Processo n.º 714/2010
(Recurso cível e laboral)
Data : 19/Janeiro/2012
ASSUNTOS:
- Marca notória
- Registo abusivo
- Anulação de registo de marca
SUMÁRIO:
Merece provimento o pedido de anulação de registo de uma marca efectuado por uma dada C.ª de Macau, copiando a imagem, grafismo e cores dos caracteres usados numa marca de pastéis cozidos a vapor de uma C.ª de Taiwan muito famosa e do conhecimento generalizado dos apreciadores desse género de comida e para mais se essa utilização da marca foi feita com o intuito de enganar os consumidores de tais produtos.
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 714/2010
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 19/Janeiro/2012
Recorrente: A
Recorrida: B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, sociedade com sede em Taiwan, intentou a presente acção comum sob a forma ordinária contra B, alegando, em síntese, que a R. adoptou a marca com a expressão “XXX” que é materialmente uma reprodução ou imitação da marca da A., actuando a R. de má fé por ter copiado todo o modelo de negócio desenvolvido internacionalmente pela A. para vender em Macau o mesmo tipo de produtos, apropriando-se ilegitimamente, em consequência disso, da reputação mundialmente conhecida daquele. Mais alegando que dado a notoriedade e o prestígio da marca da A., o comportamento da R. não deixava de ser fraudulenta e ilegal, criando uma situação de confusão junto dos consumidores, aproveitando da reputação regional e mundial da A. na restauração, tirando indevida e abusivamente partido do facto de a A. ainda não ter estabelecimentos em Macau, como forma a maximizar os seus lucros e obstar à entrada da A. no mercado de Macau, causando à A. prejuízos e lucros cessantes.
Concluindo, pediu, a final, que seja a presente acção julgada procedente e declarada a anulação da marca nominativa registada em nome da R. com o número N/XXX, na classe 42, com todas as consequências legais, bem como condenada a R. no pagamento de custas, procuradoria e demais encargos, tudo melhor conforme a petição inicial de fls. 2 e seguintes.
Contestada a acção, veio a acção a ser julgada improcedente a acção, e, inconformada, vem a A., A, recorrer, alegando em síntese conclusiva:
I. A RAE de Macau e Taiwan são partes da União criada pela Convenção de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial de 20 de Março de 1883 conforme revista ("Convenção de Paris"), a qual prevalece sobre o Regime Jurídico da Propriedade Industrial ("RJPI") instituído pelo Decreto-Lei n.º 97/99/M, de 13 de Dezembro, por força da hierarquia das leis reflectida no n.º 3 do artigo 1.° do Código Civil.
II. A respeito da notoriedade das marcas, o artigo 6.º - bis da Convenção de Paris estabelece que "1) Os países da União comprometem-se a recusar ou invalidar, quer oficiosamente, se a lei do país o permitir, quer a pedido de quem nisso tiver interesse, o registo e a proibir o uso de marca de fábrica ou de comércio que constitua reprodução, imitação ou tradução, susceptíveis de estabelecer confusão, de uma marca que a autoridade competente do país do registo ou do uso considere que nele é notoriamente conhecida como sendo já marca de uma pessoa a quem a presente Convenção aproveita e utilizada para produtos idênticos ou semelhantes. O mesmo sucederá quando a parte essencial da marca constituir reprodução de marca notoriamente conhecida ou imitação susceptível de estabelecer confusão com esta."
III. O artigo 6.º - bis da Convenção de Paris é e deve ser interpretado no sentido de que basta a notoriedade da marca no país de origem, para que se proteja a marca notória de nacional da União num outro país da mesma União, onde se pretende registar (ou onde já está registada) marca que, no todo ou em parte essencial, seja uma imitação, tradução ou reprodução daquela. Trata-se de mais uma excepção ao sistema geral da eficácia constitutiva do registo consagrado na lei de Macau, imposto pela Convenção de Paris enquanto lei de nível hierarquico superior.
IV. Resulta indiscutível dos factos provados que a Recorrente é nacional de Taiwan, que os consumidores associam a marca “XXX” à Recorrente, e que o nome e a marca da Recorrente são notórios pelo menos em Taiwan, pelo que à Recorrente deveria de ter sido reconhecido o direito à protecção da sua marca em Macau ao abrigo do artigo 6.º - bis da Convenção de Paris.
V. Assim, verificou-se erro na determinação da norma aplicável por parte do Tribunal a quo, e a norma jurídica que, no entendimento da Recorrente, devia ter sido aplicada, em primeiro lugar, é o artigo 6.º - bis da Convenção de Paris, o que se indica em cumprimento do artigo 598.° n. 2 c) do C.P.C.
VI. O artigo 214.° n.º 1 alínea b) do RJPI não absorve integralmente a ratio do artigo 6.º - bis da Convenção de Paris, pois este último basta-se com a notoriedade no país de origem para que a marca notória seja reconhecida noutro país da União, enquanto o artigo 214.° n.º 1 alínea b) do RJPI exige a notoriedade junto dos consumidores de Macau para conferir protecção à marca notória.
VII. Por outro lado, o Tribunal a quo interpretou o requisito de notoriedade do conhecimento em Macau constante do artigo 214.° n.º l alínea b) do RJPI por referência (i) ao público em geral e (ii) aferiu esse público por referência à qualidade de residentes de Macau, conforme se alcança do conteúdo do relatório da sentença a fls. 617 e 617v., interpretação que está errada e por isso constitui violação do artigo 214.º n.º 1 alínea b) do RJPI, o que se explicita em cumprimento do artigo 598.° n. 2 a) do C.P.C.
VIII. O requisito de notoriedade do conhecimento em Macau constante do artigo 214.° n.º 1 alínea b) do RJPI deve ser interpretado por referência ao meio dos consumidores do produto a que respeita a marca (e que definem o respectivo mercado), sendo que obrigatoriamente o conceito de consumidores em Macau tem de incluír os residentes de Macau (550,000 pessoas) e, em muito maior número, os turistas que, conforme dados oficiais, em 2009 ascenderam a 21.752.751, com a maior parte a vir da China Continental (10.989.533), Hong Kong (6.727.822), Taiwan (1.292.551 indivíduos), do Japão (379.241 indivíduos) e Malásia (332.529).
IX. O número de turistas que visitou Macau em 2009 foi trinta e nove vezes superior à população de Macau, sendo, na sua maioria, de entre os turistas que visitam Macau que se encontram os meios interessados dos serviços de restauração da Recorrente, pois mercê da sua notoriedade a Recorrente tem franchisados em todos os países e territórios de onde vem o grosso dos turistas de Macau, nomeadamente na China Continental, Hong Kong, Taiwan e Japão.
X. Excluir-se os turistas do conceito de consumidores para aferir da notoriedade em Macau de uma marca representa:
- primeiro, negar tutela aos interesses que essencialmente a norma do artigo 214.° n.º 1 alínea b) do RJPI deve proteger - os interesses do consumidor, designadamente do consumidor que mais contribui para gerar a riqueza da economia de Macau;
- segundo, posterga o espírito da Convenção de Paris de respeito das marcas notórias dos nacionais dos países da União; e,
- terceiro, no plano dos factos, sufraga o engano de milhares de turistas que fazem parte do círculo de interessados da marca da Recorrente e que vão ao restaurante da Recorrida, porque associam a marca em disputa à Recorrente, e são assim enganados em Macau com tolerância das autoridades, porquanto julgavam que estavam a ir a um dos renomados restaurantes da Recorrente e a qualidade do serviço e comida comprovadamente nada têm a ver uma com a outra.
XI. Estas conclusões estão em linha com o citado na sentença (a fls. 616 e 616.v), que a opinião dominante para se qualificar uma marca como notoriamente conhecida "é no sentido de que a marca pode assim ser qualificada desde que alcançou notoriedade ou conhecimento geral no círculo dos produtores ou dos comerciantes ou no meio dos consumidores mais em contacto com o produto a que respeita a marca; basta que a marca se tenha divulgado de modo particular no círculo de pessoas que é uso designar por meios interessados." (sublinhado e negrito nossos), embora na sentença não se tenham retirado daqui quaisquer consequências.
XII. Foi alegado e NÃO provado pela Recorrida que a marca “XXX” é conhecida do público em Macau fruto da sua divulgação pela própria Recorrida nos vários restaurantes que explora em Macau (Resposta negativa ao Quesito 15.°)
XIII. É um facto (real e estatístico) que a esmagadora maioria dos turistas, que consomem em Macau, são oriundos da China Continental, Hong Kong, Taiwan e Japão, sendo que nestes países e Região a Recorrente tem sede (Taiwan) e/ou restaurantes franchisados, conforme factos assentes.
XIV. Designadamente, nos autos foi provado que "Em Macau, alguns consumidores, sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca “XXX” à A." (12.°)
XV. Deste facto não resulta imediatamente claro se a expressão "alguns consumidores" visa uma quantificação, ou ao invés uma qualificação, sendo esta última - qualificação - a leitura mais consentânea com os demais factos provados, i.e., por "alguns consumidores" há de entender-se que são os consumidores que formam o círculo de interessados com maior relação com o produto ou serviço que a marca da Recorrente veícula, por oposição ao público em geral.
XVI. A expressão "alguns consumidores" só poderá ter o sentido de qualificação quando lida por referência ao complemento "sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca “XXX” à A.": se os turistas oriundos destas regiões representaram mais de 10 milhões dos turistas de Macau em 2009 (perto de 20 vezes a população de Macau) não se vê que a referência a "alguns consumidores" possa ser lida para quantificar (diminuindo o número), mas sim para qualificar.
XVII. Por outro lado, se são "sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca “XXX” à A.", está implícito que se reconhece que também há residentes de Macau que formam o círculo de interessados da marca da Recorrente, e que como os turistas da china Continental e de Taiwan também associam "o nome e a marca “XXX” à A."
XVIII. Só por si, o facto de cerca de 1 milhão de turistas de Taiwan visitarem anualmente Macau (em 2009 foram 1.292.551 conforme dados da DSEC) deveria ter sido suficiente para o Tribunal a quo considerar que a marca da Recorrente é notória em Macau.
XIX. Também foi provado que "Tendo a A. sido contactada por alguns empresários de Macau para promover a sua franquia em Macau." (6.° e 13.°), o que revela que há a percepção nos agentes de mercado em Macau da verdade das conclusões que antecedem, e que os motivou a considerar serem frachisados da Recorrente em Macau, nomeadamente a percepção em Macau de que a marca da Recorrente é notória para os consumidores em Macau que são turistas oriundos de Taiwan, China Continental, Hong Kong e Japão, e que muitos formam parte do grupo de interessados dos serviços de restauração cobertos pela marca da Recorrente.
XX. Também, só o reconhecimento da notoriedade da marca da Recorrente pelos consumidores em Macau e consumidores que obviamente incluem os turistas, justifica ter sido dado como provado que a "R. copiou a imagem, grafismo e cores dos caracteres usados pela A. no marketing do seu nome e marca “XXX”." (9.°) (negrito e sublinhado nossos).
XXI. Como também só o reconhecimento da notoriedade da marca da Recorrente pelos consumidores em Macau, incluindo os turistas, explica que se tenha dado como provado que a cópia foi feita pela Recorrida "com o objectivo de atrair clientela e enganar o consumidor." (10.°).
XXII. A Recorrida só pode "(…) atrair clientela e enganar o consumidor," com o uso da marca da Recorrente, porque a marca da Recorrente é notória em Macau.
XXIII. É no sentido das supra conclusões VI a XXII que, no entender da Recorrente, a norma que constitui fundamento jurídico da decisão a respeito da notoriedade, nomeadamente o artigo 214.° n.º 1 alínea b) do RJPI, devia ter sido aplicada, o que se indica em cumprimento do artigo 598.° n. 2 b) do C.P.C.
XXIV. Por fim, o artigo 8.° da Convenção de Paris estabelece que "O nome comercial será protegido em todos os países da União sem obrigações de registo, quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio."
XXV. Está assente que a Recorrente foi constituída antes da Recorrida, em 1992, com a firma A, que tem como elemento essencial da firma a expressão XXX , e que "(...) os turistas oriundos da China Continental e de Taiwan associam o nome e a marca “XXX” à A." (12.°), os quais são mais de metade dos vinte milhões de turistas que anualmente visitam Macau
XXVI. Da protecção que flui do citado artigo 8.° da Convenção de Paris e da factualidade assente, nomeadamente que a firma XXX não pertence à Recorrida, mas sim à Recorrente, e que o seu uso pela Recorrida induz os consumidores em erro, impõe-se concluir que a marca da Recorrida deveria ser anulada também, em primeira linha, por força do artigo 8.° da Convenção de Paris, mas também ao abrigo do artigo 214.° n.º 2 alínea e), aplicável por força do artigo 230.° n.º 1 alínea b) do RJPI.
XXVII. Também aqui se verificou erro na determinação da norma aplicável por parte do Tribunal a quo, e a norma jurídica que, no entendimento da Recorrente, devia ter sido aplicada, em primeiro lugar, é o artigo 8.° da Convenção de Paris, e em segundo lugar houve errada interpretação e aplicação da norma que serviu de fundamento à decisão neste particular, designadamente o artigo 214.° n.º 2 alínea e), aplicável por força do artigo 230.° n.º 1 alínea b) do RJPI, que deveria ter sido interpretado como aplicável independentemente do registo da firma da Recorrente em Macau.
Termos em que entende dever o acórdão sob censura ser substituído por um outro que declare a anulação da marca da Recorrida com o No. N/14085 para “XXX ”, na classe 42, com todas as consequências legais.
Contra alega o B, Ré /Recorrida, no processo identificado, dizendo, em suma:
O Art. 20.º do Código Comercial estabelece o princípio do uso exclusivo da firma comercial após o registo pelo respectivo titular na Conservatória competente.
A sociedade “B” é uma pessoa colectiva constituída sob a forma comercial de sociedade por quotas de responsabilidade limitada por escritura pública datada de 12 de Janeiro de 2004.
Esta sociedade comercial registou-se sob a firma comercial “B".
Conforme resulta do contrato de constituição e do registo comercial da referida sociedade a data de início das operações comerciais foi a data do contrato de constituição - 12 de Janeiro de 2004.
Tendo, na mesma data, em 12 de Janeiro de 2004, sido trespassado, à sociedade comercial R., nessa data constituída o "B” .
Restaurante já existente com esta firma comercial em Macau desde 15 de Maio de 1999, data em que iniciou a sua actividade comercial.
Sendo titular da licença n.º 84/1999, emitida em 3/9/1999 pelo então Leal Senado de Macau e ficando o restaurante autorizado a utilizar a denominação em chinês “B”
Assim, a B obteve o registo de marca para Macau n" N/xxx, na classe 42, em 3/11/2004.
Obteve, assim, e detém o direito exclusivo à utilização da firma comercial e nome comercial “B” J em Macau,
A Ré registou a sua marca fundada no respectivo uso de marca livre não registada, e fê-lo de boa fé.
O princípio da novidade da marca significa que é livre a utilização de marca não registada por qualquer interessado.
Pelo que a A. não pode opor à R qualquer registo de marca posterior à utilização no comércio da firma do seu restaurante, que vem desde 1999, e muito menos qualquer registo de marca posterior à data de constituição da R com a sua denominação comercial B.
A A. não tem, nem nunca teve qualquer actividade comercial em Macau.
É legal o registo de marca que seja a reprodução da firma ou denominação social do requerente.
A maioria das supostas marcas indicadas pela A. não podem sequer ser consideradas para o efeito pretendido pela A. (imitação) pelo simples motivo de não serem aplicadas a serviços da classe 42 (restaurantes, restaurantes chineses e outros negócios de bebidas e comidas).
E se atentarmos à respectivas datas de registo, facilmente constatamos que à excepção de 3 todas as outras foram registadas depois de 1999.
Não estão, assim, preenchidos todos os elementos exigidos pelo Art. 214.º n.º 1, al. a) para que exista imitação.
No mesmo sentido, tem de concluir-se que em relação à única marca da classe 43, a A. apenas requereu o registo da sua marca n.º XXXX na classe 43 em Taiwan a partir de 16 de Abril de 2003 (art. 10° n.° 6 da p.i.), ou seja, mais de quatro anos depois de a referida marca estar a ser usada em Macau nos restaurantes que agora pertencem à R.
No que respeita à notoriedade da marca, navega a Recorrente em alguma confusão.
Primeiro quer impor a Convenção de Paris sobre o RJPI, e por via disso impor a redacção do Art. 6.º bis dessa convenção quando ele está transcrito (não literalmente) para o Art. 214.º b) do RJPI.
Mas, andou bem o Tribunal a quo ao considerar que para que a marca da A. fosse considerada notória, a mesma sempre teria de ser notoriamente conhecida, em Macau, como sendo a marca da A. antes do seu uso no restaurante da R. (em 1999) o que não é o caso, nem sequer foi alegado pela A.
De qualquer forma, mesmo a protecção genericamente reconhecida às marcas notórias, depende desde logo da referida marca estar legalmente protegida no país de origem, mediante um registo regularmente feito, o que só foi efectivado em 16 de Abril de 2003, muito depois de estarem em actividade comercial os restaurantes da R.
Na realidade, a R. adquiriu o negócio de uma das suas sócias pelo que como é natural sempre pensaram os sócios da R. que a marca lhes pertencia por terem sucedido no negócio cuja actividade floresceu em Macau, desde 1999.
Mais, quando o alegado renome internacional da marca da A. só terá surgido depois de a marca da R. estar a ser legitimamente usada em Macau nos seus restaurantes, pelo que não se pode presumir aqui que exista qualquer imitação de marca notória, uma vez que o seu uso precede essa sua eventual notoriedade, o que afasta qualquer má fé por parte da R.
Com a excepção do Japão a internacionalização da A. deu-se depois da abertura do 1. º Restaurante da R e da escolha da firma deste estabelecimento em 1999.
É perfeitamente aceitável a atitude da R em registar marca livre, ou ainda não registada, que já vinha sendo utilizada em Macau desde 1999 em estabelecimento comercial adquirido pela R por trespasse.
A marca registada pela R não pode ser uma cópia das marcas da A. pois, a marca N/XXX da R é anterior (17/06/2004) ao pedido de marca N/XXX da A. (24/03/2005) e o restaurante da R. já existe desde 1999 enquanto as marcas para restaurante da A. só foram registadas em Taiwan em 2003.
Termos em que entende que se deve julgar improcedente por não provado o recurso interposto, mantendo o acórdão proferido que não merece qualquer censura, concluindo pela absolvição da R. de todos os pedidos.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
A A., A tem sede em Taiwan, em XX. XXX., Taipei, e foi constituída em 10 de Agosto de 1992 sob a forma de sociedade anónima e com o capital social de TN50,000,000, tendo como objecto social a prestação de serviços de restauração e a comercialização de produtos de culinária chinesa. (cfr. docs. 1 e 2 juntos com a p.i.) (A)
Em Março de 2005, a A. requereu o registo da marca “XXX” nas classes 30 e 42 junto da Direcção dos Serviços de Economia. (B)
Em consequência, a marca “XXX” foi registada em nome da A. na classe 30 com o número do registo N/XXX e com a seguinte especificação: “Pães com recheio cozidos a vapor; pequenos pastéis com recheio de carne picada cozidos a vapor (“shaomai”; espécie de pastéis chineses com caldo cozidos a vapor “tangbao”; pães cozidos a vapor com recheio de puré de feijão açucarado; empadas; pães cozidos a vapor com recheio de carne de porco assada, rolos “pães” cozidos a vapor “yinsijuan”; canja com oito tipos de cereais “babaozhou”; massa com caldo). (cfr. doc. 44 junto com a p.i.) (C)
Mas o pedido na classe 42 foi recusado com fundamento em marca idêntica anteriormente registada, que não pertence à A., mas sim à R. (cfr. doc. 45 junto com a p.i.) (D)
A 17 de Junho de 2004, a R. apresentou o pedido de registo da marca nominativa N/XXX, constituída pela expressão “XXX”, para serviços da classe 42, cujo despacho de concessão foi publicado no Boletim Oficial da RAEM, II Série, no dia 8 de Outubro de 2004, com a especificação de serviços “Restaurantes, restaurantes chineses e outros negócios de bebidas e comidas”. (cfr. doc. 46 junto com a p.i.) (E)
A R., com a matrícula n.º 18018 (SO), constituída em 12 de Janeiro de 2004 e registada sob a firma B, é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada, tendo como objecto social “a actividade de restauração e a importação e exportação de grande variedade de mercadorias”. (cfr. doc. 47 junto com a p.i.) (F)
O restaurante B” iniciou a sua actividade comercial em 15 de Maio de 1999 na Avenida XXX n.º XXX, lojas E e F, em Macau. (cfr. docs. 6 e 7 juntos com a contestação) (G)
Tendo em 12 de Janeiro de 2004 sido trespassado à sociedade comercial R., dando esta início as operações comerciais nessa data. (cfr. doc. 5 junto com a contestação e doc. 47 junto com a p.i.) (H)
A A. requereu o registo da marca n.º XXXX na classe 43 em Taiwan a partir de 16 de Abril de 2003 (cfr. doc. n.º junto com a p.i.) (I)
A origem da A. é fruto de uma história de sucesso com mais de 30 anos em Taiwan, fundada no negócio de restaurantes iniciado na década de 70 sob o nome “XXX”. (1º)
O sucesso do nome “XXX” advém da qualidade reconhecida dos produtos da A., em especial do seu célebre “小龍包” (“Xiaolongbao” ou “pastéis chineses cozidos a vapor”). (2º)
Em face do sucesso da especialidade “小龍包” (“Xiaolongbao” ou “pastéis chineses cozidos a vapor”), os seus fundadores criaram a sociedade ora A. em 1992 como o veículo para o negócio, tendo a A. dado continuidade ao nome “XXX” e como parte da estratégia de expansão internacional adoptou o mesmo nome como marca estilizada, a saber a marca XXX, registada pela primeira vez em Taiwan, no ano de 1992. (3º)
O estabelecimento XXX da A. foi considerado pelo New York Times como um dos 10 melhores restaurantes chineses no mundo. (4º)
Nos restaurantes da A. são confeccionados e consumidos elevada qualidade de “小龍包” / “Xiaolongbao”. (5º)
Tendo a A. sido contactada por alguns empresários de Macau para promover a sua franquia em Macau. (6º e 13º)
Os sócios da R., com excepção de C, são residentes permanentes em Taiwan e que conheciam perfeitamente que a marca XXX era reconhecida pelo público em geral em Taiwan. (7º)
A R. copiou a imagem, grafismo e cores dos caracteres usados pela A. no marketing do seu nome e marca XXX. (9º)
A R. copiou ainda na sua marca N/XXX, o logo, a designação, o grafismo de caracteres e a cor vermelha usados na marca registada da A. com o objectivo de atrair clientela e enganar o consumidor. (10º)
Em Macau, alguns consumidores, sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca XXX à A. (12º)
A A. nunca desenvolveu qualquer actividade promocional das suas alegadas marcas em Macau. (14º)
*
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso:
O pedido na classe 42 foi recusado com fundamento em marca idêntica anteriormente registada, que pertence à R.
Fundamentalmente, esta defende que aquele registo foi feito em afronta à notoriedade da sua marca muito famosa e internacionalmente conhecida, qualidade reconhecida relativamente aos produtos da A., em especial do seu célebre “小籠包” (“Xiaolongbao” ou “pastéis chineses cozidos a vapor”).
A marca da A. é reconhecida pelo público em geral em Taiwan, tendo a R. copiado a imagem, grafismo e cores dos caracteres usados pela A. no marketing do seu nome e marca com o objectivo de atrair clientela e enganar o consumidor.
Quid juris?
2. Que a marca foi registada em Macau pela ré, esse é um facto inquestionável e daí parece resultar, à primeira vista, numa análise menos profunda, a tutela da marca a seu favor, em vista da prioridade do registo, para que aponta o artigo 219º, n.º 1 do RJPI (Regime Jurídico da propriedade Industrial), DL 97/99/M, de 13 de Dez:
“o registo da marca confere ao seu titular o direito de impedir a terceiros, sem o seu consentimento, a utilização, na sua actividade económica, de qualquer sinal idêntico ou confundível com essa marca para produtos ou serviços idênticos ou afins àqueles para os quais aquela foi registada, ou que, em consequência da identidade ou semelhança entre os sinais ou da afinidade dos produtos ou serviços, cria, no espírito do consumidor, um risco de confusão que compreenda o risco de associação entre sinal e a marca”.
Como doutamente se assinala na sentença recorrida, só a marca registada goza de protecção do direito absoluto e exclusivo, e é protegida independentemente da ocorrência de qualquer dano, para o seu titular, pelo uso de marca semelhante.
Entretanto, na nossa lei estão previstos alguns desvios ou excepções.
O primeiro consiste na situação de alguém utilizar marca livre ou não registada por prazo não superior a 6 meses tem, durante esse mesmo prazo, direito de prioridade para efectuar o registo da respectiva marca (artigo 202º do RJPI), bem como qualquer cidadão de um dos países ou territórios membros da Organização Mundial do Comércio ou da União Internacional para a Protecção da Propriedade Industrial goza do direito de prioridade, durante seis meses, a contar da apresentação do pedido, para requerer o registo da mesma marca em Macau (artigo 16º do RJPI e artigo 4º da Convenção de Paris).
O segundo desvio resulta do regime aplicável na chamada marca notória, mesmo que não seja registada. Segundo esse regime, se for apresentado um pedido de registo de uma determinada marca, este pode ser recusado com fundamento de a marca requerida ser confundível com outra notoriamente conhecida pertencente a um cidadão abrangido pelo RJPI (artigo 214º do RJPI). Mais, o proprietário dessa marca notória pode ainda pedir a anulação do registo, se foi concedido, provando que já requereu em Macau o registo da respectiva marca notória (artigo 230º, nº 1, alínea b) e nº 2 do RJPI).
Finalmente, a terceira excepção é semelhante à segunda e consiste na protecção da chamada marca de prestígio, consagrada no nosso sistema jurídico nos termos do artigo 214º, nº 1, alínea c) do RJPI. Assim, um pedido de registo da marca pode ser recusado se esta se destina para assinalar “produtos ou serviços sem afinidade, que constitua reprodução, imitação ou tradução de uma marca anterior que goze de prestígio em Macau, e sempre que a utilização da marca posterior procure tirar partido indevido do carácter distintivo ou do prestígio da marca ou possa prejudicá-los”. Tal como acontece com a marca notória, o proprietário da marca de prestígio pode ainda pedir a anulação do registo, se foi concedido, provando que já requereu em Macau o registo da respectiva marca de prestígio (artigo 230º, nº 1, alínea b) e nº 3 do RJPI).
3. O Mmo Juiz considerou improcedente o pedido, no essencial, porque, afastando a notoriedade da marca, disse:
Segundo a matéria de facto dada como provada, entendo que embora a A. se dedique ao fornecimento de produtos de qualidade reconhecida, em especial do seu célebre “小龍包” (“Xiaolongbao” ou “pastéis chineses cozidos a vapor”), mas no fundo, o seu centro de actividades está em Taiwan, e nunca em Macau, apesar de ter explorado restaurantes em alguns outros países do mundo, mas em Macau a A. é pouco conhecida pelo público em geral. Salvo o devido respeito por opinião contrária, julgo que os residentes de Macau conhecem a marca da A. talvez por terem viajado a Taiwan, o que significa que para aqueles que nunca lá tinham ido, poucos conheceriam ou teriam ouvido falar dessa marca. Na verdade, tal como resulta da matéria provada, “Em Macau, alguns consumidores, sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca XXX à A.” (resposta dada ao quesito 12º), isto resulta que o conhecimento da marca da A. está limitado somente a determinados turistas vindos do exterior, a saber da China e de Taiwan, pelo que dificilmente podemos considerá-la como marca notória, muito menos como marca de prestígio.
4. Pretende a recorrente estribar-se no Direito Internacional para fazer vingar a sua pretensão, mas desde logo se observa que o fundamento da notoriedade da marca constitui igualmente um fundamento adoptado pela nossa lei interna no RJPI Regulamento Jurídico da propriedade Industrial), tal como decorre do supra citado artigo 219º.
A Convenção de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial de 20 de Março de 18831 harmoniza as diversas leis nacionais que regulam e protegem a propriedade industrial e institui um direito de prioridade, conferido ao seu titular, de forma a que este possa projectar o seu direito de propriedade industrial num país terceiro. Tal prioridade funda-se no artigo 4º da Convenção. Pressupõe-se o registo da marca noutro país da União, correndo, a partir dele, um prazo de 6 meses em que é reconhecida prioridade ao requerente em qualquer país da União, prioridade esta reconhecida no artigo 16º, n. º1 do RJPI que prevê: “Aquele que tiver apresentado regularmente pedido de concessão de direito de propriedade industrial previsto no presente diploma, ou direito análogo, em qualquer dos países ou territórios membros da OMC ou da União, ou em qualquer organismo intergovernamental com competência para conceder direitos que produzam efeitos extensivos a Macau, ou o seu sucessor, goza, para apresentar o pedido em Macau, do direito de prioridade estabelecido na Convenção da União de Paris para a Protecção da Propriedade Industrial.”
O registo da marca no país de origem tem relevância para a protecção outorgada pelo artigo 6º - quinquies, sendo então a marca protegida tal qual nos outros países da União.2 Prevê-se expressamente que a marca, nessas circunstâncias seja admitida a registo, apenas com as restrições previstas naquele preceito da Convenção.
Esta realidade difere do registo internacional da marca, instituto regulado pelo Acordo de Madrid de 18913 que, contrariamente ao que acontece em Macau, se encontra previsto e regulado nos artigos 196º e segs do Código da Propriedade Industrial, em Portugal. Pelo que, não vindo invocado o registo internacional, a questão deve ser analisada em função dos invocados registos da marca feitos em países da União (Convenção de Paris).
Mas se se pretende, por esta via, impor o registo da marca às autoridades da R.A.E.M., tornando-a imune às limitações da lei local, é a própria Convenção que se autolimita4 por via das restrições e fundamentos de recusa previstas no artigo 6º - quinquies B), 1º, 2º e 3º. E aí se encontram as mesmas restrições para que a lei de Macau aponta, na parte que nos interessa, no respeitante aos sinais constituídos por indicações que sirvam para designar a espécie, a qualidade ou o valor do produto ou que sejam susceptíveis de enganar ou confundir o público. Ressalva-se a aplicação do artigo 10º- bis em nome da sã e livre concorrência, pelo que o uso da marca e o seu lançamento no mercado não deixará de estar protegido, independentemente do registo, registo este que a recorrente pretende fazer mas que esbarrou com o registo da ré e que com a presente acção pretende ver anulado.
5. Dos requisitos relativos ao pedido de anulação subjacente ao pedido de anulação
Como vimos, o princípio geral contido no RJPI é o de que aquele que adoptar certa marca para distinguir os produtos da sua actividade económica gozará da propriedade e do exclusivo dela desde que satisfaça as prescrições legais, designadamente a relativa ao registo (artigo 214º).
Consagra-se neste preceito a eficácia constitutiva ou atributiva do registo, a qual não é posta em causa pelo artigo 217º do RJPI (o registo da marca implica mera presunção jurídica de novidade ou distinção de outra anteriormente registada), pois o que aí se pretende salvaguardar são os direitos daquele que anteriormente haja registado marca igualou semelhante (consagrando o princípio de que a marca só goza de protecção desde que se encontre registada - cfr., entre outros, os Acórdão dos STJ de 22/6/86; BMJ 359/751, da Rei. Lisboa de 7/11/85, Col. Jur., ano 1985, tomo 5, pág. 80).
Daqui resulta, desde logo, que a Autora não pode buscar abrigo para a sua pretensão dentro deste princípio geral, pois que não tem o registo.
No entanto, há algumas excepções a este princípio, e é justamente com uma delas que a Autora esgrime o seu principal argumento: sendo a marca que usa notoriamente conhecida, caber-lhe-ia a protecção decorrente dos já citados artigos.
E daí o pedir a anulação do registo abusivo.
Para lá da questão da identidade da marca - exactamente igual, como se alcança -, o que desde logo se constata é o interesse que a A. tem em proteger a sua marca na RAEM, donde resultará, não será difícil concedê-lo, também uma protecção do consumidor no sentido de ao vir a adquirir produtos com aqueles elementos identificadores não ser induzido em confusão sobre a proveniência e autenticidade de determinados produtos.
Ora, se a questão da protecção do consumidor, do respeito pela propriedade industrial e da protecção concedida através da notoriedade da marca é um valor em si, importa não esquecer que o registo é a forma adequada a garantir tal protecção.
Donde, vista a dimensão e o interesse alargado de protecção e eventual comercialização dos produtos da recorrente na RAEM, se tal é motivo suficiente para requerer a anulação de um registo de terceiro, com toda a eficácia e protecção que dele resulta, não há razão para dispensar a interessada de aqui fazer esse registo, pressuposto que se verifica no caso presente.
Se se pode compreender que uma dada empresa, detentora de determinada marca, dotada de uma certa reputação e notoriedade, malgré tout não tenha capacidade económica de proceder ao registo em todos os ordenamentos do Mundo, já não se compreende facilmente que o deixe de fazer a partir do momento em que invoca um determinado interesse de protecção comercial num dado ordenamento, vista até a própria natureza e finalidade do registo.
É assim que se compreende e plasma a disposição normativa contida no artigo 230º, n.º 3 do RJP, DL 97/99/M, de 13 de Dez. aí se estabelecendo que “o interessado na anulação da marca com fundamento na protecção de marcas de grande prestígio só pode intervir no processo quando prove já ter requerido em Macau o registo para os produtos ou serviços que lhe deram grande prestígio ou o faça simultaneamente com o pedido de anulação”.
Pelas razões acima aduzida facilmente se compreende a necessidade deste requisito. Sob pena até, de a julgar procedente o pedido, a A. beneficiar de uma protecção sem registo da sua marca na RAEM, contrariando as finalidades do próprio registo.
Mas resulta dos autos que a recorrente pediu o registo que só não consumou face ao registo da ré.
6. Vejamos o que se deve entender por uma marca notória.
Marca notória é a marca que adquiriu um tal renome que se tornou geralmente conhecida por todos aqueles, produtores, comerciantes ou eventuais consumidores, que estão mais em contacto com o produto, e como tal reconhecida.5 Por vezes, a notoriedade assume tal dimensão que o produto que, por via da marca, se procura distinguir passa, genericamente, a ser designado por referência à marca, independentemente da sua origem ou produtor.
Embora perfeitamente delimitado o conceito, a sua concretização torna-se vaga e indefinida. Não é fácil afirmar em que circunstâncias se está perante uma marca notória, na certeza de que essa notoriedade variará de acordo com a publicidade, a latitude, a implantação no mercado, o próprio universo dos destinatários.
A tutela da marca notória assenta em duas vertentes: uma, de ordem interna e a outra, da ordem internacional. Quanto a esta última curar-se-á no ponto seguinte e na medida em que a notoriedade a tutelar provenha do registo ter sido efectuado anteriormente em país estrangeiro.
No tecido normativo vigente na R.A.E.M. encontramos referência tutelar à marca notória no artigo 214º, nº 1, al. b) do RJPI que prescreve: “O registo de marca é recusado quando: (...) b) A marca constitua, no todo em parte essencial, reprodução, imitação ou tradução de outra notoriamente conhecida em Macau, se for aplicada a produtos ou serviços idênticos ou afins e com ela possa confundir-se, ou que esses produtos possam estabelecer ligação com o proprietário da marca notória;”
Daqui resulta que a marca, quando notória, constitui fundamento de oposição ao registo, formulado em nome da violação do direito da sã concorrência. Saber se a marca, apenas porque notória, pode ser registada, é questão diversa e, sendo a liberdade da composição a regra, importa indagar se as restrições da lei lhe são ou não oponíveis.
A notoriedade seria então aquilo que faria distinguir a protecção de uma marca, por via já não de uma mera oposição a outro registo e tal como aconteceria se se tratasse de uma mera marca de facto6, a proteger apenas em nome de uma concorrência desleal, mas por via directa, constituindo, por si, fundamento próprio do registo.
Nesta matéria, servindo-nos da lição do Prof. Pinto Coelho,7 para que a marca se qualifique como notoriamente conhecida não é necessário que o conhecimento da marca e de que ela pertence a certa entidade constitua facto público e notório, com as características que a esta fórmula se atribui na nossa legislação processual. A opinião dominante é no sentido de que a marca pode assim ser qualificada desde que alcançou notoriedade ou conhecimento geral no círculo dos produtores ou dos comerciantes ou no meio dos consumidores mais em contacto com o produto a que respeita a marca; basta que a marca se tenha divulgado de modo particular no círculo de pessoas que é uso designar por «meios interessados».
Tal protecção decorre igualmente do artigo 6º, bis, 1), da CUP, com a redacção que lhe foi dada em Estocolmo (Dec. nº 22/75, de 22/1), dispõe: «Os países da União comprometem-se a recusar ou invalidar, quer oficiosamente, se a lei do país o permitir, quer a pedido de quem nisso tiver interesse, o registo e a proibir o uso de marca de fábrica ou de comércio que constitua reprodução, imitação ou tradução, susceptíveis de estabelecer confusão, de uma marca que autoridade competente do país do registo ou do uso considere que nele é notoriamente conhecida como sendo já marca de uma pessoa a quem a presente Convenção aproveita e utiliza para produtos idênticos ou semelhantes. O mesmo sucederá quando a parte essencial da marca constituir reprodução de marca notoriamente conhecida ou imitação susceptível de estabelecer confusão com esta».
Estes preceitos têm sido interpretados como concedendo certa protecção às marcas notoriamente conhecidas como pertencentes a cidadãos de outros países da União e não registadas em Macau.
Como escreve o Prof. Ferrer Correia,8 “Se perante a Repartição da Propriedade Industrial for apresentado um pedido de registo de certa marca, esse pedido pode ser indeferido, a requerimento do interessado, com fundamento de que a marca registanda se confunde com outra notoriamente conhecida como pertencente a um cidadão de outro país da União....” E mais adiante9 “A protecção concedida aos titulares de marcas usadas e notoriamente conhecidas como pertencentes a cidadãos de outros países da União acima referida, significa, portanto, o abandono do sistema da eficácia constitutiva do registo, que é o sistema geral da nossa lei” - no sentido de que a aplicação das normas apontadas pressupõe que a marca seja notoriamente conhecida como pertencendo a cidadão de outro país da União.10
Mas isto não quer significar que se tenha de postergar o princípio do registo constitutivo ou atributivo que é, como já se viu, característico do nosso direito, colocando na mesma situação o proprietário da marca registada e o da marca de facto notoriamente reconhecida, quando ambos sejam residentes de Macau.
Ora, dos textos legais já transcritos, quer das interpretações doutrinais a que se aludiu, parece resultar claro que a protecção da marca (de facto) notoriamente conhecida é estabelecida a favor de um cidadão de um país da União, seu proprietário, num outro país da mesma União, onde se pretenda registar (ou onde já esteja registada) marca que, no todo ou em parte essencial, seja uma imitação, tradução ou reprodução daquela.
O ponto reconduz-se assim a indagar se a presente marca registada a favor da ré deve ceder perante a notoriedade da marca pertencente à A. que por via daquele registo está impedida de o fazer em Macau.
7. Importa, pois, projectar aqueles princípios no caso concreto.
Respiga-se a factualidade seguinte que comprovada vem:
- A Recorrente é uma sociedade de Taiwan (A), membro da União, e não de Macau, pelo que aproveita a protecção conferida pela Convenção de Paris;
o objecto social da Recorrente é a prestação de serviços de restauração e a comercialização de produtos de culinária chinesa (A);
a Recorrente usa o nome XXX no seu negócio de restaurante desde a década de 70 (1.º) e constituiu-se sob o nome e registou a marca XXX pela primeira vez em Taiwan, no ano de 1992 (3.º);
O sucesso do nome “XXX” advém da qualidade reconhecida dos produtos da A., em especial do seu célebre “小籠包” (“Xiaolongbao” ou “pastéis chineses cozidos a vapor”). (2.º);
(...) a marca “XXX” era reconhecida pelo público em geral em Taiwan. (7.º);
O estabelecimento XXX da A. foi considerado pelo New York Times como um dos 10 melhores restaurantes chineses no mundo. (4.º);
Nos restaurantes da A. são confeccionados e consumidos elevada qualidade de “小籠包” / “Xiaolongbao”. (5.º);
Tendo a A. sido contactada por alguns empresários de Macau para promover a sua franquia em Macau. (6.º e 13.º);
A R. copiou a imagem, grafismo e cores dos caracteres usados pela A. no marketing do seu nome e marca XXX. (9.º);
A R. copiou ainda na sua marca N/XXX, o logo, a designação, o grafismo de caracteres e a cor vermelha usados na marca registada da A. com o objectivo de atrair clientela e enganar o consumidor. (10.º);
Em Macau, alguns consumidores, sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca XXX à A. (12.º);
Perante este acervo fáctico estamos em crer que houve aqui uma situação manifestamente abusiva, realçando-se o facto de a sociedade de Macau, cujos sócios são oriundos de Taiwan, conhecendo o sucesso daquela marca a terem implantado em Macau, copiando-a com o fim de atrair clientela.
Ora estes factos são muito negativos e não deixam de ser censuráveis, merecendo a protecção que decorre até das situações de abuso e de concorrência desleal.
Mas deixemos, por ora, este argumento e analisemos a questão da notoriedade da marca.
Parece evidenciar-se que no meio dos comerciantes do ramo e dos apreciadores daquele tipo de comida e de pastéis a marca da recorrente é sobejamente notória e célebre.
Tal decorre das alusões na imprensa prestigiada internacional, tal decorre do conhecimento generalizado não só das pessoas de Taiwan como das pessoas que ali se deslocam dessa qualidade da comida, não nos podendo esquecer que estamos perante uma matéria muito sensível como é a alimentação em que a qualidade e genuidade dos produtos deve ser um valor.
Acresce que o conhecimento da celebridade e qualidade de um produto oriundo de um outro território e que aqui se procura imitar não se deve circunscrever aos residentes de Macau, mas a todo um público que aqui se desloca, não esquecendo os milhões de visitantes de Macau, incluindo uma boa perecentagem de turistas oriundos de Taiwan, não esquecendo, como está bem de ver, uma parte dos residentes de Macau que visitam aquela Região e que não deixarão de conhecer o sucesso, qualidade e impacto de tal marca.
Entender que o conhecimento notório em Macau de uma marca se deve fazer por referência aos residentes de Macau significa dar tutela a situações que, a final, traduzem uma lesão dos interesses económicos de Macau assentes no turismo e, no plano estritamente jurídico, é uma interpretação formal e que não tem acolhimento expresso na lei que não se refere a residentes.
A não se entender desta forma, o que se sufraga é que os turistas que fazem parte do círculo de interessados da marca da recorrente chegam a Macau para fruir daqueles pastéis cozinhados no vapor, vão ao restaurante da recorrida porque os associam à recorrente e podem de lá sair com a frustração de terem sido enganados em Macau, porque não comeram os produtos generalizadamente associados a uma dada marca.
O que resulta do facto de vir provado que “Em Macau, alguns consumidores, sobretudo os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca XXX à A.” (12.º), não sendo de excluir que a expressão “alguns consumidores” vise os consumidores que formam o círculo de interessados com maior relação com o produto ou serviço a que a marca da recorrente corresponde.
A estes argumentos acresce que só faz sentido copiar algo para atrair clientela se o objecto da cópia for atractivo e merecedor de ser comercializado enquanto tal, na exacta medida que por essa razão se vai vender mais, e isso só acontece se realmente uma determinada marca estiver realmente implantada e difundida de forma a chamar clientela.
Facto este que não deve deixar de ser articulado com aqueloutro “Os sócios da R., com excepção de C, são residentes permanentes em Taiwan e conheciam perfeitamente que a marca “XXX” era reconhecida pelo público em geral em Taiwan.” (7.º), o que inculca exactamente no conhecimento e aceitação daquele marca mesmo em Macau, sob pena de não valer a pena aterem-se a ela.
Este é mais um argumento que aponta para a evidência da notoriedade reclamada.
8. Do abuso de direito
Não deixa de se ser sensível ao facto de vir manifestamente comprovado que a ré copiou a marca para atrair e enganar os clientes.
Ora isto não pode ser.
Muito sumariamente, na linha da melhor Doutrina e Jurisprudência, dir-se-á que o abuso de direito é de conhecimento oficioso quando choque com regras de interesse e ordem pública, nomeadamente quando estejam em causa interesses relacionados com os bons costumes e até com o fim económico e social do direito.
Já não assim quando o que estiver primacialmente em causa seja interesses das partes, direitos de uns contra os interesses de outros, o que sobreleva em situações de má-fé. Nestes casos chocaria que a matéria fosse de conhecimento oficioso.11
A situação dos autos parece poder enquadrar-se na primeira linha, estando em causa a defesa de uma sã concorrência e defesa dos consumidores e da economia.
Não deixa de estar subjacente aqui um interesse público.
Dispõe o art. 326º do Código Civil:
É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.
“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.”12 13
A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas geradas.
Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, bastando que objectivamente, se excedam tais limites.14
Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito que, alegadamente, afectou a autora, importaria demonstrar que a ré, ao exercer um seu alegado direito, excedeu, manifestamente o seu fim social ou económico, ou que, com a sua actuação, violou sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o seu investimento na confiança, na continuidade e na estabilidade,15 violando a regra da boa-fé - art. 752º, n. º2, do Código Civil - para já não falar nos actos emulativos (sem utilidade alguma).
É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.16
Salvaguardando algumas ressalvas, taxativamente previstas, quem regista primeiro tem a prioridade.
Mesmo em situações de grande notoriedade ou prestígio a lei condiciona a protecção das marcas a uma iniciativa registral nos diversos ordenamentos.
A não ser assim, estaria aberta a protecção de uma e qualquer marca implementada e estabelecida em qualquer lugar em todo o resto do Mundo.
E tudo estaria bem, não fora o caso de vir comprovado o fito de enganar a clientela.
Não pode haver contemplação do sistema jurídico com esta má-fé da ré, razão por que, ainda por esta via, o registo da ré não deixará de ser passível de anulação.
O abuso do direito sanciona, como se viu, também, a violação do princípio da boa-fé e da confiança inerentes a uma concepção ética do agir nas relações negociais.
O Regime Jurídico da Propriedade Industrial da RAEM consagrou como fundamento de recusa o reconhecimento de que deve ser vedado ao requerente do registo de uma marca o exercício de concorrência desleal e que esta é possível independemente da sua intenção - cfr. art.º 9.º, n.º 1, alínea c), do RJPI.
A lei não descreve as situações que podem configurar concorrência desleal - ao contrário do que acontece em termos de Direito Comparado com o art. 317º do CPI de Portugal -, destacando-se na Doutrina, exemplificativamente situações integrantes dessa figura.
Assim, são indicadas, a título de exemplo, na Doutrina e na Lei comparadas, as seguintes: situação objectiva de concorrência desleal por confusão de produtos (mas já não confusão de marcas que é uma situação que remete para outro fundamento de recusa com pressupostos próprios); pedido de registo de uma marca de facto usada há mais de seis meses por um outro concorrente (tendo em conta que dentro do prazo de seis meses o titular da marca de facto goza do direito de prioridade para efectuar o registo); pedido de registo de uma marca cujo registo haja sido pedido num dos países da Convenção da União de Paris por um outro concorrente que tenha cumprido o prazo de prioridade de seis meses para o pedido do registo na RAEM previsto no art.º 4º C-1 da Convenção de Paris; pedido de registo de marca que contenha o nome ou insígnia, não registados, de um estabelecimento comercial muito conhecido; pedido de registo de uma marca feito com intenção malévola de evitar o pedido iminente (e não ignorado) do registo da mesma marca por parte de um concorrente; pedido de registo de uma marca que, de modo ardiloso como é apresentada, é susceptível de induzir em erro o consumidor; falsas afirmações ou indicações de qualidade, de crédito ou reputação próprios, com o fim de beneficiar do crédito e reputação alheios.17
Donde, ainda por esta via, dever soçobrar a protecção concedida ao registo da ré.
10. Da tutela da firma da Recorrente ao abrigo da Convenção de Paris e do RJPI
O artigo 8.º da Convenção de Paris estabelece que “O nome comercial será protegido em todos os países da União sem obrigações de registo, quer faça ou não parte de uma marca de fábrica ou de comércio.”
Resulta dos factos assentes e supra realçados que a Recorrente foi constituída antes da Recorrida, em 1992, com a firma A sendo o elemento preponderante do nome a expressão XXX
Mais resultou provado que “(...) os turistas oriundos do Continente e os vindos de Taiwan, associam o nome e a marca XXX à A.” (12.º), sendo que estes turistas representam mais de metade dos milhões de turistas que anualmente visitam Macau
Donde se afigura que o registo da firma da ré também não pode obstar à anulação do registo da marca para um dado produto, por corresponder a uma expressão contida na firma aqui registada, mas posteriormente àquela que pertence à autora oportunamente registada num membro da União.
Tudo visto e ponderado resta decidir, no sentido da anulação do registo em causa e no pressuposto do registo da A. que só não foi por diante face àquele.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida e anulando a marca nominativa registada a favor da ré com o n.º N/XXX para XXX, na classe 42.
Custas pela recorrida.
Macau, 19 de Janeiro de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Revista pelo Acto de Estocolmo de 14 de Julho de 1967 e alterada em 2 de Outubro de 1979, vigente no ordenamento jurídico da R.A.E.M. , tendo sido notificada a entidade depositária pelo representante da R.P.C. em 30/Nov./1999 (segundo dados fornecidos pelo G.A.D.I, com actualização em 4/6/2002); o que decorre ainda do RJPI e do próprio Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – TRIPS no âmbito do Acordo que instituiu a OMC publicado no BO de 26/2/96.Os acordos internacionais previamente em vigor em Macau, em que a República Popular da China não é parte, podem continuar a aplicar-se na R.A.E.M (parágrafo 2 do artigo 138º da Lei Básica) pressupondo-se a notificação respectiva por parte da Governo da RPC.
2 - Oliveira Ascensão, ob. cit, pág. 148
3 - Revisto em Bruxelas em 14 de Dezembro de 1900, em Washington em 2 de Junho de 1911, em Haia em 6 de Dezembro de 1925, em Londres em 2 de Junho de 1934 e em Nice em 15 de Junho de 1957. Não obstante a sua extensão a Macau, o Acordo de Madrid relativo ao Registo Internacional das Marcas após parecer favorável da AL (cfr. Resolução 25/98/M da Assembleia Legislativa), o Acordo de Madrid não estará em vigor na RAEM, por falta da respectiva notificação do Governo da R.P.C. à entidade competente.
4 - É entendimento dominante na Jurisprudência portuguesa que de harmonia com o art. 6º, quinquies o registo nacional de marca internacional regularmente registada no país de origem só pode ser recusado, caso se verifique alguma das circunstâncias taxativamente indicadas no art. 6º- quinquies – B) : Ac. do STJ de 5/2/91 in BMJ 404/473; de 11/11/97, BMJ 471/406; CJSTJ,V,3º, 127 e segs ; de 26/4/01, http://WWWdgsi.pt
5 - Carlos Olavo, in ob. cit., pág. 55
6 - Ferrer Correia, in ob. cit., pág. 338
7 - RLJ 89, 23
8 - Lições de Direito Comercial (1985), vol. I, pág. 357
9 - pág. 358
10 - cfr. Patrício Paul - Concorrência Desleal, pág. 61, e Prof. Pinto Coelho - RLJ 84, 131.
11 - Sobre a matéria e reporte de uma resenha da posição de Vaz Serra e diferentes arestos do STJ, cfr. Oliveira Ascenção, ob. cit., 282 e segs.
12 - Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117
13 - A. Varela, Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536
15 - Menezes cordeiro, Dto civil port. 2007, tomo IV, 278
16 - Dto das Obrig., 3ª ed., 63
17 - Art. 317º do CPI de Portugal e Couto Gonçalves, Dto de Marcas, 2000, 167
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714/2010-S 1/37