Proc. nº 813/2011
Recurso Civil e Laboral
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Janeiro de 2012
Descritores:
-Lei tutelar de menores
-Medidas de acompanhamento educativo
-Regras de conduta
SUMÁRIO:
A Lei Tutelar de Menores (Lei nº 2/2007, de 16/04), nos seus arts. 1º, nº2 e 2º, faz pressupor a aplicação de medidas de acompanhamento educativo e de regras de conduta aos menores da prática por estes de algum ilícito criminal ou contravencional.
Processo nº 813/2011
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público da decisão da 1ª instância que aplicou, ao abrigo do disposto nos arts. 4º, nº1, al. 6), 21º e 23º da Lei nº 2/2007 – Lei Tutelar de Menores - à menor A várias medidas de acompanhamento educativo e lhe impôs algumas regras de conduta.
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Nas suas alegações, formulou as seguintes conclusões:
“1. O tribunal a quo fez a seguinte decisão na sentença recorrida: “Tendo ouvido as declarações prestadas pelo assistente social, pela jovem e pelos seus pais, visto os dados constantes dos autos e considerado o parecer do Ministério Público, por já existirem relatórios da PJ e depoimentos da responsável do Lar de Estrela da Esperança nos autos, e tendo em conta que trata-se de processo de educação, entende-se que não é necessário ouvir os depoimentos de testemunha. Ademais, apesar de a responsável do Lar de Estrela da Esperança não apresentar queixa contra a jovem, não se exclui a possibilidade de que a conduta da jovem constituísse crime de fogo posto, pelo que a jovem ainda tem de receber educação. Tendo em consideração também a vontade da jovem, decide-se que ao abrigo dos dispostos no art.º 4.º, n.º 1, al. 6), art.º 21.º e art.º 23.º da Lei n.º 2/2007 - Regime Tutelar Educativo dos Jovens Infractores, aplicar a A medidas de acompanhamento educativo e as seguintes imposições de regras de conduta: (1). Não espancar a irmã; (2). Não pôr fogo a qualquer coisa; (3). Não se automutilar.”
2. Salvo o devido respeito, não concordamos com a sentença do tribunal a quo.
3. Não concordamos com as medidas de acompanhamento educativo e imposições de regras de conduta aplicadas à jovem segundo o art.º 4.º, n.º 1, al. 6), art.º 21.º e art.º 23.º da Lei n.º 2/2007; e entendemos que a sentença feita pelo tribunal a quo violou o art.º 1.º, n.º 2, art.º 4.º, n.º 1, al.s 4) e 6), art.º 21.º, art.º 23.º e art.º 63 da Lei n.º 2/2007 Regime Tutelar Educativo dos Jovens Infractores.
4. De acordo com os factos constantes dos autos, não há qualquer prova de que a jovem provocou incêndio, explosão ou outros perigos previstos pelo supracitado art.” 264.º do CPM.
5. O tribunal a quo também não provou qualquer facto concreto que constitui o crime referido no supracitado artigo, e só não exclui a possibilidade de que a conduta da jovem constituísse crime de fogo posto. Ao abrigo dos dispostos no art.º 63.º, n.º 1, al. 2) e art.º 2.º da Lei n.º 2/2007 - Regime Tutelar Educativo dos Jovens Infractores, a sentença deve conter factos provados e não provados, bem como a indicação dos factos imputados ao jovem e sua qualificação jurídica. Porém, a sentença feita pelo tribunal a quo não dispõe dos supracitados requisitos.
6. A aplicação imediata das medidas de acompanhamento educativo e imposições de regras de conduta previstas na Lei n. 2/2007 - Regime Tutelar Educativo dos Jovens Infractores quando não se prova que a jovem pratica qualquer facto criminoso violou o art.º 1.º, n.º 2, art.º 4.º, n.º 1, al.s 4) e 6), art.º 21.º, art.º 23.º e art.º 63 da referida Lei.
7. A sentença do tribunal a quo deve ser anulada.
Pelos expostos, pede-se ao Tribunal da Segunda Instância para julgar procedente o presente recurso, revogar a sentença recorrida e devolve-la para julgamento de novo.
Solicita-se que faça a justiça”.
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Não houve contra-alegações.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
1- A, de naturalidade e nacionalidade XX, nasceu em XX/XX/19XX, sendo filha de B e C, com quem residiu no XX, Bairro XX (bloco X), XXº -XX.
2- Os seus pais sofrem de depressão, encontrando-se desempregados actualmente, recebendo subsídio atribuído pelo Instituto de Acção Social.
3- A apresenta mau comportamento escolar, encoleriza-se facilmente, nomeadamente com a irmã mais nova, de nome D a quem chega a agredir e tem hábitos de auto-mutilação.
4- Frequentou a Escola Primária XX e depois a Escola XX.
5- Foi internada em 2010 por duas vezes sob iniciativa do Instituto de Acção Social no Centro de Acolhimento Lar de Estrela da Esperança, sito na Avenida Dr. Sun Yat Sen, nº 498.
6- Neste Centro, a jovem, pelas 22 horas do dia 15 de Janeiro de 2011, após uma repreensão de um funcionário, introduziu-se na casa de banho e pôs-se a queimar papel, acabando por ficar queimada parte de um casaco seu.
7- O Centro não sofreu quaisquer estragos com este facto e não apresentou queixa contra a jovem.
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III- O Direito
A finalidade das medidas tutelares educativas previstas na Lei Tutelar de Menores (Lei nº 16/2007, de 16/04) é a educação do jovem para o respeito pelo direito e pelas regras mínimas de convivência social; (art. 3º, al.1)) e a inserção do jovem, de forma digna e responsável, na vida em comunidade (art. 3º, al. 2)).
Trata-se, portanto, de uma ingerência na vida dos jovens que visa colocá-los afastados dos perigos sociais, incutir neles o espírito do respeito pelo direito e pelas regras de convivência e, ainda, prepará-los para uma boa integração social e comunitária. Isto é, a acção do Tribunal de Menores tem sempre por condição a protecção dos menores, mesmo que as decisões possam parecer aos olhos dos próprios, e até mesmo de terceiros, uma inaceitável ingerência na sua vida ou uma ablação da sua liberdade.
O tribunal “ a quo”, ao proceder, como procedeu, não teve outra intenção, senão a de comprometer esta jovem problemática com os ditames da lei, com os valores sociais e com as regras de boa conduta. Estamos certos disso.
Todavia, o controle jurisdicional que se abriga na lei tem que partir do pressuposto fáctico vertido no art. 1º, nº2, dispositivo legal, segundo o qual “A presente lei é aplicável a jovens que pratiquem facto qualificado pela lei como crime ou como contravenção na Região Administrativa Especial de Macau (RAEM) e que à data da prática desse facto tenham completado 12 anos e ainda não tenham perfeito 16 anos”.
Pressuposto que de novo é deixado claro no art. 2º: “Só pode aplicar-se medida tutelar educativa prevista na presente lei a jovem que pratique facto qualificado como crime ou como contravenção por lei”.
Ou seja, a intervenção do Tribunal deixa de estar legitimada se a acção concreta dos jovens não estiver tipificada no ordenamento jurídico como crime ou contravenção. O que, aliás, se compreende, pois só dessa maneira se torna compreensível que a sociedade reclame, via jurisdicional, a ingerência de que falávamos atrás, cometendo ao tribunal o papel que em princípio aos pais haveria de caber.
Estamos certos de que esta jovem apresenta comportamentos que não andam muito longe de práticas desviantes que possam vir a constituir ilícitos criminais ou contravencionais. Todavia, não se pode dizer que a acção concreta que motivou os presentes autos represente a prática de um crime ou uma contravenção.
Na verdade, o crime de fogo posto – que o tribunal “ a quo” julgou ter por verificado – implica uma actuação dirigida a um fim, a um resultado. E para tanto se concluir, será necessário interpretar o iter, averiguar se algum acto cometido serviria para realizar a intenção de destruir pelo fogo alguma coisa ou algum bem.
Ora, o caso dos autos apenas revela uma jovem descontente com a advertência de um funcionário da Instituição que a albergava, descarregando a sua fúria na queima de papel higiénico no interior de uma casa de banho, consigo no seu interior. Se queimar papéis dentro das instalações sanitárias pudesse ser interpretado como “fogo posto”, porque não pensar também pensar que a jovem se queria imolar? A resposta é difícil, senão impossível, tanto para uma, como para outra das hipóteses, à falta de melhores elementos.
Quer dizer, os elementos não são mais fortes num sentido do que noutro e nada nos permite pensar que a acção visava o primeiro daqueles fins com exclusão de qualquer outro. Verdadeiramente, o que queremos dizer é que a acção objectiva não permite pensar que a jovem “pôs fogo” nalguma coisa com a intenção de a destruir, nem sequer que estava a praticar actos de preparação ou de execução daquela intenção. Tal intenção não deriva dos autos, sendo certo que a jovem ouvida em declarações, uma vez disse que estava a queimar fios que sobressaíam do seu casaco por não ter tesoura para os cortar (fls. 11 v , 2º parágrafo dos autos) e noutras afirmou que o fez como sinal de desagrado (loc. cit., parágrafo 3º) ou por estar aborrecida (declarações perante o juiz a fls. 42 dos autos), mas em qualquer caso, sem alguma ter sido sua intenção de provocar incêndio e pânico, nem causar lesão a outrem (loc. cits.). E os dados também não apontam para a existência de dano algum, porque não foi ateado fogo a nenhum elemento da casa, nem sequer que o perigo de tal acontecer fosse real, atendendo ao elemento queimado (sobre o crime de dano/incêndio, ver com interesse o ac. da Relação de Lisboa, de 23/11/2000, Proc. nº 0065898, in wwww.dgsi.pt)!
Portanto, se nem o facto objectivo em si mesmo, nem o elemento subjectivo apontam para um tal quadro de ilicitude (ver art. 264º do Cod. Penal), cremos que não haveria razão para tratar a jovem menor como autora do crime de “fogo posto”.
Deste modo, as medidas de acompanhamento educativo determinadas pela decisão em causa não encontram apoio nos artigos citados e no art. 4º, al. 4) e 6) da referida Lei.
Finalmente, somos a entender que não se justifica a remessa dos autos para “julgamento de novo”, tal como solicitado pelo digno recorrente, uma vez que os factos estão apurados, sem que haja necessidade de nova reponderação jurídica.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a sentença recorrida e ordenar o arquivamento oportuno dos autos.
Sem custas.
TSI, 19 / 01 / 2012
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José Cândido de Pinho
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)