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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório e factos relevantes
A intentou acção especial de reforma de documento desaparecido, previsto nos arts. 867.º a 870.º do Código de Processo Civil, contra todos os accionistas e herdeiros dos accionistas da sociedade autora, que identificou como sendo os seguintes:
B, Herdeiros desconhecidos de C, D, E, F, Herdeiros desconhecidos de G, Herdeiros desconhecidos de H, I, J, K, L, M, Herdeiros desconhecidos de N, Herdeiros desconhecidos de O, Herdeiros desconhecidos de P, Q, R, Herdeiros desconhecidos de S, Herdeiros desconhecidos de T, Herdeiros desconhecidos de U, V, W, X, Y, Herdeiros desconhecidos de Z, AA, AB, Herdeiros desconhecidos de AC, Herdeiros desconhecidos de AD, AE, AF, AG e quaisquer outros demais interessados incertos.
Pediu a autora A ao Tribunal que se procedesse à reforma do livro de registo de acções da Sociedade, discriminando em que sentido se deveria fazer a reforma, alegando que o livro desapareceu quando estava à guarda do Secretário-Geral da Sociedade, falecido em 1993.
Contestaram apenas as rés J e AH e deduziram reconvenção, que foi admitida por despacho do Ex.mo Juiz.
A autora A recorreu deste despacho para o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) que, por acórdão de 27 de Abril de 2006, deu provimento ao recurso, revogando o despacho que admitira a reconvenção das rés.
Inconformadas, interpõem as rés J e AH o presente recurso, terminando a respectiva alegação, em síntese, com a formulação das seguintes conclusões:
A defesa das ora recorrentes em sede de contestação radica nos mesmos fundamentos que servem de base ao pedido reconvencional formulado.
Consequentemente, no caso vertente a reconvenção é admissível ao abrigo do disposto na alínea a) do n.° 2 do artigo 218.º do Código de Processo Civil (CPC)
Inclusivamente, o Venerando Tribunal de Segunda Instância (TSI) rejeitou os argumentos da recorrida e apenas decidiu pela inadmissibilidade do pedido reconvencional por entender que tal reconvenção mais não é, afinal, do que uma mera defesa por impugnação.
Todavia, salvo melhor entendimento, quando o pedido reconvencional se baseia no requisito mencionado na alínea a) do n.° 2 do artigo 218.º do CPC, a reconvenção tem que se fundar obrigatoriamente, total ou parcialmente, nos factos com os quais se impugna indirectamente os factos alegados na petição inicial.
No caso vertente, quando, na contestação, as recorrentes apresentaram uma versão diversa relativamente ao teor da reforma de livro proposta estavam, obviamente, a perfilhar uma negação indirecta dos factos articulados na petição inicial.
Salvo o devido respeito, ao decidir como decidiu, o Venerando TSI labora num erro de julgamento e viola, afinal, aquele mesmo normativo - a al. a) do n.° 2 do artigo 218.º do CPC -, na sua essência.
Com efeito, a perfilhar-se a tese defendida na douta decisão recorrida, sempre que a reconvenção se fundasse nos factos jurídicos que servem de base à defesa por impugnação indirecta, nunca a mesma seria admissível.
   Acresce ainda que, a aceitar-se a tese veiculada no douto Acórdão recorrido as ora recorrentes perderiam toda e qualquer hipótese de verem a sua versão dos factos automaticamente acolhida na presente acção, com a consequente reforma do livro em conformidade.
   O que obrigaria à instauração de uma nova acção propositada e expressamente para esse efeito.
A autora A contra-alegou.

II – O Direito
1. O objecto do recurso
O objecto do recurso é o Acórdão recorrido na parte em que deu provimento ao recurso do despacho do Ex.mo Juiz de 1.ª instância, revogando o despacho deste que admitira a reconvenção das rés.

2. Questões a resolver
O pedido formulado na petição inicial da sociedade autora era o de que se procedesse à reforma do livro de registo de acções da A indicando-se as acções e a respectiva titularidade, de acordo com uma lista que a autora juntou à petição.
Dessa lista constava a ré J, como sendo proprietária de XXXX acções e não constava a ré AH como titular de quaisquer acções.
O pedido reconvencional conjunto das rés J e AH é o de que se reforme o livro de registo das acções, registando-se XXXX acções em nome de AH e as restantes XXXX sobrantes das XXXX anteriormente pertencentes à ré J, registadas a favor desta (XXXX-XXXX=XXXX).
Para tal, alegaram que J, transmitiu à ré AH XXXX acções.
O Ex.mo Juiz admitiu a reconvenção.
A autora A impugnou o despacho, sustentando que o processo especial de reforma de livro não admite a dedução de pedido reconvencional.
O Acórdão recorrido não se pronunciou sobre esta questão, mas entendeu que a pretensão das rés, embora sob a forma de pedido reconvencional não constitui uma verdadeira reconvenção, “já que no fundo os termos desse pedido reconvencional correspondem aos termos entendidos como correctos pelas duas contestantes para ser feita a reforma do livro, daí que a mesma pretensão não deve ser considerada como uma reconvenção propriamente dita, mas sim como uma impugnação em sentido próprio do termo”.
E assim, com fundamentos diversos dos aduzidos pela recorrente A, o Acórdão recorrido deu provimento ao recurso e revogou o despacho que admitira a reconvenção.
Deste modo, são duas as questões a resolver:
- A de saber se o processo especial de reforma de documento desaparecido admite a dedução de pedido reconvencional;
- A de saber se o pedido reconvencional formulado como tal pelas rés não é um verdadeiro pedido reconvencional, mas antes se insere na impugnação do pedido deduzido na petição inicial da autora A.
Por razões de lógica discursiva, começar-se-á pela última questão.

3. Defesa do réu. Reconvenção
Quando o réu contesta, tanto pode defender-se por impugnação, como por excepção. Defende-se por impugnação quando contradiz os factos articulados na petição ou quando afirma que esses factos não podem produzir o efeito jurídico pretendido pelo autor. É a chamada defesa directa. O réu defende-se por excepção – defesa indirecta - quando alega factos que obstam à apreciação do mérito da acção ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido. No primeiro caso, trata-se de invocar excepções dilatórias. No segundo, de deduzir excepções peremptórias (arts. 407.º e 412.º do Código de Processo Civil).
Por outro lado, com a contestação mas deduzida separadamente desta, pode o réu apresentar reconvenção, que não é mais do que uma acção cruzada do réu contra o autor, enxertada na acção (do autor) (arts. 419.º e 218.º do Código de Processo Civil), e que a lei admite por razões de economia processual, desde que haja algum nexo substantivo entre a pretensão do réu e o pedido do autor e desde que haja compatibilidade processual entre as pretensões de autor e réu, traduzida esta na exigência da competência do tribunal (art. 28.º do Código de Processo Civil) e da utilização da mesma forma de processo (n.º 3 do art. 218.º do Código de Processo Civil).
   É exacta a ideia do Acórdão recorrido de que o pedido reconvencional tem de ser um verdadeiro pedido e não um pedido meramente formal. Ensina A. ANSELMO DE CASTRO1 que não “estaremos, pois, perante um pedido reconvencional quando o pedido formulado pelo réu seja pura consequência da sua defesa, nada acrescentando à matéria desta última. Por outras palavras: quem diz reconvenção diz pedido substancial deduzido pelo réu, e não pedido meramente formal”.
   A reconvenção constitui um “pedido autónomo, no sentido de diferente do pedido normal da absolvição”2.
   Também ALBERTO DOS REIS 3explica que a reconvenção é um pedido substancial e não um pedido meramente formal, isto é, um pedido que nada acrescenta à matéria alegada como defesa.
É igualmente esta a doutrina de MANUEL DE ANDRADE 4: “Na reconvenção, portanto, o Réu não se limita a sustentar o mal fundado da pretensão do Autor, pedindo que isso mesmo seja reconhecido na decisão final, mas deduz contra o Autor uma pretensão autónoma”.
Onde, por vezes, se torna difícil distinguir a defesa da reconvenção, é naquelas situações em que o réu se defende por excepção peremptória, estando aqui a doutrina e a jurisprudência divididas quanto a saber se o deve fazer deduzindo mera excepção ou se deve reconvir: por exemplo, o autor deduz pretensão baseada na validade de um contrato e o réu pede ao tribunal a declaração que o contrato é nulo. Para alguns trata-se de matéria de excepção, para outros de reconvenção.
No caso dos autos, a autora pediu a reforma do livro de registo de acções, com determinado conteúdo. As rés defendem-se por impugnação (na parte agora em causa) e, a final, deduzem reconvenção em que pedem ao tribunal que na reforma do livro em causa se declare que, no registo a efectuar quanto a elas, as acções não pertencem na totalidade a uma das rés, mas XXXX à AH e as restantes das descritas na petição e atribuídas na totalidade a J, a esta.
   A pretensão das rés não se pode considerar um pedido meramente formal, isto é, um pedido que nada acrescenta à matéria alegada como defesa. Vai para além da defesa e constitui um pedido autónomo. Deve, pois, ser qualificado como reconvenção.

4. Reconvenção. Compatibilidade processual
Vejamos, agora, se o processo especial de reforma de documento desaparecido admite a dedução de pedido reconvencional.
Dispõe o n.º 3 do art. 218.º que “Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se a diferença provier do diverso valor dos pedidos ou o juiz a autorizar, nos termos dos n.os 3 e 4 do artigo 65.º, com as necessárias adaptações”.
Exige-se nesta norma a compatibilidade processual entre o pedido do autor e o pedido reconvencional: Daí que – salva a possibilidade de adequação formal que o novo Código consagrou – só seja admissível reconvenção se aos pedidos de autor e réu corresponderem a forma de processo comum ou a mesma forma de processo especial. É isso que resulta da norma e é essa a interpretação da generalidade da doutrina5. Não se pode, pois, dizer, com carácter geral, que em acção declarativa com processo especial não é possível a reconvenção.
Não obstante, há processos especiais em que não é admissível reconvenção. Logo naqueles em que não há contestação, como o de inventário. Como diz CASTRO MENDES6, nos processos especiais, a admissão da reconvenção tem de ser vista caso a caso.
   A solução da questão da admissibilidade ou não de reconvenção reside em saber qual a justificação dos obstáculos à dedução de pedido reconvencional procedentes da forma de processo. E, explica ALBERTO DOS REIS7, a justificação é esta: “a reconvenção equivale, no fundo, a uma acção proposta pelo réu contra o autor e faz-se mister que a forma de processo seja adequada para a instrução, discussão e julgamento do pleito reconvencional. Como a forma de processo é, em regra, determinada pelo pedido do autor, segue-se que o processo só será idóneo para se instruir, discutir e julgar a causa reconvencional se houver coincidência entre a forma de processo aplicável à acção e a forma de processo aplicável à reconvenção”.
De acordo com o n.º 1 do art. 869.º do Código de Processo Civil, que rege os termos processuais no processo especial de reforma de documento desaparecido, na falta de acordo das partes quanto à reforma do documento na conferência que tem lugar presidida pelo juiz, “devem os interessados dissidentes deduzir a sua contestação no prazo de 20 dias, seguindo-se os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor, subsequentes à contestação”.
Ora, no processo comum de declaração, tanto no processo ordinário, como no sumário, é admissível a reconvenção.
Como pondera RODRIGUES BASTOS8: “Há processos especiais cujos termos parecem não admitir a reconvenção, mas em que a lei manda seguir, no caso de contestação, os termos do processo ordinário ou sumário conforme o valor; em tais casos não haverá obstáculo processual a que se admita a reconvenção9, desde que se verifique, é claro, qualquer dos requisitos substanciais (conexão dos pedidos) que este preceito indica”.
Da mesma maneira ALBERTO DOS REIS 10 defende que numa acção especial de divisão de coisa comum é possível a formulação de reconvenção a que caiba processo comum uma vez que aquele processo especial segue a forma de processo comum após a contestação quando o réu contesta a compropriedade, sem prejuízo da necessidade de conexão ou compatibilidade substancial.
Acresce – no caso dos autos - que ao pedido das rés também corresponde a acção especial de reforma de documento desaparecido, visto que elas pretendem a reforma do livro de acções, com determinado conteúdo. Logo, bastaria esta razão para se admitir a reconvenção.
Não se vislumbra, pois, qualquer obstáculo a que no processo especial em causa se possa deduzir reconvenção, desde que se verifiquem os requisitos substanciais. E estes verificam-se, dado que o pedido das rés emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção [alínea a) do n.º 2 do art. 218.º do Código de Processo Civil]: o desaparecimento do livro de registo das acções.
O recurso procede, portanto.
A suspensão de instância ordenada a fls. 695 ficou definitivamente revogada pelo Acórdão recorrido, porque a revogação não se baseou apenas em terem ficado prejudicados os recursos das partes quanto a essa matéria pelo provimento do recurso quanto à reconvenção, mas porque também se baseou em outro fundamento autónomo, sem ter havido impugnação das partes.

III – Decisão
Face ao expendido, dá-se provimento ao recurso e revoga-se o Acórdão recorrido na parte em que revogou o despacho que admitira a reconvenção das rés, ficando, portanto, a subsistir o despacho do Ex.mo Juiz de primeira instância.
Custas pela autora, tanto neste Tribunal como Tribunal de Segunda Instância.
Macau, 06 de Outubro de 2006.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

1 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1981, Vol. III, p. 171.
2 J. CASTRO MENDES, Direito Processual Civil, Lisboa, edição da AAFDL, II Volume, p. 247.
3 ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, Volume 3.º, p. 102.
4 MANUEL DE ANDRADE, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1979, p. 146.
5 ALBERTO DOS REIS, Comentário..., 3.º Vol., p. 117, J. LEBRE DE FREITAS, JOÃO REDINHA E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, Coimbra, Coimbra Editora, 1999, p. 490 e A. ANSELMO DE CASTRO, Direito..., Vol. III, p. 173.
6 J. CASTRO MENDES, Direito..., II Vol., p. 260, nos processos especiais a admissão da reconvenção tem de ser vista caso a caso.
7 ALBERTO DOS REIS, Comentário..., 3.º Vol., p. 117.
8 J. RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, Volume II, 3.ª edição, Lisboa, 2000, p. 34.
9 Ac. S.T.J., de 15/1/71, no B.M.J., n.º 203, pág. 173; Ac. Rel. Coimbra, de 2/12/92, no B.M.J., n.º 422, pág. 436.
10 ALBERTO DOS REIS, Comentário ao Código de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, Volume 3.º, p. 118 a 121.
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Processo n.º 34/2006