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Processo n.º 627/2011
(Reclamação para a Conferência)

Data : 9/Fevereiro/2012

ASSUNTOS:
- Legitimidade para recorrer
- Absolvido na acção/vencido/prejudicado
- Prejuízo directo e efectivo

   SUMÁRIO:
   
   1 - Numa acção de responsabilidade civil, na sequência de um acidente ocorrido no âmbito de uma obra de construção civil, o segurado, se vier a ser absolvido do pedido, ainda que tenha sido considerado culpado pela ocorrência de um acidente, não tem legitimidade para recorrer.

2 - Só o titular de um interesse directo e efectivo, considerando-se este como o correspondente a ter-se sofrido um prejuízo actual, positivo, directo, jurídico, prejuízo este que não pode deixar de ser concretizado, poderá recorrer, só ele se considerando prejudicado pela decisão.
   
O Relator,

(João Gil de Oliveira)

Processo n.º 627/2011

(Reclamação para a Conferência)

Data: 9/Fevereiro/2012


RECLAMANTE

(3ª ré) A

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    "A", recorrente nos autos à margem identificados, notificada do despacho que rejeitou o recurso por ela interposto para este Tribunal de Segunda Instância, vem dele RECLAMAR PARA A CONFERÊNCIA, requerendo que sobre a matéria do referido despacho recaia um acórdão, nos termos do disposto no art. 620.° do Código de Processo Civil, tendo em conta o seguinte:
    1. Foi decidido no douto despacho ora reclamado, sufragando o entendimento dos Recorridos, que a aqui recorrente e ora Reclamante não tem legitimidade para recorrer na medida em que foi absolvida do pedido formulado contra ela.
    2. Segundo é referido no douto despacho, tal deve-se ao facto de, entre outros argumentos, a Reclamante não sofrer com a decisão exarada na sentença recorrida, um prejuízo directo, positivo, actual e jurídico.
    3. Para fundamentar o seu entendimento, o douto despacho reclamado alicerça-se, ainda, em jurisprudência desse Venerando Tribunal que, no nosso modesto entendimento, nada tem que ver com o caso ora apreço.
    4. Na verdade, se no caso do recurso n.º 640/2006 citado no douto despacho, a sociedade ali recorrente foi absolvida "tout court" do pedido apresentado em tal procedimento cautelar, o mesmo não acontece nos presentes autos.
    5. É que, como já referido em anterior requerimento junto aos autos, no caso em apreço, embora a douta sentença recorrida tenha absolvido a Recorrente do pedido, considerou a mesma como a única responsável pelo acidente.
    6. Ou seja, não se verificou uma absolvição "total" da Recorrente, que ficou vencida no que diz respeito à sua responsabilidade, que não pode aceitar e com a qual se não pode conformar em nome da verdade material dos factos! E ainda assim, com o despacho ora reclamado, vê-se-lhe rejeitada a necessária justiça quanto a tal!
    7. Acresce ainda que, somente por via dessa sua (alegada) responsabilidade é que a mesma douta sentença condenou as 1ª e 2ª intervenientes nos autos (seguradoras) no pagamento de indemnização, que constituía o objecto do pedido.
    8. Por outro lado, sempre com o devido respeito, no entendimento da ora Reclamante tal decisão não se encontra em conformidade com os "cânones" do quanto ensina aquela que é a melhor doutrina e a melhor jurisprudência relativas ao caso.
    9. Com efeito, como ensina a doutrina e tem defendido a jurisprudência portuguesa, referindo-se ao n.° 1 do artigo 680° do Código Civil Português, equivalente, com a mesma redacção, ao n.° 1 do artigo 585°, n.° 1 do CPCM, a palavra "vencido" utilizada na norma em questão equivale a "prejudicado", isto é, refere-se àquele a quem a decisão tenha sido desfavorável, independentemente de ser ou não condenado nos pedidos formulados pelo autor (Vide na doutrina, por todos, Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, 3ª Ed. Vol. V, pago 266, e na jurisprudência portuguesa Ac. STJ de 21.10.1967, citado por Abílio Neto in Código de Processo Civil Anotado, 19ª Edição, comentário 2 ao artigo 680 e o Acórdão da Relação de Lisboa, proferido em 28.09.1993, disponível na página electrónica www.dgsi.pt. com o n.º de proc. 0070761, que refere o seguinte: "Tem legitimidade para recorrer não apenas quem obteve uma decisão desfavorável, mas também quem obteve uma decisão favorável sendo possível outra ainda mais favorável.").
    10. É, de resto, nessa mesma lógica que o n° 2 do mesmo artigo 585° do CPCM consagra que as pessoas directa e efectivamente prejudicadas pela decisão podem dela recorrer, ainda que não sejam partes na causa ou sejam apenas partes acessórias.
    11. Por outro lado, referindo-se ao conceito de "vencido" ou "prejudicado", ensina Alberto dos Reis que "Há casos em que tem legitimidade para recorrer a parte aparentemente vencedora; por outras palavras, há casos em que a sentença foi favorável à parte que recorre e contudo não pode considerar-se o recorrente parte ilegítima para impugnar a decisão" (Vide Alberto dos Reis, Ob. e Loc. citados).
    12. Assim, no que no que respeita ao réu numa acção, nem sempre a sua absolvição corresponderá ao seu vencimento na mesma. Daí que terá legitimidade para recorrer da decisão sempre que esta lhe for prejudicial, ainda que não seja de condenação.
    13. Ora, a responsabilização da Reclamante levada a cabo na sentença, obviamente prejudicará a mesma nas suas relações com as Intervenientes, ora também Recorrentes. E nem se diga que tal prejuízo não é directo ou que será meramente reflexo, já que o prejuízo económico resultante do pagamento de franquias e prémios acrescidos de seguro, tanto relativamente às Intervenientes, como relativamente a qualquer outra companhia seguradora ciente da alegada responsabilização da Reclamante nos presentes autos, é um prejuízo económico directamente consequente da decisão exarada e quantificável!
    14. Mas não é só este o prejuízo que tal decisão acarretará para a Reclamante. O prejuízo para a imagem da mesma será outra das consequências directas da sua responsabilização, uma vez que será posta em causa a competência da Reclamante no campo da segurança das obras levadas a cabo por si, o que não deixará de ser do conhecimento dos seus clientes, bons conhecedores do meio na indústria de construção civil.
    15. Assim, deve ser entendido que, não obstante a absolvição da Recorrente que não foi total, mormente quanto à alegada "culpa e responsabilidade directa" nos factos em apreço - esta ficou vencida no sentido de que é directa e efectivamente prejudicada pela decisão tomada.
    Termos em que,
    se requer seja lavrado acórdão sobre a presente questão, defendendo a ora reclamante, mediante o acima exposto, a sua legitimidade para interpor recurso da sentença proferida nos autos.
    
    II - Despacho recorrido
    É do seguinte teor:
    “Os recorridos suscitam a questão da ilegitimidade da 3ª Ré A para recorrer.
    Têm razão os recorridos.
    A 3ª ré foi absolvida do pedido na acção.
    Face ao artigo 585º, n.º 1 do CPC das partes principais só o vencido tem legitimidade para recorrer.
    O n.º 2 reporta-se a partes não principais ou terceiros prejudicados com a decisão.
    Cfr. Amâncio Ferreira, Man. Rec. em Proc. Civil, 5ª ed., 129 e segs.
    Mas mesmo que se entendesse que no n.º 2 as partes principais não estão excluídas desde que “directa e efectivamente prejudicadas” este interesse não pode deixar de ser aferido em termos de prejuízo actual, positivo, directo, jurídico (cfr, autor e ob. cit., pág. 131 e Alberto dos Reis, CPC anot., V, 3ª ed., pág.272).
    Qual o o interesse da 3ª Ré? Diz ela que tendo sido declarada responsável, o seu relacionamento com a Seguradora ficará comprometido. Sem que se concretize.
    Mas esse é um interesse indirecto, reflexo, eventual, longínquo e incerto.
    Para além de que a Seguradora não deixa de estar na acção e lutará porventura pela irresponsabilidade do seu segurado.
    Esta posição já anteriormente foi assumida no processo n.º 640/08, de 15/2/07, deste TSI.
    Por estas razões considero a 3ª Ré San Meng Fai Lda sem legitimidade para interpor recurso na presente acção, pelo que não recebo o recurso por ela interposto.”
    
    III - Cumpre apreciar.
    1. No essencial, damos aqui por reproduzidos os argumentos acima expendidos, não deixando, no entanto, de tecer um ou outro comentário e aditamento.
    2. Desde logo, em primeiro lugar, interessa ter presente que a reclamante foi absolvida do pedido contra ela formulado nos autos, pedido esse que se traduzia no pagamento de determinadas quantias. E foi absolvida por a responsabilidade emergente de acidentes que ocorressem no desenvolvimento das obras - no caso, queda de objecto em cima de transeunte com morte deste – se encontrar transferido para uma Seguradora/s.
    Ora, como ensinava Castro Mendes, os recursos têm por objecto decisões, sendo estas que devem motivar os recursos e não já os respectivos fundamentos. A legitimidade para recorrer do vencido nada tem a ver com a atitude assumida pela parte, mas sim pela decisão tomada em relação a ela.1
    Em função deste critério a reclamante não se pode considerar vencida, perguntando-nos nós qual o interesse que dentro do processo mais pode fazer valer?
    Responde a reclamante, dizendo que tem interesse em não ser declarada responsável. Só que essa posição, dentro do processo, só relevará em relação às rés condenadas, conduzindo a uma eventual absolvição destas, mas esse interesse terá de ser por elas prosseguido.
    
    3. O interesse alegado, note-se, só agora foi concretizado e se caímos na previsão da norma, no sentido da tutela de um interesse directo e efectivo, não só de terceiro, mas mesmo das partes principais, então esse interesse não pode deixar de ser oportunamente alegado. E o certo, repete-se, é que só agora a reclamante nos vem dizer qual o seu prejuízo, ao arrepio da razão de ser da norma que aponta para que o recorrente, logo que deduza o recurso esclareça o tribunal desse seu interesse que o tribunal não pode adivinhar.
    Neste sentido, cfr. o ac. do TSJ2, enquanto entendeu que o prejudicado deve, desde logo, concretizar as razões do seu prejuízo. (referência que se faz, em termos comparados e, mutatis mutandis, para que a reclamante não venha dizer que os acórdãos citados tratam de coisas diferentes, isso sabendo nós de há muito e inteirados que estamos que cada caso é um caso - para fechar este parêntesis, não se deixa de referir que o que se pretendia, admitindo termos sido menos claros, com a citação do ac. do TSI n.º 640/06 era que, também aí, o absolvido do pedido cautelar procedimental não foi admitido a recorrer, por a recorrente não esclarecer em que termos se devia considerar a mesma recorrente “directa e efectivamente” prejudicada com a referida decisão),
    Este o segundo ponto que interessa focar e se traduz assim na falta de concretização do prejuízo, entrando pelos olhos dentro que se alguém que foi absolvido de um dado pedido e quer recorrer deve explicitar as razões.
    Ora, só agora, o fez.
    
    4. Mas num terceiro momento, vejamos em que se concretiza o interesse da reclamante.
    Assenta ele em duas ordens de vectores: por um lado, basicamente, o prémio do seguro pode ser onerado; por outro, a sua imagem fica desacreditada.
    Ambas as razões são meramente hipotéticas, indirectas, reflexas, potenciais, tudo como já anteriormente se escreveu no despacho ora posto em crise, tentando adivinhar aquilo que a reclamante veio a concretizar.
    Acresce que ambas as razões se apresentam como consubstanciando prejuízos meramente possíveis e não efectivos e directos, tal como preceitua a norma. Na verdade, a seguradora pode ou não agravar o prémio de seguro; é natural que sim, a experiência aponta para que assim possa acontecer, mas isso não é uma certeza, bem sabendo que se podem renegociar contratos e fazê-los com outras companhias. Depois, nada nos diz, a experiência, também o ensina, que para certas seguradoras basta a participação do acidente para o segurado ver agravado o prémio.
    Tudo isto se situa no mundo das possibilidades e não das certezas.
    O mesmo acontece com descredibilização a que alude. Pode ser que sim, pode ser que não. Estamos, de qualquer modo, sempre no domínio das conjecturas e essa possibilidade é afastada da integração da previsão da norma que tutela os interesses directos e efectivos dos vencidos ou de terceiros prejudicados com a decisão.
    Remetemo-nos aqui para a doutrina citada no despacho transcrito.
    5. Num quarto estádio argumentativo, não se deixa de referir que casos há em que é a própria lei que desde logo não admite o segurado na acção quando a responsabilidade tenha sido transferida e a indemnização se encontre coberta pelo capital coberto pelo seguro. Então, nesses casos, na lógica da reclamante, o segurado estria impedido de contribuir ou ajudar a seguradora na defesa da sua posição e de afastar os fundamentos que serviriam de base à condenação daquela? Poder-se-á dizer que dentro de tal lógica o segurado, sendo dado como responsável, sempre estaria, sem mais, legitimado a recorrer; só que isso, como está bem de ver, não deixa de contrariar o comando que o afasta de intervir na acção.
    É que - a reclamante parece esquecer-se disso - os efeitos do caso julgado são muito limitados e havendo um outro interesse, uma outra causa de pedir, eles terão de se fazer valer noutra acção, donde não se ver vantagem imediata, neste processo, para os invocados prejuízos por banda da reclamante.
    Prejuízos estes que devem ser reais e jurídicos3, entendidos numa relação entre a decisão e os seus efeitos em relação à parte.4
    Ora, os efeitos da decisão em nada prejudicam o demandado que ficou absolvido do pedido, o que já seria diferente se ele tivesse sido absolvido da instância, situação esta que, numa aproximação à questão em apreço, é perspectivada por Lebre de Freitas, enquanto configura: “Do mesmo modo, o réu que tenha deduzido defesa por impugnação ou excepção peremptória e defesa por excepção dilatória pode recorrer da decisão que, julgando esta procedente, o absolveu da instância, visto lhe ser mais favorável a absolvição do pedido, mas não pode recorrer da sentença que o absolva do pedido por procedência da excepção peremptória ainda que preferisse ser absolvido por inconcludência ou falta de prova da causa de pedir, ou vice-versa, visto ter sido idêntico o resultado obtido”.
    Face ao exposto, somos a concluir no sentido da improcedência da reclamação.
     IV DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento à reclamação, mantendo o despacho reclamado.
    Custas pela reclamante recorrente.
Macau, 9 de Fevereiro de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Recursos, 1972, pág. 11 e 12
2 - Ac. STJ, proc. 04B697, de 22/4/2004
3 - Ac. STJ, de 21/11/79, BMJ 291, 420
4 - Cfr. ainda a. STJ, de 7/12/93, BMJ 432, 298
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