se, inter alios, os acórdãos do S.T.J. proferidos nos processos nºs 04B1564, 06A2137 e 06B2878, in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf?OpenDatabase).
11. Foi violado o nº 1 do artº 1628º do Código Civil.
Nestes termos, e nos mais de Direito aplicáveis que V. Exªs., Senhores Juizes, forem doutamente supridos, deverá:
a) ser dado provimento ao presente recurso;
b) consequentemente, revogar-se a douta sentença recorrida; e
c) decretar-se o divórcio entre o A. e a R. com base, somente, nos fundamentos por aquele invocados na petição inicial.
B respondeu ao recurso, alegando nos termos da sua motivação constante de fls. 270-272, que se dá por integralmente reproduzido.1
Cumpre-se decidir.
Foram colhidos os vistos legais.
À matéria de facto foi dada por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- A. e R. contraíram casamento em Hong Kong, aos 31 de Agosto de 1997 (alínea A) dos factos assentes).
- Deste casamento existe uma filha menor, C, nascida em Macau aos 06 de Abril de 2001 (alínea B) dos factos assentes).
- 被告患上抑鬱病(tradução: A ré sofreu de doença depressiva, alínea C) dos factos assentes).
- 自2009年9月後,原告再沒有支付家庭之共同開支(Tradução: Desde Setembro de 2009, o autor não pagar mais despesas comuns da família, alínea D) dos factos assentes).
Da Base Instrutória:
- Em meados de 2006 que o Autor saiu da casa de morada de família para morar sozinho numa outra casa (resposta aos quesitos das 1º e 12º da base instrutória).
- Não partilhando, desde essa data, cama, mesa ou habitação (resposta ao quesito da 2º da base instrutória).
- Não existe, pelo menos da parte do A., o propósito da restabelecer a comunhão de vida (resposta ao quesito da 3º da base instrutória).
- Depois de casamento, o Autor chegou a frequentar estabelecimentos nocturnos (resposta ao quesito da 4º da base instrutória).
- A R. ficou descontente com o facto aludido no art. 4º (resposta ao quesito da 5º da base instrutória).
- Depois de dar à luz a filha, a Ré ficou emocionalmente instável (resposta ao quesito da 8º da base instrutória).
- O A. está ligado a vários associações (resposta ao quesito da 15º da base instrutória).
- Por isso, para além das idas referidas na resposta ao quesito 4º, o Autor ia, de quando em quando, com os membros não residentes das associação acima referidas a clubes nocturnos, na visita destes a Macau (resposta ao quesito da 16º da base instrutória).
O autor pediu que se decretasse o divórcio com fundamento na separação de facto dos cônjuges.
No Tribunal da 1ª instância decidiu-se, entre outros fundamentos, que não havia prova bastante que demonstrasse a existência dos necessários requisitos de separação de facto, pelo que se julgou a acção improcedente.
Desta decisão recorre o autor, pugnando pela procedência do pedido.
É fundamento de divórcio litigioso a separação de facto por dois anos consecutivos, entendendo-se para este efeito que há separação de facto quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos ou de um deles o propósito de não a restabelecer (artigos 1637º, alínea a) e 1638º, ambos do Código Civil).
As causas objectivas ou não culposas são eliminadas do elenco das causas de divórcio quando se perfilhe a concepção do divórcio-sanção,2 como aconteceu com o Código Civil de 1966; Como causa de divórcio a separação exige, antes de mais, a separação de facto dos cônjuges, integrada por um elemento objectivo e outro subjectivo.
O elemento objectivo consiste na divisão do habitat, na falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes; o elemento subjectivo consiste num propósito da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial (artigo 1638° n° 1 do Código Civil).
Os referidos elementos carecem uma análise cuidadosa, já que a falta de vida em comum dos cônjuges pode ter várias justificações, sendo mesmo consentida pelo artigo 1534º do Código Civil, e a disposição interior de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial pode ter uma multiplicidade de causas e uma grande variedade de exteriorizações e de manifestações.3
É entendimento pacífico que deve aceitar não só os factos tidos por assentes pelo Tribunal a quo, como as ilações da matéria de facto - juízos de valor sobre factos que não envolvem interpretação de normas jurídicas.4
Como ensina o Prof. Antunes Varela, “a Relação como instância final da fixação da matéria de facto, pode, com base nos factos provados - e desde que não os altere - lançar mão dos juízos de experiência, ou das considerações de probabilidade/razoabilidade para dar como provados outros factos, assim como tem toda a liberdade de emitir juízos de valor sobre a matéria de facto, alterando ou reforçando os que foram emitidos pela 1ª instância.”5
Devendo a separação durar, em princípio, há dois anos consecutivos é necessário datá-la para se saber desde quando corre o prazo, sendo por vezes difícil fixar uma data, podendo pois, as vezes, acontecer que os cônjuges não se separam de uma vez, vão-se separando, o que dificulta fixar a data a partir da qual se conta o prazo, devendo ter-se em atenção que os dois anos devem ser consecutivos.6
O decurso do prazo será interrompido quando de factos concretos se possa concluir que houve uma tentativa de restabelecimento da vida matrimonial.
Quanto ao elemento subjectivo, parece que perante o facto de que o tribunal a quo consignou por assente que “não existe, pelo menos da parte do A., o propósito da restabelecer a comunhão de vida (resposta ao quesito da 3º da base instrutória)”, já se poderia tomar a decisão, dando por verificado o elementos subjectivo.
Mas, não se pode assim entender.
Por um lado, tal resposta é nitidamente um facto conclusivo,7 ou um juízo conclusivo, pois trata-se o mesmo de um requisito jurídico para a conclusão de separação de facto. Para a verificação deste requisito, só pode levar em conta os elementos fácticos concretamente acontecido, v.g. as partes não moravam no mesmo tecto; vivia numa outra casa; vivia com outra mulher ou homem, etc. Se não, com este facto, sem necessidade de interpretação dos factos, por si só, já se leva uma aplicação de direito automaticamente.
Pelo que, deve por isso ser considerado por não escrito.
Por outro lado, a sentença também não assim resolveu directamente a questão de direito, ponderou os outros factos para servir a sua consideração da não verificação do requisito de exigência do elemento subjectivo.
A sentença considerou essencialmente que só no momento da proposição da presente acção é que começou a contagem a vontade do autor ou a ré de “não restabelecer a comunhão de vida matrimonial”, razão pela qual, por a partir dali não se completar o período de dois anos, deu por não haver separação de facto durante dois anos consecutivos.
O que nos parece é que a sentença confundiu os critérios da consideração dos elementos objectivos e subjectivos. O momento do início da separação entre os cônjuges só se diz respeito aos elementos objectivos, e para o elemento subjectivo, basta a verificação da sua vontade definitiva de “não restabelecer a comunhão de vida matrimonial”.
Neste sentido, é pacifica a jurisprudência de Portugal, aqui se cita a título do direito comparado, em que se entende que o simples facto de o autor intentar a acção de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido.8
Caso o fundamento da sentença, nesta parte, fosse correcto, neste momento na fase do recurso, como já se completou dois anos desde da proposição da acção, pode este Tribunal tomar a decisão da causa, com os factos supervenientes nos termos legais.
Assim sendo, tendo o autor, ora recorrente, proposto a acção de divórcio, manifestou com tal conduta a intenção de romper definitivamente com a vida em comum, verificando-se, desta forma, o elemento subjectivo da "separação de facto".
A par do elememto objectivo de separação, desde Setembro de 2006, verifica-se o requisito de separação de facto entre as partes, para os efeitos do disposto no artigo 1637º nº 1 e artigo 1638º do Código Civil.
Por si só é suficiente para proceder o pedido de divórcio com fundamento previsto no artigo 1637° n° 1 al. a) do Código Civil.
Como o autor não pediu a declaração da culpa das partes e a ré não recorreu da sentença, não cabe apreciar a questão de obrigação de declaração da culpa nos termos do artigo 1638° n° 2 do Código Civil.
É de decretar, na procedência do recurso, o divórcio entre o recorrente e a recorrida.
Pelo exposto, acordam neste Tribunal de Segudna Instância em conceder provimento ao recurso interposto pelo autor A e em consequência decretou o divórcio entre o recorrente e recorrida.
Custas pela recorrida.
RAEM, aos 17 de Novembro de 2011
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
1 As suas alegações contêm as seguintes conclusões em chinês:
1. 上訴人以事實分居兩年為由,提出訴訟離婚,但因未能證明而理由不成立,上訴人不服並提出上訴。
2. 根據1638條第1款規定,須證明夫妻雙方不共生活,且雙方或任一方具有不再共同生活之意圖,才視為事實分居。
3. 根據司法見解,除了須證明夫妻雙方不共同生活外,還須證明雙方或任一方具有不再共同生活之意圖滿兩年,才視為民法典1637條a)規定的“事實分居"。
4. 根據原審法院判決書的既證事實,由於上訴人在起訴狀中,並沒有列出不欲繼續共同生活的開始時間,因而原審法院確實沒有證明相關事實。
5. 因此,直至提起訴訟時,完全符合民法典1638條1款及1637條a)項規定事實分居之要件。
6. 綜上所述,原審法院判處原告之離婚理由不成立,完全符合民法典1638條1款及1637條a)項之規定,上訴應予駁回。
2 Este dito divórcio-sanção baseia-se na violação por um dos cônjuges, de qualquer dos deveres conjugais constantes do artigo 1533º do Código Civil – respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência – violação, essa, que, para além de culposa terá de se perfilar como tão grave e reiterada que “comprometa a possibilidade de vida em comum” (nº1 do artigo 1635º).
Isto é, o mero incumprimento de qualquer dos deveres tem de ser imputado subjectivamente (culpa) ao cônjuge infractor e essa conduta terá de ser valorada casuisticamente na ponderação das características idiossincráticas (com tónica no “grau de educação e sensibilidade moral”) dos cônjuges.
3 Neste sentido, vide o acórdão do STJ de 17 de Junho de 2003 do processo n° 03A884, que se citam a título do direito comparado.
4 Neste sentido, vide entre outros, os acórdãos do S.T.J., que se citam a título do direito comparado, de 14/6/78, B.M.J. 278- 178, de 20/9/94, B.M.J. 439- 538 e de 3/5/2000, revista nº 1.118/99.
5 Revista de Legislação e Jurisprudência 122º- 223.
6 Profs. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família 2ª ed., Coimbra Editora, 2001, I, págs. 630/631.
7 Vide do Juiz Conselheiro Dr. Viriato M.P. Lima, Manual de Direito Processual Civil, 2005, CFJJ, p. 399, indicou expressamente que se trata uma expressão conclusiva a “Comunhão de vida”.
8 Como se refere no acórdão do S.T.J. de 5/7/01, C.J/S.T.J., ano IX, tomo II, pág. 166.
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TSI-158/2011 Página 1