Processo nº 746/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 02 de Fevereiro de 2012
Descritores:
-Contrato a favor de terceiro
-Contratação de mão-de-obra não residente
-Salário mensal
SUMÁRIO:
I- A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de mão-de-obra não residente em Macau e outra empregadora dessa mão-de-obra, no qual esta assume desde logo um conteúdo substantivo mínimo das relações laborais a estabelecer com os trabalhadores que vier a contratar, tal como imposto por despacho governativo, representa para estes (beneficiários) um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da promitente empregadora gera um correspondente direito de indemnização a favor daqueles.
II- Deve ser considerado mensal o salário acordado entre as partes contratantes, ainda que no contrato se diga que o trabalho deve ser remunerado por hora de efectivo trabalho, se a entidade nele garante o pagamento de um salário mínimo mensal de Mop$ 2000,00 baseado em 215 horas durante um período de 30 dias, que efectivamente vem pagando com tal periodicidade ao longo do tempo.
Processo nº 746/2011
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, de nacionalidade filipina, com os demais sinais dos autos, intentou no TJB contra Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada, acção de processo comum laboral pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a importância de Mop$ 251.480,00, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
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Por saneador-sentença de 22/06/2011 foi a acção julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar ao autor a importância de Mop$ 222.606,06
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É dessa decisão que agora recorre “Guardforce”, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. Vem o presente Recurso interposto do “Despacho Saneador Sentença” proferido pelo douto Tribunal a quo, que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, decidiu “condenar a ré a pagar ao autor a quantia de MOP$222 060.06 (duzentas e vinte e duas mil e sessenta patacas e seis avos), acrescida de juros de mora contados à taxa legal, sobre aquela quantia, desde a data supra referida até integral pagamento.”
II. O Recurso ora interposto versa sobre matéria de facto e de direito.
III. Os factos alegados pelo Autor nos artigos 49.º, 52.º, 55.º e 58º da sua petição inicial e aceites pela Recorrente no artigo 25.º da sua contestação e, por conseguinte, confessados, não têm correspondência com os factos constantes das alíneas g) a i) da motivação de facto.
IV. O Autor naqueles artigos da petição inicial não afirma que o salário que auferia era um salário mensal, mas sim que auferia “a título de salário, a quantia de MOP…, mensal”
V. No artigo 64.º da sua contestação a Ré, ora Recorrente, afirma “Por outro lado, é pacífico que o Autor era remunerada pela Ré em função das horas que trabalhava - isto é - determinado em função do período de trabalho efectivamente prestado (…)”.
VI. Resulta também das cláusulas dos contratos individuais de trabalho que o salário do autor não era um salário mensal, ao contrário do que resultou provado na decisão recorrida.
VII. É diverso falar-se em salário mensal e em pagamento de um salário num determinado valor mensal que pode ser fixado ou de acordo com o resultado efectivamente produzido ou com o período de trabalho efectivamente prestado.
VIII. Tendo em conta que o douto tribunal a quo deu como provados os factos constantes das alíneas g) a i) em virtude de os mesmos terem sido aceites pelas partes, os mesmos deverão ter a exacta redacção dada pelo Autor nos artigos 49.º, 52.º, 55.º e 58º da petição inicial e aceites pela Ré no artigo 25º da sua contestação, a qual corresponde à redacção constante nos contratos individuais de trabalho que o douto Tribunal a quo deu como assentes.
IX. Face ao supra exposto resulta que os factos constantes das alíneas g) a i) da matéria provada foram incorrectamente julgados.
X. O douto Tribunal a quo, remetendo para a fundamentação constante do despacho proferido a fls. 151 a 156 dos autos, qualificou o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau como um conf1a1o a favor de terceiros, e com base nesta qualificação, condenou a Ré, ora Recorrente, a pagar ao Autor a quantia global de MOP$222 060.06.
XI. No contrato a favor de terceiros o benefício do terceiro nasce directamente do contrato e não de qualquer acto posterior, ao que acresce que a obrigação do promitente é a de efectuar uma prestação e não celebrar outro contrato.
XII. O que resulta do contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau é que esta se comprometia a recrutar determinado número de pessoas para virem a ser contratadas pela Ré para lhe Prestarem determinada actividade manual ou intelectual mediante o pagamento de determinada retribuição e outras condições.
XIII. Para que o contrato celebrado entra a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau pudesse ser qualificado como um verdadeiro contrato a favor de terceiro, sempre seria necessário que resultasse dos autos a intenção dos contratantes de atribuir directamente ao Autor (terceiro beneficiário) um crédito ou uma vantagem patrimonial, de tal modo que esta adquirisse o direito à prestação prometida de forma autónoma, por via directa e imediata do contrato, podendo, por isso, exigi-la do promitente.
XIV. O contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, limitada, não Produz quaisquer eleitos na esfera jurídica do Autor, que do mesmo não é parte, e por não o conhecer nunca lhe criou qualquer expectativa de vir a ser beneficiário do mesmo.
XV. Veja-se entendimento do douto Tribunal de Segunda Instância Proferido no Acórdão 1026/2009 de 15 de Dezembro de 2009, processo em tudo semelhante ao dos presentes autos: “[...] Voltando ao caso dos autos a Ré/Recorrente é parte do referido contrato de prestação de serviços, mas o Autor (...) desta acção não é parte do mesmo, como tal o contrato não o vincula, por força do disposto no artigo 400º/2 do CCM (correspondente ao artigo 406º/2 do CC de 1996), que prescreve: “2. Em relação a terceiros o contrato só produz efeitos nos casos e termos especialmente previstos na lei.” (...) tal contrato não é convenção colectiva de trabalho, muito menos acordo tipo que vincula os trabalhadores (...) Aliás, o contrato de trabalho individual assinado pelo Autor, em lado nenhum remete para o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e o terceiro [...] ”
XVI. Não sendo o Autor parte do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, para que o mesmo pudesse produzir efeitos na sua esfera jurídica havia que afastar o princípio “res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest”, enquadrando-o num dos “casos especialmente previstos na lei” (artigo 400º, nº 2 do CC), como seja, o contrato a favor de terceiros, o que como se alegou não poderá proceder.
XVII. Afastada que está a figura do contrato a favor de terceiro, a pretensão do Autor terá necessariamente que falecer, conforme argumentação expedida no despacho proferido a fls 151 a 156 dos autos, donde resulta claro que “[...] Adianta-se, conclusivamente embora, que se entende que quer por eficácia ao despacho, quer por eficácia do contrato de trabalho a pretensão do autor não pode proceder [...] E não se vê outra hipótese de procedência da pretensão do autor que não passe pela figura do contrato a favor de terceiros. Com efeito, o despacho enquanto acto administrativo, não obriga a ré nos termos que autor pretende; o contrato de trabalho muito menos (...) Por outro lado, o ponto 9, alínea e) por referência à alínea d) d.2 do Despacho 12/GW88 não configura a disposição legal de carácter imperativo que, nos termos do artigo 287.º fere de nulidade o contrato que a autora celebrou com a ré. (...)”
XVIII. O despacho nº 12/GM/88 não tem uma natureza normativa e de cariz imperativo e as suas disposições não afectam a relação laboral estabelecida entre Recorrente e Recorrido porquanto o mesmo cuida, tão somente, do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes, e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
XIX. Atenta a natureza jurídica do Despacho não poderá o mesmo coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
XX. Assim como, não o pode, pelas mesmas razões, o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças emitido ao abrigo e no seguimento das normas procedimentais estabelecidas no referido Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
XXI. Das condições administrativas exigidas pela Região Administrativa Especial de Macau, relativamente à contratação de mão-de-obra estrangeira não resulta a imposição de contratar nestes ou noutros termos, não tendo qualquer reflexo na relação contratual de trabalho celebrada entre o Autor e o Recorrente, pois dali não resultam imperativos legais para a entidade patronal e/ou empregador de contratar em determinados termos.
XXII. Só com base no contrato de trabalho celebrado entre as partes é que o Autor poderia reclamar da Recorrente quaisquer eventuais direitos, mas esse contrato foi integralmente cumprido pela Recorrente.
XXIII. Nestes termos, a sentença recorrida incorre no vício de erro na aplicação do direito, por violação do disposto nos artigos 400º e 437º do Código Civil.
XXIV. Andou mal o douto Tribunal a quo ao condenar a Recorrente, ao abrigo do disposto no artigo 17º, nº 6 al. a), do Decreto-lei 24/89/M, no pagamento da quantia de MOP$3.853.56 pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal.
XXV. Não obstante a periodicidade do pagamento do salário ser mensal, a verdade é que o seu quantum era determinado de acordo com as horas de trabalho efectivamente prestadas.
XXVI. As cláusulas relativas ao salário do contrato junto com a petição inicial como documento 6 não são típicas dos contratos cuja retribuição é fixada e calculada mensalmente, mas sim para contratos cuja retribuição é calculada por hora, sendo que das mesmas não consta o horário de trabalho a cumprir pelo Autor, mas antes que para um período determinado de horas é garantido uma determinada quantia, donde se conclui que o salário se baseia no preço hora.
XXVII. Das referidas disposições contratuais, devidamente conjugadas com as regras da experiência comum, e no uso da legis artes, teria necessariamente de se considerar como provado que o salário do Autor era estabelecido por referência ao preço hora, ou seja, ao trabalho efectivamente prestado.
XXVIII. A decisão ora em recurso ao concluir que o salário auferido pelo Autor se tratava de um salário mensal incorre em erro notório na apreciação da prova.
XXIX. Julgando esse Venerando Tribunal de recurso que os contratos de trabalho celebrado entre a Recorrente e o Autor se tratam de contratos com pagamento à hora, deverá igualmente o douto acórdão a proferir estabelecer que o montante da remuneração a pagar pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal, resultará de um acordo a celebrar entre o Autor e a Recorrente, com observância dos limites que decorram dos usos e costumes, nos termos do disposto na alínea b) do n.º 6 do artigo 17.º do Decreto - Lei n.º 24/89/M, de 03 de Abril, e consequentemente ser a Recorrente absolvida do pagamento da compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, porquanto o Autor já recebeu os montantes acordados com o empregador.
XXX. Mesmo que assim não se entenda, e que se considere que o salário auferido pelo Autor é um salário mensal, o que não se concede, e afastada que está a classificação do contrato de prestação de serviços como um contrato a favor de terceiro, e por isso insusceptível de criar direitos na esfera jurídica do Autor, o cálculo da compensação deverá ter por base o estipulado nos contratos de trabalho, ou seja, MOP$ 66.66 por cada dia de trabalho, ascendendo assim o montante da compensação a quantia de MOP$ MOP$2,266.44.
XXXI. A sentença ora em Recurso violou o disposto nos artigos 400º e 43r do Código Civil e bem assim o disposto no artigo 17º do Decreto-lei 24/89/M da 3 de Abril.
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O então autor concluiu as suas contra-alegações do seguinte modo:
1. Ao contrário do alegado pela Recorrente, o douto “Despacho Saneador Sentença” procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis e, bem assim, a uma correcta aplicação da Lei e do Direito;
2. Assim, não existe um qualquer erro ou incorrecção no que à matéria de facto dada por provada diz respeito, porquanto da mera diferença de redacção constante dos factos alegados pelo Recorrido, confessados pela Recorrente e dados como provados pelo Tribunal a quo retira-se a mesma e única conclusão: durante todo o tempo da relação laboral entre o Autor e a Ré sempre o primeiro auferiu um “salário mensal”;
Mas, mesmo que assim não fosse,
3. Nunca a retribuição auferida pelo Recorrido poderia ter sido fixada em função do período de trabalho efectivamente prestado, porquanto a própria laboração da Recorrente iria sair comprometida, bastando que a Recorrida (ou qualquer outro guarda de segurança) por sua iniciativa não viesse a comparecer no seu trabalho em cumprimento dos rigorosos turnos diários fixados pela Recorrente, ou que viesse trabalhar dia sim dia não, já que a sua retribuição seria, de qualquer maneira, igualmente calculada em função do período de trabalho efectivamente prestado”;
4. De onde se retira que, o salário do Recorrido sempre foi um «salário mensal» - tal qual acertadamente concluiu o Tribunal a quo;
Por outro lado,
5. Resulta do próprio conteúdo literal do contrato celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio, que o mesmo - na sua quase totalidade - não se destinava a regular as relações jurídicas dos outorgantes mas antes de terceiros, maxime dos trabalhadores que seriam recrutados pela Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. e posteriormente cedidos à Recorrente (de entre os quais se inclui o Recorrido);
6. Assim, tratando-se de um «contrato a favor de terceiro» e repercutindo-se o mesmo na relação jurídico-laboral existente entre a Recorrente e o Recorrido é, pois, mais do que líquido que o beneficiário da promessa (in casu, o Recorrido) adquire o(s) direito(s) - ou parte dele(s) - constantes do mesmo contrato independentemente de aceitação (art. 438.º, n.º 1 do Código Civil de Macau) e, em consequência, poderá exigir o seu cumprimento directamente do obrigado (in casu, da Recorrente), tal qual concluiu o Tribunal a quo;
7. Veja-se, entre muitos outros, o entendimento sufragado pelo Tribunal de Segunda Instância (Processo n. º 739/2009), em muito relacionado ao dos presentes autos, quando se sublinha que: as condições de trabalho em que devem ser contratados os trabalhadores não residentes, constam do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, sendo que este torna de forma clara e expressa uma natureza assumidamente normativa e de cariz imperativo na medida em que nele se fixa uma disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes (trabalhadores este que estão excluídos do Regime Geral das Relações Laborais apenas aplicável aos trabalhadores residentes DL 24/89/M, de 3 de Abril e LRT) obrigando a uma contratação em condições mínimas acordadas com a empresa prestadora de serviços (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.);
8. Do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, resulta que o despacho (leia-se, despacho da «entidade governamental competente» que autoriza a contratação de trabalhadores não residentes) condiciona a mesma à apresentação prévia de um «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a “entidade interessada” e uma “terceira entidade - fornecedora de mão-de-obra não residente” (cfr. n.º3 e n.º 9 c) do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
9. In casu, quer o «despacho da autoridade governamental» quer o Despacho n.º12/GM/88, de 1 de Fevereiro, vincularam imperativamente a Recorrente a contratar os trabalhadores não residentes - e, em concreto, o Recorrido - em conformidade com as condições mínimas constantes do «contrato de prestação de serviços» celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.;
10. A fixação legal de condições tidas como mínimas, em si mesma constitui um direito que escapa à liberdade da autonomia das partes, visto terem sido consagradas por uma razão - de ordem pública - maxime de protecção dos interesses da generalidade dos trabalhadores residentes (cfr. preâmbulo do Despacho n.º12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
11. Do mesmo modo, o direito às condições mínimas fixado no despacho de autorização configura um direito indisponível e, porquanto, subtraído ao domínio da vontade das partes;
12. In extremis, nunca o Recorrido poderia ter sido admitido como trabalhador da Recorrente (ou de qualquer outro empregador na RAEM) por via de um contrato que não respeitasse o disposto nos números 2, 3 e 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, maxime por via de um «contrato individual de trabalho», porquanto a contratação de trabalhadores não residentes está sujeita a um regime especial e imperativo que em caso algum poderá ser derrogado pelas partes, excepto para consagrar condições de trabalho mais favoráveis ao trabalhador;
13. Não existe qualquer erro de julgamento quanto à condenação da Recorrente relativamente ao trabalho prestado pelo Recorrido em dia de descanso semanal; com efeito,
14. Concluído que o Recorrido foi sempre remunerado com um salário mensal dúvidas não restam que aos presentes autos se deverá aplicar o disposto na al. a) do n.º 6 do art. 17.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril e, consequentemente, deve o trabalho prestado em dia de descanso semanal ser pago pelo dobro da retribuição diária normal tendo por base a retribuição mínima de MOP$90,00 (por dia), porquanto foi esta a retribuição aceite pela Recorrente aquando do processo legal de recrutamento do Recorrido e constante do contrato de prestação de serviços já anteriormente referido.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A decisão recorrida julgou assente a seguinte factualidade:
“a) O autor é trabalhador não residente.
b) A ré, com vista à contratação do autor como seu trabalhador, acordou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada o seguinte:
“Considerando que o Governo de Macau, por Despacho do SAEF. autorizou a Guardforce (Macau) Limitada (adiante designada por 1.a outorgante) a admitir novos trabalhadores vindos do exterior;
Nos termos do Despacho acima mencionado e do Despacho no. 12/GM/88, a 1.a outorgante e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Ltd. (adiante designada por 2.a outorgante), celebram o presente contrato que integra as seguintes cláusulas e termos que ambas as partes se obrigam reciprocamente a cumprir pontual e integralmente:
1. Recrutamento e cedência de trabalhadores.
A pedido da 1.a outorgante, a 2.a contratou a prestação de mão-de-obra oriunda da ... num total de ... trabalhadores, com idade compreendida entre os 18 e os 60 anos, boa saúde e bom comportamento, os quais são por este contrato cedidos à 1.a outorgante, por um período de 1 ano ....
2. Despesas relativas à admissão.
A 2.a outorgante responsabiliza-se pelas despesas de selecção e inspecção médica dos trabalhadores a contratar, assim como pelas formalidades relativas à sua saída dos países acima referidos por seu turno a 1.a outorgante fica responsável pelas despesas relativas á obtenção dos correspondentes títulos de identificação de trabalhadores não-residentes, bem como pelas despesas com a vinda daqueles para Macau.
3. Remuneração dos trabalhadores.
3.1. Os trabalhadores a que se refere o presente contrato auferirão salário idêntico ao nível médio dos salários praticados para desempenho equivalente, num mínimo de $90,00 patacas diárias, acrescida de $15,00 patacas diárias por pessoa, a título de subsídio de alimentação.
3.2. O salário será pago pela 1.a outorgante directamente a cada trabalhador.
3.3. ... .
3.4. Além das retribuições já mencionadas, cada trabalhador terá direito a um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço.
4. Horário de trabalho e alojamento.
4.1. O horário de trabalho é de 8 horas diárias, a prestar durante o período fixado pela 1.a outorgante, sendo a prestação de trabalho extraordinário remunerado de harmonia com o disposto na legislação do trabalho em vigor em Macau para os operários residentes.
4.2. Os trabalhadores terão direito a faltar durante dez dias por ano para poderem visitar os seus familiares nos países acima referidos.
4.3. Se a 1.a outorgante interromper a laboração por um período superior a 5 dias, por falta de encomendas ou de energia, será obrigada a pagar ao trabalhador a partir do 6º dia, a remuneração base diária de $90,00 pelo período que durar aquela interrupção.
4.4. ... .
4.5. ... .
5. Assistência.
5.1. ... .
5.2. ... .
5.3. ... .
6. Deveres dos trabalhadores.
Os trabalhadores objecto do presente contrato estão sujeitos aos seguintes deveres:
a) ... .
7. Serão causas de cessação do trabalho e imediato repatriamento:
a) ... .
8. Outras obrigações da 1.a outorgante.
... .
9. Provisoriedade.
9.1. A 1.a outorgante declara que a autorização de permanência ao seu serviço dos trabalhadores objecto do presente contrato foi concedida a título precário, podendo ser cancelada a qualquer tempo pelo Governo de Macau, caso em que devolverá à 2.a outorgante, no prazo que lhe for indicado, o número de trabalhadores para o qual deixe de ter autorização bastante ou aquele cuja permanência no Território seja pela via competente declarada como indesejável.
9.2. ... .
10. Repatriamento.
10.1. Verificando-se que, por qualquer motivo, alheio ao 1.a outorgante, não é possível a continuação da prestação do serviço por parte dos trabalhadores, a 2.a outorgante responsabiliza-se pelo repatriamento dos mesmos para os países acima referidos suportando a 1.a outorgante as despesas relacionadas com a deslocação e, bem assim, o pagamento do subsídio de compensação cujo montante será reciprocamente acordado entre ambos os outorgantes.
10.2. O repatriamento a que se refere o presente contrato será da responsabilidade da 2.a outorgante que se compromete a efectivá-lo imediatamente.
11. Prazo do Contrato
11.1. Sem prejuízo do disposto no precedente no n.º 9.1., o presente contrato terá duração de 1 ano renováveis por igual período, mediante acordo das partes interessadas e precedendo acordo do Governo do Território, a obter até 30 dias antes do seu termo.
11.2. Não se verificando a sua renovação, o presente contrato caduca no seu termo ficando a 2.a outorgante responsável pelo repatriamento para os países acima referidos dos trabalhadores, e sendo as despesas com essa deslocação suportadas pela 1.a outorgante.
11.3. Este contrato vigorará desde a data da sua aprovação e até à data em que se extinguir a primeira validade do título de identificação de trabalhador não-residente, emitido pelas Forças de Segurança de Macau (Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau).
12. Disposições Finais.
12.1. Quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada um das partes e o 3.º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade.
12.2. ... .
c) Por assim terem acordado, entre 15 de Novembro de 1995 e 31 de Maio de 2008, o autor esteve ao serviço da ré, exercendo funções de guarda de segurança.
d) Trabalhando sob as ordens, direcção e fiscalização da ré.
e) Nos termos e condições entre ambas acordados e que constam dos documentos juntos com a petição inicial sob os nºs 5 a 11, os quais se dão aqui por reproduzidos (facto provado por acordo e nos termos do disposto nos arts. 368º e 370º do Código Civil).
f) Entre 15 de Novembro de 1995 e 30 de Junho de 1995, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP.1700,00.
g) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a ré pagou ao autor, a, título de salário, a quantia mensal de MOP.1800,00.
h) E nos meses de Abril de 1998 a Fevereiro de 2005 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP.2000,00.
i) E nos meses de Março de 2005 a Fevereiro de 2006 a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP.2100,00.
j) E nos meses de Março de 2006 a Dezembro de 2006, a ré pagou ao autor o salário mensal de MOP.2288,00.
k) - Entre 15 de Novembro de 1995 e 30 de Junho de 1997 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 8,00 por cada hora.
l) - Entre Julho de 1997 e Junho de 1999 o autor trabalhou 12 horas por dia, tendo a ré remunerado as 4 horas diárias de trabalho extraordinário a MOP 9,30 por cada hora.
m) - Entre Julho de 1999 e Junho de 2002 o autor prestou 725.5 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 9,30 por cada hora
n) - Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002 o autor prestou 9 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 10,00 por cada hora.
o) - Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 o autor prestou 647 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,00 por cada hora.
p) - Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 o autor prestou 405.5 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,30 por cada hora.
q) - Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 o autor prestou 215 horas de trabalho extraordinário que a ré lhe retribuiu a MOP 11,50 por cada hora.
r) - Durante os 4583 dias que trabalhou para a ré, nunca esta lhe pagou qualquer quantia a título de subsídio de alimentação.
s) - O autor nunca deu qualquer falta ao serviço remunerado sem conhecimento e autorização prévia da ré, durante a relação laboral, não lhe tendo a ré pago qualquer quantia a título de subsídio de efectividade.
t) - Na versão original do contrato celebrado entre autor e ré foi convencionado que pela prestação de trabalho em dia de descanso semanal o autor seria remunerado pela ré nos termos fixados pela lei de trabalho de Macau e nas versões posteriores do mesmo contrato foi acordado que todas as condições seriam reguladas de acordo com a lei de trabalho de Macau.
u) - Entre 11 de Janeiro de 2000 e 18 de Janeiro de 2002 o autor não gozou qualquer dia de descanso semanal e, além do salário em singelo, não recebeu qualquer compensação por ter trabalhado nos referidos dias de descanso semanal nem lhe foi proporcionado qualquer dia de descanso compensatório.
v) O autor prestou voluntariamente trabalho nos dias de descanso semanal”.
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III- O Direito
1- Introdução
O despacho saneador-sentença condenou a Guardforce no pagamento ao autor de:
- Mop$ 96.007,50, a título de diferenças salariais;
- Mop$ 68.745,00, a título de subsídio de alimentação;
- Mop$ 54.000,00, a título de subsídio de efectividade;
- Mop$ 03.853,56, a título de descanso semanal.
Fê-lo o Ex.mo Juiz no pressuposto múltiplo de que:
- A situação gerada entre a recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada era a de um contrato a favor de terceiro, ao abrigo do qual o autor viria a ser contratado;
- O salário que o autor recebia da Guardforce era mensal.
É contra estas duas questões que a recorrente se insurge, a elas aditando, por fim, uma terceira: a de que o tribunal “a quo” fez errado julgamento de direito em virtude do erro na apreciação da prova quanto à natureza mensal do salário, razão pela qual o descanso semanal foi incorrectamente avaliado pecuniariamente para efeito de compensação pelo trabalho prestado nesses dias.
São estas somente as questões do dissídio.
Vejamos, uma a uma.
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2. A natureza do contrato entre Guardforce e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada
Sobre ela, este TSI tem já definida a sua posição em termos de unanimidade, de que destacaremos o seguinte trecho extraído do acórdão proferido em 2/06/2011, no Processo nº 780/2010:
“1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre Guardforce e a Administração?
Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.
Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (Guardforce) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, lda).
Aquele despacho disse ainda que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a)-manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b)- garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).
Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.
Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.
Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante Guardforce) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (Guardforce e Sociedade de Apoio) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e eventuais abusos. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E por isso mesmo é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
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2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre Guardforce e Sociedade de Apoio?
Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.
E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.
A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.
Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.
De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre Guardforce e Sociedade de Apoio, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.
Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre Guardforce e Sociedade de Apoio é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.
A sentença em crise entende, porém, que não, por não sentir emergir daquele contrato de prestação de serviços nenhuma das figuras contratuais que costumam associar terceiros não intervenientes, como foi o caso.
Por outras palavras, a questão é a do apuramento da natureza jurídica desse contrato no que a estes terceiros concerne.
E considerando não se estar perante um contrato de trabalho, um contrato de trabalho para pessoa a nomear, um contrato de cedência de trabalhadores ou um contrato de promessa – por razões que explicita e com as quais concordamos, mas que, por comodidade e desnecessidade ao Desfecho decisório do recurso nos dispensamos de reproduzir – acabou por concluir que, do mesmo modo, não se estaria em presença do contrato a favor de terceiros, mas eventualmente ante um contrato de promessa de celebrar um contrato de trabalho com pessoa a nomear (sem qualquer efeito na relação laboral contratada entre empregador e trabalhador) e que apenas permitiria à beneficiária (Sociedade de Apoio) reclamar prejuízos resultantes do incumprimento.
E para tanto concluir, arrancando da leitura do art. 437º do Código Civil, foi peremptório em afirmar que no conceito da figura do contrato a favor de terceiro avulta o requisito da “prestação”, que aqui julga não ser possível, uma vez que essa prestação apenas equivaleria à “celebração de outro contrato” (ver fls. 24 e verso da sentença). Argumento a que ainda adita o de que de um contrato a favor de terceiro não podem nascer obrigações para este. Dois obstáculos, portanto, que, em sua óptica, o impediam de preencher os elementos tipo desta espécie contratual.
A solução a dar a ambos estes impedimentos invocados pelo Ex.mo juiz “a quo” merece um tratamento em bloco.
Vejamos.
Segundo o art. 437º do CC:
“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.
No contrato a favor de terceiro, como se vê, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.
Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.
Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.
A questão está, agora, em saber duas coisas:
Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.
A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.
Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.
A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre Guardforce e Sociedade de Apoio, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.
De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que Guardforce se obrigou.
Por conseguinte, os obstáculos erigidos na sentença a este respeito, salvo melhor opinião, não têm consistência. O que vale por dizer que, contra a tese da sentença sob censura, o contrato a favor de terceiro será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes”.
A transcrição feita ilustra a posição que neste momento continuamos a reiterar no sentido defendido na decisão impugnada, a qual, por isso mesmo, não merece qualquer reparo.
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3- A natureza do salário
Mais uma vez, a razão está do lado da decisão sub judice.
Com efeito, o facto de as cláusulas 2 e 4 do documentos juntos com a petição dizerem que “os salários são pagos com base no número de horas de trabalho prestadas, contudo a sociedade garante o pagamento de Mop$ 2.000,00 por mês, equivalentes a 215 horas base. As horas extraordinárias e/ou o trabalho suplementar serão pagas pelo mínimo de Mop$ 9,30 por hora ou pagas de acordo com o estabelecido pelas partes” não significa senão isto: que o trabalhador tinha um salário base mensal (2.000,00)9 equivalente a 215 horas mínimas (“8H15M per shift x 26.06 working days per month = 215 hours”: cláusula 4, em inglês).
O cálculo do valor salarial efectuado pela entidade patronal terá partido, portanto, de uma base assente num determinado número de horas de trabalho, mas sem que isso significasse que o trabalhador fosse pago concretamente por elas, uma a uma. O número de horas apenas se terá tornado fundamental como modo de calcular o limite a partir do qual o serviço prestado seria extraordinariamente remunerado.
Aliás, se assim não fosse, não se compreenderia que a entidade patronal sempre garantisse o salário de duas mil patacas, pagando-o repetidamente, mês após mês, e que fosse pago efectivamente depositado mensalmente em dia certo na conta bancária do interessado, como bem se colhe da matéria provada e dos documentos juntos aos autos (v.g. cláusula 2ª, doc. fls. 56 dos autos).
Esta é a posição, de resto, já assumida por este mesmo TSI em arestos anteriores, de que, por exemplo, citamos os acórdãos proferidos em 16/06,2011, no Proc. nº 838/2010 ou em 7/07/2011, no Proc. nº 722/2010, e de que de novo aqui fazemos eco.
Improcede, pois, também o recurso nesta parte.
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4- Do descanso semanal
Defende, por fim, a recorrente que deve ser absolvida do pagamento da compensação pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal porquanto o trabalhador já recebeu os montantes acordados consigo, além de que, mesmo que assim não se entendesse, o valor a considerar deveria ser o que resulta da estipulação nos contratos de trabalho, ou seja, Mop$ 66,66 por cada dia de serviço, e não o que resulta do contrato a favor de terceiro.
Claudica mais uma vez a recorrente. Na verdade, o que deve ser considerado no cálculo é o valor fixado no contrato a favor de terceiro, e ao qual a “Guardforce” ficou vinculada, tal como se pode avistar na transcrição acima efectuada. E assim sendo, o que pela “Guardforce” foi pago não corresponde ao dever de facere a que ficou obrigada.
Dito isto, avancemos.
Vale aqui, para o efeito, o que emerge do disposto no art. 17º, n.1, 4 e 6, al. a), do DL nº 24/89/M, de 3/04.
Assim:
N.1: Tem o trabalhador direito a gozar um dia de descanso semanal, sem perda da correspondente remuneração (“sem prejuízo da correspondente remuneração”).
N.4: Mas, se trabalhar nesse dia, fica com direito a gozar outro dia de descanso compensatório e, ainda,
N.6: Receberá em dobro da retribuição normal o serviço que prestar em dia de descanso semanal.
Ora, como o trabalhador trabalhou o dia de descanso semanal terá direito ao dobro do que receberia, mesmo sem trabalhar (n.6, al. a)).
Na 1ª perspectiva acima avançada, se o empregador pagou o devido (pagou o dia de descanso), falta pagar o prestado. E como o prestado é pago em dobro, tem o empregador que pagar duas vezes a “retribuição normal” (o diploma não diz o que seja retribuição normal, mas entende-se que se refira ao valor remuneratório correspondente a cada dia de descanso, que por sua vez corresponde a um trinta avos do salário mensal).
Na 2ª perspectiva, se se entender que o empregador pagou um dia de salário pelo serviço prestado, continuam em falta:
- Um dia de salário (por conta do dobro fixado na lei), e ainda,
- O devido (o valor de cada dia de descanso, que não podia ser descontado, face ao art. 26º, n.1).
Portanto, a fórmula será sempre: AxBx2, tal como o concluiu a sentença recorrida. Nesse caso, o valor devido seria Mop$ 180 (Mop$ 90, devidos por cada dia garantido pelo contrato a favor de terceiro, vezes 2) por cada um dos 34 dias não gozados no peticionado período (entre 6/02/2001 e 6/10/2001). Mas, como a Guardforce já pagou por cada um deles a importância de Mop$ 66,66 (2.000,00:30 dias), a diferença corresponde ao valor indemnizatório devido. O que, assim sendo, perfaz a importância de Mop $ 3.853,56 (Mop$180- Mop$66,66x34dias), tal como decidido na 1ª instância.
Pelo que acaba de ser dito, a sentença não merece qualquer reparo, devendo ser totalmente confirmada.
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IV- Decidindo
Face ao exposto, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando na íntegra a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
TSI, 02 / 02 / 2012
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José Cândido de Pinho
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 410;
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pag. 13.
4 Ob. cit, pag. 417
5 Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 493. Também, E. Santos Junior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pag. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit, pag. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pag. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pag. 336 e 338.
9 Posteriormente aumentado para 2.100,00 (doc. fls. 62)
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