Processo n.º 37/2011 Data do acórdão: 2011-12-07
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– cheque sem provisão
– arbitramento oficioso de indemnização
– pena suspensa
S U M Á R I O
1. Estando provado em primeira instância que como os discos compactos de CD-R então produzidos pela assistente e retidos no Paquistão acabaram por não conseguirem ser vendidos na totalidade até antes de 25 de Janeiro de 2005, o arguido, em nome da sua sociedade comercial, precisava de assumir a obrigação do pagamento do preço das mercadorias remanescentes, e, por isso, preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.o HC396638, datado de 31 de Janeiro de 2005, no valor de HKD70.020,00, é de concluir que o arguido, na altura da emissão desse cheque, tinha que pagar, mas não pagou ainda, à assistente o valor de HKD70.020,00, como preço concreto das mercadorias remanescentes retidas no Paquistão, sendo certo que o segundo cheque dos autos, preenchido, assinado e entregue de novo pelo arguido à assistente, tinha por função apenas repetir o dito primeiro cheque, então devolvido pelo banco por insuficiência de fundos.
2. Portanto, é de passar a arbitrar oficiosamente, sob a égide do art.o 74.o, n.o 1, do Código Penal vigente, uma indemnização cível a favor da assistente no valor de MOP72.225,70 (equivalentes a HKD70.020,00), como correspondente ao preço concreto dos discos compactos então também produzidos pela assistente mas ainda não vendidos no Paquistão até antes de 25 de Janeiro de 2005, com juros legais desde a data do presente acórdão de recurso até integral e efectivo pagamento.
3. E não obstante estar provado que o arguido tem por rendimento mensal duas a três mil patacas, é de passar a subordinar, nos termos do pelo art.o 49.o, n.o 1, alínea a), do Código Penal, a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento da indemnização no prazo de sete meses, visto que o arguido não deixa de ser sócio de uma sociedade comercial.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 37/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A
Recorrido (arguido): B
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 210 a 214 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR3-08-0138-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, ficou o arguido B, aí já melhor identificado, condenado como autor material, na forma consumada, de dois crimes de emissão de cheque sem provisão, p. e p. pelo art.o 214.o, n.o 1, do Código Penal vigente (CP), na pena de cinco meses por cada, e, em cúmulo, na pena única de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano.
Inconformada, veio a assistente penal chamada A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para pedir que se lhe passasse a arbitrar oficiosamente uma indemnização cível no valor de HKD144.040,00 (correspondente à soma dos montantes constantes dos dois cheques dos autos), ou, pelo menos, no valor de HKD100.000,00 (então confessado pelo arguido como ainda em dívida à própria assistente), e que a suspensão da execução da pena de prisão fosse condicionada ao pagamento da indemnização, tendo, para o efeito, alegado essencialmente o seguinte na sua motivação (apresentada a fls. 220 a 233 dos presentes autos correspondentes):
– a decisão recorrida não arbitrou indemnização pelos crimes por que ficou condenado o arguido, nem remeteu a questão de indemnização para a sede de execução da decisão, com alegado fundamento de que as provas dos autos não eram suficientes para confirmar que o arguido ainda devia à assistente alguma quantia concreta ou quais os outros danos concretos produzidos à assistente;
– entretanto, nunca ninguém pediu ou se queixou doutros ilícitos ou danos que não fossem os dois crimes em causa;
– razão pela qual a decisão recorrida violou o seu dever de pronúncia em relação à questão de indemnização cível, para além de exceder a sua devida pronúncia ao remeter a assistente para acção cível em separado quanto a negócios lícitos ou ilícitos cujo julgamento (nem cível nem penal) não pediu a própria assistente nem se queixou;
– violou, assim, a decisão recorrida as disposições da Lei Uniforme relativa aos Cheques e dos art.os 214.o, 221.o, 201.o e 74.o, n.o 3, do CP;
– para além de haver nessa decisão a contradição insanável da fundamentação, por essa decisão, por um lado, ter condenado penalmente o arguido por causa do incumprimento da obrigação cambiária e criminal de obrigatório pagamento à vista dos precisos montantes que constam dos cheques, e ter, por outro lado, desconhecido tal incumprimento para efeitos de indemnização cível apesar de nada nos autos mostrar que tal incumprimento já foi reparado;
– tendo a decisão recorrida violado ainda o princípio da suficiência do juiz penal.
Ao recurso não foi apresentada nenhuma resposta nomeadamente pelo arguido.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 248 a 249), no sentido de manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O Tribunal recorrido deu como materialmente provado o seguinte:
– a assistente A dedica-se à produção, importação e exportação dos discos compactos do tipo CD-R;
– o arguido B é sócio da sociedade comercial chamada C;
– em 2004, o arguido tomou conhecimento de que uma companhia sita no Paquistão pretendia comprar grande quantidade de discos CD-R, pelo que pediu, na qualidade de mediador, à assistente para os produzir para essa companhia e transportar para aquele país;
– contudo, depois de transportadas todas as mercadorias ao Paquistão, a parte compradora não as levantou, o que levou a que a assistente não tenha conseguido receber o respectivo preço, com consequente cancelamento da transacção;
– nessa altura, o arguido comprometeu-se a assumir a correspondente responsabilidade, para ajudar a assistente a procurar novos compradores no Paquistão, e assinou, em 12 de Janeiro de 2005, com um sócio da assistente, um termo de garantia de pagamento, para garantir que se a assistente não viesse a conseguir, até antes de 25 de Janeiro de 2005, receber todo o preço daquelas mercadorias, a sociedade C iria assumir a obrigação de pagamento das mesmas mercadorias e de todas as despesas entretanto adiantadas pela assistente;
– como chegado o termo do dito prazo-limite, as mercadorias retidas no Paquistão não conseguiram ser vendidas na totalidade, a sociedade C precisava de assumir a obrigação de pagamento do preço das mercadorias remanescentes. Por isso, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente um cheque do Banco da China, com o n.o HC396638, no valor de HKD70.020,00, e datado de 31 de Janeiro de 2005, cheque esse que levado ao pagamento em 3 de Fevereiro de 2005 foi devolvido com fundamento na insuficiência de fundos;
– em 20 de Fevereiro de 2005, o arguido, de novo, preencheu, assinou e entregou à assistente um cheque do Banco da China, com o n.o HC396639, no valor de HKD70.020,00, e datado de 20 de Fevereiro de 2005, cheque esse que levado ao pagamento em 24 de Fevereiro de 2005, foi devolvido com fundamento na insuficiência de fundos;
– o arguido tem por rendimento mensal duas a três mil patacas.
Outrossim, do exame dos autos, sabe-se que a assistente não chegou a deduzir pedido cível de indemnização a exertar nos autos penais subjacentes à presente lide recursória.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesta ordem de ideias, é de conhecer primeiro da assacada questão de contradição insanável da fundamentação.
Não tem razão a recorrente, porquanto a decisão penal condenatória tomada no acórdão recorrido não contradiz com a decisão, também aí emitida, de não arbitramento oficioso da indemnização cível.
De facto, embora o Tribunal a quo tenha dado por verificados os dois acusados crimes de emissão de cheque sem provisão, o mesmo Ente Julgador fundamentou a sua decisão de não arbitramento oficioso da indemnização com base no seu entendimento de que “as provas dos autos não são suficientes para determinar o montante concreto que o arguido ainda devia à assistente, nem para saber se há ainda outros danos concretos”.
Trata-se, no fundo, de um entendimento do qual a assistente pode naturalmente discordar, mas não existe, ao certo, o ora esgrimido vício da alínea b) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
Daí que também não houve omissão de pronúncia nem excesso de pronúncia, porque dentro da própria lógica do tal entendimento, pôde concluir o Tribunal recorrido que não podia arbitrar oficiosamente nenhuma indemnização cível, o que tornaria necessária a propositura da acção cível em separado.
Mostra-se, assim, pouco pertinente a invocação, na motivação do recurso, das disposições da Lei Uniforme relativa aos Cheques e dos art.os 214.o, 221.o, 201.o e 74.o, n.o 3, do CP, ou do princípio, em abstracto, da suficiência do juiz penal, para sustentar a tese da recorrente.
É, entretanto, de ajuizar agora da rectidão, ou não, da recorrida decisão de não arbitramento oficioso da indemnização, o que constitui a questão nuclear materialmente posta na presente lide recursória pela assistente, através da invocação das aludidas disposições jurídicas.
Ante os factos provados acima coligidos da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, já se acha seguramente provado em primeira instância que: como os discos compactos de CD-R então produzidos pela assistente e retidos no Paquistão acabaram por não conseguirem ser vendidos na totalidade até antes de 25 de Janeiro de 2005, o arguido, em nome da sociedade C, precisava de assumir a obrigação do pagamento do preço das mercadorias remanescentes, e, por isso, o arguido preencheu, assinou e entregou à assistente o cheque n.o HC396638, datado de 31 de Janeiro de 2005, no valor de HKD70.020,00.
Nestes termos, é de concluir que o arguido, na altura da emissão desse cheque, tinha que pagar, mas não pagou ainda, à assistente o valor de HKD70.020,00, como preço concreto das mercadorias remanescentes retidas no Paquistão (sendo certo que o segundo cheque, diversamente do sustentado pela assistente, tinha por função apenas repetir o dito primeiro cheque, então devolvido pelo banco por insuficiência de fundos – para constatar isto, basta atender a que foi provado que o arguido, de novo, preencheu, assinou e entregou à assistente um cheque…).
E quanto a “todas as despesas entretanto adiantadas pela assistente”, em relação às quais o arguido, conforme com a matéria de facto descrita como provada no acórdão recorrido, também chegou, em nome da sociedade C, a assumir a responsabilidade do seu pagamento por causa do termo de garantia de pagamento assinado em 12 de Janeiro de 2005, já é de entender que a matéria de facto assente nos autos não consegue fornecer elementos suficientes para determinar o respectivo montante em concreto, pelo que no tocante a essas despesas, caberá à assistente, querendo, intentar acção cível em separado para as reclamar contra o arguido.
Tudo visto e ponderado, é de passar a arbitrar oficiosamente, sob a égide do art.o 74.o, n.o 1, do CP, uma indemnização cível a favor da assistente no valor de MOP72.225,70 (equivalentes a HKD70.020,00 vezes o câmbio de 1.0315, de compra do dólar de Hong Kong pela pataca), como correspondente ao preço concreto dos discos compactos de CD-R então também produzidos pela assistente mas ainda não vendidos no Paquistão até antes de 25 de Janeiro de 2005, com juros legais desde a data do presente acórdão de recurso até integral e efectivo pagamento.
E no concernente ao pretendido condicionamento da pena suspensa então decretada no acórdão recorrido ao dever de pagamento dessa quantia indemnizatória, afigura-se que – não obstante estar provado que o arguido tem por rendimento mensal duas a três mil patacas – é de passar a subordinar, nos termos permitidos pelo art.o 49.o, n.o 1, alínea a), do CP, a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, por parte do arguido no prazo de sete meses, dessa indemnização, visto que o arguido não deixa de ser sócio de uma sociedade comercial.
Sendo de notar, por fim, que o prazo da pena suspensa só começa a correr a partir do trânsito em julgado do presente acórdão de recurso, posto que a assistente recorreu também dos termos concretos da pena suspensa.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso da assistente, passando:
– a condenar o arguido a pagar-lhe a indemnização cível, ora arbitrada oficiosamente, de MOP72.225,70 (setenta e duas mil, duzentas e vinte e cinco patacas e setenta avos) (como preço, convertido em pataca, dos discos compactos produzidos pela assistente mas então ainda não vendidos), ao qual se acrescem os juros legais contados de hoje até integral e efectivo pagamento;
– e a subordinar a suspensão da execução da pena única de sete meses de prisão decretada no acórdão recorrido, ao pagamento, pelo arguido no prazo de sete meses, da quantia indemnizatória acima arbitrada e dos respectivos juros, contando-se o prazo de um ano de suspensão da pena a partir do trânsito em julgado da presente decisão de recurso.
Por ter decaído parcialmente no seu recurso, pagará a assistente seis UC de taxa de justiça, enquanto o arguido terá que pagar duas UC de taxa de justiça nesta Segunda Instância, por ter dado parcial causa também à presente decisão do recurso.
Fixam em mil e duzentas patacas os honorários a favor do Exm.o Defensor Oficioso do arguido que o defendeu na audiência desta Segunda Instância, um quarto dos quais por conta do arguido e outros três quartos por conta do Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância, mas todos a adiantar por ora por esse Gabinete.
Macau, 7 de Dezembro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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