Processo n.º 504/2011
(Revisão de Sentença do Exterior)
Data : 9/Fevereiro/2012
ASSUNTOS:
- Revisão de sentença
- Requisitos formais necessários para a confirmação
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau
- Compatibilidade com a ordem pública
SUMÁRIO:
1- Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
2- Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a sentença estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
3- Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do tribunal do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, o tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito.
4- É de confirmar a sentença proferida por um Tribunal de Taiwan que decretou um divórcio por mútuo consentimento, não se vislumbrando qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública ou qualquer obstáculo à revisão dessa sentença.
O Relator,
(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 504/2011
(Revisão de sentença do Exterior)
Data: 9/Fevereiro/2012
Requerente: A
Requerida: B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, com melhor identificação nos autos, vem propor acção de revisão da decisão da autoridade de Taiwan, que homologou a dissolução do seu casamento com B, também ela mais bem identificada nos autos, nos termos seguintes :
1º
O ora Requerente e B procederam ao divórcio por mútuo consentimento em Taiwan, na 臺北市士林區戶政事務所。
2º
Esse divórcio produziu efeitos em 30 de Maio de 2011, conforme se alcança do Certificado de divórcio emitido pela referida autoridade, que vai junta.
3º
Não há dúvidas quanto á autenticidade do documento acima referido.
4º
Não há lugar à invocação de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau.
5º
Ambas as partes interessadas intervieram regularmente no processo administrativo acima referido.
6º
Não contém, finalmente, a decisão qualquer conteúdo que conduza a um resultado incompatível com a ordem pública.
*
Deve pois ser revista e confirmada a decisão da autoridade de Taiwan que homologou o divórcio por mútuo consentimento, de molde a poder este produzir efeitos na Região Administrativa Especial de Macau.
Não foi deduzida oposição.
O Digno Magistrado do Ministério Público pronuncia-se no sentido de não vislumbrar obstáculo à revisão em causa.
Foram colhidos os vistos legais.
II - PRESSUPOSTOS PROCESSUAIS
O Tribunal é o competente internacionalmente, em razão da matéria e da hierarquia.
As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária, dispondo de legitimidade ad causam.
Inexistem quaisquer outras excepções ou questões prévias de que cumpra conhecer.
III - FACTOS
Com pertinência, vem certificado pelo Tribunal de Taiwan:
“CERTIDÃO DE DIVÓRCIO
30/05/100 do calendário da República da China
n.º da série Hu li zheng zi: 00000XXX
Certifica-se, por este meio, que o divórcio de A e de B entrou em vigor em 30/05/100 do calendário da República da China, o registo de divórcio foi efectuado na Repartição para os Assuntos de Registo Domiciliar do Distrito de Shilin da Cidade de Taipei em 00/00/00 do calendário da República da China.
Nome: A Nome: B
Sexo: Masculino Sexo: Feminino
Data de nascimento: Data de nascimento:
03/08/51 do calendário da República da China 01/05/56 do calendário da República da China
03/08/1962 do calendário gregoriano 01/05/1967 do calendário gregoriano
N.º do BI: AXXXXXXXXX
Nacionalidade: República da China Nacionalidade: República da China
Órgão de emissão: Repartição para os Assuntos de Registo Domiciliar do Distrito de Shilin da Cidade de Taipei (com carimbo aposto)
Nota: esta Certidão destina-se a certificar apenas a data de entrada em vigor e a de registo de divórcio das partes neste casamento.”
IV - FUNDAMENTOS
O objecto da presente acção - revisão de sentença proferida em processo de divórcio pela autoridade competente da cidade de Taipé, Taiwan, - de forma a produzir aqui eficácia, passa pela análise das seguintes questões:
- Requisitos formais necessários para a confirmação;
- Colisão ou não com matéria da exclusiva competência dos Tribunais de Macau;
- Compatibilidade com a ordem pública;
*
1. Prevê o artigo 1200º do C. Processo Civil:
“1. Para que a decisão proferida por tribunal do exterior de Macau seja confirmada, é necessária a verificação dos seguintes requisitos:
a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a decisão nem sobre a inteligibilidade da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do local em que foi proferida;
c) Que provenha de tribunal cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais de Macau;
d) Que não possa invocar-se a excepção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afecta a tribunal de Macau, excepto se foi o tribunal do exterior de Macau que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a acção, nos termos da lei do local do tribunal de origem, e que no processo tenham sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cuja confirmação conduza a um resultado manifestamente incompatível com a ordem pública.
2. O disposto no número anterior é aplicável à decisão arbitral, na parte em que o puder ser.”
Com o Código de Processo Civil (CPC) de 1999, o designado privilégio da nacionalidade ou da residência - aplicação das disposições de direito privado local, quando este tivesse competência segundo o sistema das regras de conflitos do ordenamento interno - constante da anterior al. g) do artigo 1096º do CPC, deixou de ser considerado um requisito necessário, passando a ser configurado como mero obstáculo ao reconhecimento, sendo a sua invocação reservada à iniciativa da parte interessada, se residente em Macau, nos termos do artigo 1202º, n.º 2 do CPC.
A diferença, neste particular, reside, pois, no facto de que agora é a parte interessada que deve suscitar a questão do tratamento desigual no foro exterior à R.A.E.M., facilitando-se assim a revisão e a confirmação das decisões proferidas pelas autoridades estrangeiras, respeitando a soberania das outras jurisdições, salvaguardando apenas um núcleo formado pelas matérias da competência exclusiva dos tribunais de Macau e de conformidade com a ordem pública.
Não se conhecendo do fundo ou do mérito da causa, na revisão formal, o Tribunal limita-se a verificar se a decisão estrangeira satisfaz certos requisitos de forma e condições de regularidade1, pelo que não há que proceder a novo julgamento tanto da questão de facto como de direito.
Dúvidas não resultam quanto à dissolução do casamento proferida à luz do ordenamento de Taiwan.
Vejamos então os requisitos previstos no artigo 1200º do CPC.
3. Autenticidade e inteligibilidade da decisão.
Parece não haver dúvidas de que se trata de um documento autêntico devidamente selado e traduzido, certificando-se uma decisão proferida pela Repartição para os Assuntos de Registo Domiciliar do distrito de Shilin, da cidade de Taipei, da República da China, Taiwan, face às leis do Estado respectivo, cujo conteúdo facilmente se alcança, em particular no que respeita à parte decisória - dissolução do casamento.2
4. Quanto aos requisitos relativos ao trânsito em julgado, competência do autoridade do exterior, ausência de litispendência ou de caso julgado, citação e garantia do contraditório, dispõe o artigo 1204º do CPC:
“O tribunal verifica oficiosamente se concorrem as condições indicadas nas alíneas a) e f) do artigo 1200º, negando também oficiosamente a confirmação quando, pelo exame do processo ou por conhecimento derivado do exercício das suas funções, apure que falta algum dos requisitos exigidos nas alíneas b), c), d) e e) do mesmo preceito”.
Tal entendimento já existia no domínio do Código anterior,3 entendendo-se que, quanto àqueles requisitos, geralmente, bastaria ao requerente a sua invocação, ficando dispensado de fazer a sua prova positiva e directa, já que os mesmos se presumiam4.
É este, igualmente, o entendimento que tem sido seguido pela Jurisprudência de Macau.5
Ora, nada resulta dos autos ou do conhecimento oficioso do Tribunal, no sentido da não verificação desses requisitos que assim se têm por presumidos.
Resulta até dos documentos juntos que a decisão proferida produziu efeitos a partir de 30 de Maio de 2011, vista a correspondência entre o calendário gregoriano e o calendário da República da China.
5. Já a matéria da competência exclusiva dos Tribunais de Macau está sujeita a indagação, implicando uma análise em função do teor da decisão revidenda, à luz, nomeadamente, do que dispõe o artigo 20º do CC:
“A competência dos tribunais de Macau é exclusiva para apreciar:
a) As acções relativas a direitos reais sobre imóveis situados em Maca
b) As acções destinadas a declarar a falência ou a insolvência de pessoas colectivas cuja sede se encontre em Macau.”
Ora, ainda aqui se observa que nenhuma das situações contempladas neste preceito colide com o caso sub judice.
6. Da ordem pública.
Não se deixa de ter presente a referência à ordem pública, a que alude o art. 273º, nº2 do C. Civil, no direito interno, como aquele conjunto de “normas e princípios jurídicos absolutamente imperativos que formam os quadros fundamentais do sistema, pelo que são, como tais, inderrogáveis pela vontade dos indivíduos.”6 E se a ordem pública interna restringe a liberdade individual, a ordem pública internacional ou externa limita a aplicabilidade das leis exteriores a Macau, sendo esta última que relevará para a análise da questão.
No caso em apreço, em que se pretende confirmar a decisão que dissolveu o casamento, decretando o divórcio entre o ora requerente e a sua esposa, não se vislumbra que haja qualquer violação ou incompatibilidade com a ordem pública.
Aliás, sempre se realça que o nosso direito substantivo prevê a dissolução do casamento, seja por via litigiosa, seja por mútuo consenso.
O pedido de confirmação de decisão do Exterior não deixará, pois, de ser procedente, não vindo referidos quaisquer acordos que importe confirmar.
Assim se confirmará a decisão proferida, tal como requerido.
V - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam conceder a revisão e confirmar a decisão que decretou o divórcio, em conformidade com a certificação documentada, proferida pela Repartição para os Assuntos de Registo Domiciliar do Distrito de Shilin da cidade de Taipei, da República da China, nos termos da qual foi dissolvido o casamento celebrado entre o requerente, A e de B, por decisão que produziu efeitos a partir de 30 de Maio de 2011, nos precisos termos do documento de fls. 3.
Custas pelo requerente.
Macau, 9 de Fevereiro de 2012,
João A. G. Gil de Oliveira
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - Alberto dos Reis, Processos Especiais, 2º, 141; Proc. nº 104/2002 do TSI, de 7/Nov/2002
2 - Ac. STJ de 21/12/65, BMJ 152, 155
3 - cfr. artigo 1101º do CPC pré-vigente
4 - Alberto dos Reis, ob. cit., 163 e Acs do STJ de 11/2/66, BMJ, 154-278 e de 24/10/69, BMJ, 190-275
5 - cfr. Ac. TSJ de 25/2/98, CJ, 1998, I, 118 e jurisprudência aí citada, Ac. TSI de 27/7/2000, CJ 2000, II, 82, 15/2/2000, CJ 2001, I, 170, de 24/5/2001, CJ 2001, I, 263 de 11/4/2002, proc. 134/2002 de 24/4/2002, entre outros
6 -João Baptista Machado, Lições de DIP, 1992, 254
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