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Acórdão do Tribunal de Última Instância
da Região Administrativa Especial de Macau



Recurso penal
N.° 30 / 2006

Recorrente: A







1. Relatório
   No processo comum colectivo n.° CR2-05-0219-PCC do Tribunal Judicial de Base, o primeiro arguido A foi condenado pela prática de um crime de burla de valor consideravelmente elevado previsto e punido pelos art.°s 211.°, n.°s 1 e 4, al. a) e 196.°, al. b) do Código Penal na pena de 4 anos de prisão. Ao mesmo tempo foi condenado a pagar solidariamente com a segunda arguida do processo à ofendida, a título de indemnização dos prejuízos sofridos, no valor de HK$547.891,47 e os juros legais.
   O primeiro arguido A recorreu deste acórdão ao Tribunal de Segunda Instância. Por seu acórdão de 29 de Junho de 2006 proferido no processo n.° 151/2006, foi concedido provimento parcial ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte que fixou as penas concretas aos dois arguidos, reduzindo as respectivas penas, e o primeiro arguido A passou a ser condenado na pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
   O primeiro arguido A recorre agora para o Tribunal de Última Instância, apresentando as seguintes conclusões, em síntese, das suas alegações:
   – O recorrente considera que existe o vício previsto no art.° 400.°, n.° 2, al. c) do Código de Processo Penal nas decisões de primeira e segunda instância, por causa de ter sido dado como provado, na decisão de primeira instância, o seguinte facto: ‘A ofendida, portanto, sofreu de perda económica de valor consideravelmente elevado.’
   – Do documento de gravação de audiência constante dos autos depreende-se que a ofendida (B) manifestou na audiência de julgamento de que parte da quantia do preço de transacção do processo (HK$650.000,00) pertencia ao seu marido e o pagamento da maior parte do valor da transacção foi efectuado com os cheques do seu marido.
   – No entanto, há omissão na gravação da audiência de primeira instância que constitui a irregularidade prevista no art.° 110.° do Código de Processo Penal. O facto em causa não deve ser considerado provado ou deve ser considerado como não provado, por não constar dos elementos dos autos (incluindo o suporte de gravação) do respectivo processo.
   – Apesar de o acórdão de segunda instância entender existir a referida irregularidade, não é correcto considerar como irrelevante.
   – Nem a acusação nem a parte dos factos provados da decisão de primeira instância refere que todo o preço foi pago pela própria ofendida. O recorrente já impugnou o facto por meio de alegações no anterior recurso.
   – Se não comprovar que a ofendida sofreu qualquer prejuízo patrimonial, não se pode considerar que o recorrente praticou o crime de burla previsto no n.° 1 nem o crime de burla de valor consideravelmente elevado previsto no n.° 4, ambos do art.° 211.° do Código Penal.
   – Se não comprovar que o valor de prejuízo da ofendida seja igual ou superior a MOP$150.000,00, não se pode, pelo menos, condenar o recorrente pelo crime de burla de valor consideravelmente elevado previsto no n.° 4 do art.° 211.° do Código Penal.
   – A decisão de segunda instância entendeu erradamente que pertenciam à ofendida pelo menos MOP$271.920,00 entre os referidos HK$650.000,00.
   – O recorrente chegou a suscitar a questão em causa perante o tribunal de primeira instância durante a audiência de primeira instância.
   – Pelo exposto, é errada a decisão de segunda instância ao considerar irrelevante a irregularidade. A consequência necessária consiste na violação do princípio de in dubio pro reo, no vício previsto no art.° 400.°, n.° 2, al.s a) e c) do Código de Processo Penal e na violação do art.°s 40.°, n.° 2, 65.°, n.°s 1 e 2, 74.°, 121.° e 211.°, n.° 1, em conjugação com a al. a) do n.° 4, todos do Código Penal, o art.° 477.° do Código Civil e o princípio dispositivo do processo civil.
   – De acordo com o acima exposto, a fixação da pena concreta pela segunda instância violou necessariamente os art.°s 40.°, n.° 2 e 65.°, n.°s 1 e 2 do Código Penal, porque não está legalmente provado o prejuízo patrimonial da burlada (ofendida) do presente processo, tal como foi referido. É injusto para o recorrente tomar como critério da fixação da pena concreta na decisão de segunda instância as mencionada MOP$271.920,00 ou até os referidos HK$650.000,00.
   – O recorrente sustenta que só pode ser condenado no mínimo legal pelo crime em causa.
   – Por outro lado, existem ainda factos como a confissão de todos os factos objectivos e a indemnização dos prejuízos da ofendida por sua iniciativa. Por isso, deve ser reduzida a pena concreta do recorrente fixada pelo acórdão de segunda instância.
   – Em relação a indemnização civil, uma vez que não foi apurado o prejuízo da ofendida nas decisões de primeira e segunda instância, o marido da ofendida não lhe conferiu poder para apresentar pedido de indemnização cível, para além de ele não ter participado no respectivo processo para pedir qualquer indemnização.
   – Todavia, não se distinguiu, quer na decisão de primeira instância, quer na de segunda instância, o ofendido de crime do lesado em indemnização civil, por ser possível que aquele não sofre prejuízo patrimonial.
   – As decisões de primeira e segunda instância violam os art.°s 74.° do Código penal, 477.° do Código Civil aplicável por força do art.° 121.° do Código Penal e o princípio dispositivo estabelecido no processo civil.
   – Pelo exposto, as decisões de primeira e segunda instância violam os art.°s 74.°, 121.°, 211.°, n.° 1 em conjugação com o n.° 4, al. a), todos do Código Penal, 477.° do Código Civil e o princípio dispositivo do processo civil, o princípio de in dubio pro reo, e padecem dos vícios previstos no art.° 400.°, n.° 2, al.s a) e c) do Código de Processo Penal.
   Pede finalmente ao tribunal:
   O reenvio do processo para novo julgamento de todo o objecto do processo nos termos do art.° 418.°, n.° 1 do Código de Processo Penal;
   Se não foi assim entendido, revogar o acórdão recorrido (todas as decisões das partes civil e penal) com todas as consequências legais; ou
   Fixar, de novo, a pena concreta ao recorrente.
   
   O Ministério Público emitiu a seguinte resposta:
   “1. Questão prévia.
   Impugna o recorrente o douto acórdão que concedeu parcial provimento ao recurso que havia interposto para esta Segunda Instância.
   Mas tal acórdão é, a nosso ver, irrecorrível.
   
   Nos termos do disposto na al. g) do n.º 1 do art.º 390.º do C. P. Penal – na redacção introduzida pelo art.º 73.º da Lei n.º 9/1999, de 20/12 – não é admissível recurso ‘de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções’.
   E está-se, in casu, perante essa situação.
   
   No presente recurso, na verdade, está em causa o crime referido no art.º 211.º, n.ºs 1 e 4, al. a), do C. Penal, punido com uma pena de prisão até 10 anos.
   E o douto acórdão alterou a decisão da 1ª Instância apenas na parte respeitante à pena, que reduziu de 4 anos para 3 anos e 3 meses de prisão (sendo certo que o recorrente havia pedido uma redução da sanção, sem precisar, contudo, o respectivo quantum).
   O mesmo acórdão deve ter-se, assim, para o arguido, como confirmativo (confirmação in mellius) da referida decisão.
   Não faz sentido, de facto, que o recorrente possa impugnar o acórdão deste Tribunal, que lhe diminuiu a pena, quando não poderia fazê-lo, se isso não tivesse sucedido.
   Nas circunstâncias do caso, em que a alteração reverteu em benefício do arguido, só seria admissível, no nosso entender, a interposição de recurso pelo MP.
   No sentido propugnado decidiu, já, aliás, o STJ de Portugal (cfr. ac. de 30-10-2003, proc. n.º 2921/03/5ª - cit. Maia Gonçalves, CPP, Anotado e Comentado, 15ª Ed., 2005, pg. 798).
   Não deve, em consonância, conhecer-se do recurso em apreço.
   
   2. Quanto ao fundo.
   Se assim não se entender, entretanto, o recurso não pode deixar de limitar-se à parte da decisão em que houve dissensão.
   Efectivamente, o pensamento legislativo que está na base da norma em foco é o de que não se justifica um segundo recurso sobre as mesmas questões, quando os tribunais de primeira e segunda instâncias decidem no mesmo sentido (cfr., a propósito, ac. desse Venerando Tribunal, de 12-7-2006, proc. n.º 20/2006).
   
   E o recorrente pretende, na realidade, uma maior redução da pena – até ao mínimo legal.
   É óbvio, no entanto, que não lhe assiste razão.
   
   As balizas da tarefa da fixação da pena estão desenhadas no art.º 65.º, n.º 1, do C. Penal, tendo como pano de fundo a ‘culpa do agente’ e as ‘exigências de prevenção criminal’.
   A quantificação da culpa e a intensidade das razões de prevenção têm de determinar-se, naturalmente, através de “todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele ... ” (cfr. citado art.º 65.º, n.º 2 ).
   Que dizer, então, das circunstâncias averiguadas?
   O acórdão desta Segunda Instância ponderou, lucidamente, o condicionalismo dado como provado.
   E não podemos deixar de louvar-nos, realmente, nas seguintes considerações aduzidas no mesmo:
   ‘Na ponderação de uma pena ligeiramente inferior pode estar efectivamente uma avaliação da conduta essencialmente lesiva de bens patrimoniais e da possibilidade de a burlada, vista uma certa continuação criminosa, poder certificar-se da autenticidade dos objectos adquiridos, para além de não se tratar de transacções em estabelecimento aberto ao público, situação em que as razões de defesa do consumidor, do público em geral, da economia, do mercado e da genuinidade das mercadorias assumiria uma outra premência.
   Estas razões, vista a natureza da lesão eminentemente patrimonial, levam a considerar um pouco excessiva a pena de 4 anos de prisão para tal crime, não obstante o valor já com alguma expressão da burla cometida.
   Noutra perspectiva, o circunstancialismo do caso, à partida, não tão gravoso sob aquele ponto de vista, assume alguma gravidade pelo facto de essa burla ser realizada com pessoas com quem havia alguma convivência e à vontade, com o facto de os objectos terem um valor que por si não aparentavam falsificação e, acima de tudo, tendo havido um prejuízo com enriquecimento dos arguidos, não ter havido compensação patrimonial desses mesmos prejuízos’.
   
   Foi encontrada, em conformidade, a pena de 3 anos e 3 meses de prisão.
   E cremos, convictamente, que não se podia ter ido mais longe.
   
   3. Conclusão.
   Deve, pelo exposto, a não ser atendida a questão prévia, o recurso ser julgado improcedente – ou, até, mesmo, manifestamente improcedente (com a sua consequente rejeição, nos termos dos art.ºs 407.º, n.º 3, al. c), 409.º, n.º 2, al. a) e 410.º, do C. P. Penal).”
   
   
   O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Última Instância mantém a posição tomada na resposta do Ministério Público.
   
   Relativamente à questão de irrecorribilidade suscitada pelo Ministério Público, o recorrente, na resposta, considera que não há confirmação do acórdão com a consequente não admissão do recurso ao Tribunal de Última Instância no caso de existir divergência sobre a questão jurídica de fixação de pena concreta entre o Tribunal Judicial de Base e o Tribunal de Segunda Instância.
   
   
   Foram apostos vistos pelos juízes-adjuntos.
   
   
   
   2. Fundamentos
   Foram dados como provados os seguintes factos pelos Tribunal Judicial de Base e Tribunal de Segunda Instância:
   “Na altura da ocorrência do caso os referidos dois arguidos eram namorados.
   Em tempo indeterminado, o 1° arguido adquiriu de modo desconhecido objectos de tipo mármore tratados artificialmente de grande quantidade, e combinou com a 2ª arguida que fossem vendidos os objectos em causa a outrem como objectos de jade.
   A partir de Janeiro de 2005, os dois arguidos venderam por seis vezes a B (ofendida), conhecida pela 2ª arguida quando a mesma lhe deu massagem, cerca de 31 objectos de jade, incluindo anéis, colares, penduricalhos e pedras de jade, com seiscentos e cinquenta e seis mil dólares de Hong Kong (HKD$656.000,00).
   Os dois arguidos, quando venderam os referidos objectivos, garantiram à ofendida que todos os objectos em causa eram objectos de jade de classe superior (classe A) que tinham valor elevado.
   Foram remetidos 10 dos referidos 31 objectos para ser examinados, e após peritagem do Laboratório de Jade e Pedra de Hong Kong (Hong Kong Jade & Stone Laboratory Limited), os 10 objectos examinados não são de jade verdadeiro, que não corresponde à alegação dos referidos arguidos, mas sim de jade duro tingido ou de quartzo tingido tratados quimicamente e a que foi introduzido polímero químico, cujo valor é muito mais baixo do que o de jade verdadeiro.
   Posteriormente, os dois arguidos ainda combinaram que fossem vendidos à ofendida mais doze objectos de jade, inclusive pulseiras, colares, gotas de jade e penduricalhos, com preço de duzentos e sessenta e três mil dólares de Hong Kong (HKD$263.000,00).
   O 1º arguido alegou à ofendida que todos os objectos em causa eram feitos de jade de classe superior (classe A) que tinham valor elevado.
   Foram remetidos 2 dos referidos 12 objectos para ser examinados, e após peritagem do Laboratório de Jade e Pedra de Hong Kong (Hong Kong Jade & Stone Laboratory Limited), confirmou-se que uma pulseira de jade com preço combinado de cinquenta mil dólares de Hong Kong (HKD$50.000,00) e um colar de jade com valor combinado de vinte e oito mil dólares de Hong Kong (HKD$28.000,00) eram feitos de jade duro tingido e de quartzo tingido tratados quimicamente e a que foi introduzido polímero químico, cujo valor é muito mais baixo do que o alegado jade verdadeiro.
   Em 27 de Abril de 2005, cerca das 10H00 da noite, quando o 1º arguido levou 11 objectos de jade para a residência da ofendida situada no complexo habitacional [Endereço(1)] para fazer promoção, o mesmo foi interceptado por agentes de PJ.
   Os agentes de PJ encontraram na posse do 1º arguido 11 objectos de forma de jade, alegados pelo 1º arguido feitos de jade de classe superior.
   Cerca das 12H30 da noite do mesmo dia, quando a 2ª arguida foi interceptada na referida residência da ofendida, os agentes de PJ encontraram na sua posse 47 pedras de forma de jade.
   Em 28 de Abril de 2005, os agentes da PJ encontraram na residência dos dois arguidos, situada na [Endereço(2)], objectos de jade de grande quantidade, inclusive 79 gotas de cor verde, 11 anéis de forma de jade de cor verde, 11 pulseiras de forma de jade, que somam 101 objectos de forma de jade, e 79 colares de jade.
   Para além disso, os agentes de PJ encontraram também, no interior do quarto, nas gavetas do roupeiro e da mesinha de cabeceira 16 objectos de forma de jade, 9 anéis do forma de jade, 136 gotas de forma de jade, 11 pulseiras de forma de jade, 20 colares de forma de jade e 2 pulseiras de forma de jade.
   Após a respectiva perícia, todos os objectos de forma de jade vendidos pelos dois arguidos para a ofendida e todos os objectos de forma de jade encontrados na posse ou na residência dos arguidos não são feitos de jade verdadeiro, mas sim são artesanatos que tem valor muito baixo, valendo somente dezenas patacas por peça.
   Os dois arguidos, agindo consciente e voluntariamente, inventaram factos, promoveram e venderam a outrem objectos de valor baixo, fazendo-os passar por objectos de valor elevado, com intenção de obter para si benefícios ilegais.
   A ofendida, portanto, sofreu de perda económica de valor consideravelmente elevado.
   Os dois referidos arguidos sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
   
   Mais se provou:
   A ofendida pretende ser indemnizada pelo prejuízo sofrido.
   O 1º arguido depositou, em 19/1/2006, um montante de MOP$45.000,00, para pagar a indemnização à ofendida.
   Foram encontrados e apreendidos, na residência dos arguidos, numerários no montante de HKD$49.000,00 e MOP$61.000,00, equivalente ao HKD$59.108,53 (MOP/1,032), que era parte do preço entregue pela ofendida aos arguidos.
   Conforme os CRCs, os arguidos são primários.
   O 1º arguido trabalhava, antes de ser detido preventivamente, como empreiteiro de obras de construção, auferindo mensalmente cerca de 8.000,00 a 10.000,00 patacas. Não tem ninguém a seu cargo. Tem como habilitações literárias a frequência do 4º ano do curso secundário.
   A 2ª arguida trabalhava, antes de ser detida preventivamente, como massagista, auferindo cerca de 10.000,00 patacas por mês. Tem dois filhos de 18 e 19 anos de idade. Tem como habilitações literárias a frequência do 5º ano da escola primária.
   
   Factos não provados: nada a assinalar.”
   
   
   2.2 Recorribilidade do acórdão do Tribunal de Segunda Instância
   No acórdão de primeira instância, o recorrente foi condenado pela prática do crime de burla de valor consideravelmente elevado na pena de 4 anos de prisão e a pagar indemnização à ofendida. Apreciado o recurso do acórdão de primeira instância, o Tribunal de Segunda Instância alterou a decisão na parte respeitante à medida de pena para passar a condenar o recorrente na pena menos grave, confirmando a restante parte do acórdão recorrido.
   O Ministério Público entende que, quando o Tribunal de Segunda Instância reduzir a pena de recorrente em recurso, deve ser considerado como confirmativo da decisão recorrida, isto é, confirmação in mellius. Nos termos do art.° 390.°, n.° 1, al. g) do Código de Processo Penal (CPP), não é admissível recurso do acórdão do Tribunal de Segunda Instância.
   Dispõe assim a referida norma (na redacção dada pelo art.° 73.° da Lei n.° 9/1999):
   “1. Não é admissível recurso:
   ...
   g) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, que confirmem decisão de primeira instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de prisão não superior a dez anos, mesmo em caso de concurso de infracções.”
   Em relação aos processos penais em que seja aplicável a pena de prisão não superior a dez anos, tal como o presente processo, a recorribilidade ao Tribunal de Última Instância depende da confirmação da decisão do Tribunal Judicial de Base pelo Tribunal de Segunda Instância.
   Não é admissível recurso para o tribunal de terceiro grau de jurisdição sobre a questão em que as decisões da primeira e segunda instância são no mesmo sentido, ou seja, na falta de divergência de decisão entre os tribunais de primeira e segunda instâncias.
   Se a decisão do Tribunal Judicial de Base não for confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância, existindo posições diferentes sobre a decisão entre os tribunais das duas instâncias, a referida norma não inibe recorrer da decisão do Tribunal de Segunda Instância para o Tribunal de Última Instância. Quando o Tribunal de Segunda Instância reduzir a pena de recorrente na apreciação do recurso, não fica, na realidade, confirmada completamente o acórdão de primeira instância.
   Fixada pelo legislador como condição de rejeitar ou não o recurso a conformidade ou não das decisões das duas instâncias, o objectivo é permitir os interessados recorrer para o tribunal de terceiro grau de jurisdição, perante a divergência de posições entre os tribunais de primeira e segunda instâncias sobre a mesma questão jurídica, a fim de procurar a decisão definitiva.
   Assim sendo, mesmo que o Tribunal de Segunda Instância fixe uma pena concreta menos gravosa em comparação com a fixada pelo Tribunal Judicial de Base, do acórdão do Tribunal de Segunda Instância é recorrível para o Tribunal de Última Instância de acordo com a mencionada disposição.
   
   No entanto, o que não significa que se pode recorrer de toda a decisão do acórdão do Tribunal de Segunda Instância. Tal como foi referido, no processo penal em que é aplicável uma pena de prisão não superior a dez anos, não há necessidade de chamar o tribunal de instância superior para reapreciar o caso quando haja conformidade entre as decisões dos tribunais de primeira e segunda instância. É mesma a posição tomada no acórdão do Tribunal de Última Instância proferido no recurso n.º 20/2006: a intenção legislativa do art.º 638.º, n.º 2 do Código de Processo Civil é a de que “se não justifica um segundo recurso sobre as mesmas questões, quando os tribunais de primeira e segunda instância decidem no mesmo sentido, com unanimidade dos votos dos juízes, quanto à decisão.” Este entendimento não entra em conflito com processo penal. De facto, as condições de recurso no processo penal são diferentes conforme as molduras penais e a decisão de primeira instância (vide com pormenor as várias alíneas do n.º 1 do art.º 390.º do CPP).
   Deste modo, quando está em causa crime punível só com pena de prisão não superior a dez anos, da decisão confirmada pelo Tribunal de Segunda Instância não é admitido recurso. Só em relação a questão em que haja decisões diferentes dos tribunais das duas instâncias se pode recorrer para o Tribunal de Última Instância. Em consequência, só pode apreciar a questão da medida da pena no presente recurso, não tomando conhecimento das questões de omissão de gravação da audiência e de indemnização civil suscitadas pelo recorrente.
   
   
   2.3 Medida da pena
   O recorrente alega que, tendo em conta a confissão de todos os factos objectivos e o pagamento de indemnização de prejuízo da ofendida por sua própria iniciativa, a sua pena deve ser reduzida e condena o recorrente no mínimo legal com base no princípio de in dubio pro reo.
   O recorrente foi condenado pela prática de um crime de burla de valor consideravelmente elevado previsto no art.º 211.º, n.ºs 1 e 4, al. a) do Código Penal (CP), punível com pena de dois a dez anos de prisão.
   Na fixação da pena, o Tribunal de Segunda Instância entende que se deve ter por critério a medida da culpa do recorrente, tendo em consideração a conduta lesiva do recorrente, o quadro de transacções entre ambas as partes, e a natureza patrimonial dos prejuízos provocados, e reduziu a pena para três anos e três meses de prisão.
   Conduto, não corresponde inteiramente à factualidade apurada ao considerar pelo tribunal recorrido na fixação de nova pena que “... tendo havido um prejuízo com enriquecimento dos arguidos, não ter havido compensação patrimonial desses mesmos prejuízos.”
   
   De acordo com os factos provados, o primeiro arguido, ora recorrente, depositou 45.000,00 patacas para indemnizar a ofendida no dia 19 de Janeiro de 2006, precisamente no próprio dia em que se iniciou a audiência de julgamento no Tribunal Judicial de Base.
   Segundo o art.º 201.º do CP:
   “1. Quando a coisa furtada ou ilegitimamente apropriada for restituída, ou o agente reparar o prejuízo causado, sem dano ilegítimo de terceiro, até ao início da audiência de julgamento em primeira instância, a pena é especialmente atenuada.
   2. Se a restituição ou reparação for parcial, a pena pode ser especialmente atenuada.”
   Nos termos do art.º 221.º do mesmo Código, o referido art.º 201.º é aplicável ao crime de burla de valor consideravelmente elevado.
   De acordo com os elementos dos autos, o recorrente apresentou no dia 17 de Janeiro de 2006 um requerimento escrito em chinês para o juiz do Tribunal Judicial de Base no sentido de emitir uma guia de depósito no valor de 45.000,00 patacas, a fim de depositar tal quantia na conta indicada pelo tribunal para “indemnizar a ofendida pelos seus prejuízos” (fls. 361 dos autos). O requerimento foi traduzido para português no dia seguinte.
   No dia 19, ou seja, no próprio dia de audiência de julgamento, o pedido foi deferido pelo juiz e a guia foi emitida e entregue para a mulher do recorrente. A audiência começou às 11:30 e a quantia foi depositada no banco às 12:03 (fls. 368 dos autos).
   O requerimento de pagamento de parte de indemnização foi apresentado pelo recorrente antes do início da audiência de julgamento na primeira instância. Por causa de tradução e disposições processuais, o requerimento foi deferido apenas dois dias depois, isto é, no próprio dia em que se começou a audiência de julgamento. Segundo a acta da audiência de julgamento (fls. 369 dos autos), aberta a audiência o tribunal já notificou o defensor do recorrente sobre o requerimento e que a guia foi entregue à mulher do recorrente. Em seguida, no entanto, não houve nenhum requerimento sobre o assunto por parte do arguido nem do seu defensor.
   Por que tal quantia foi apenas depositada na conta bancária indicada após o início da audiência de julgamento, a pena do recorrente não pode ser atenuada especialmente nos termos do referido art.º 201.º, n.º 2 do CP, para além de que a quantia depositada corresponde somente a 8% do valor de indemnização.
   Mesmo assim, a conduta do recorrente de efectuar o pagamento da parte da indemnização por sua iniciativa não deixa de ser considerada com circunstância geral na fixação da pena concreta.
   Uma vez que o referido depósito foi efectuado em nome do primeiro arguido, ora recorrente, tratando-se de circunstância pessoal, não constitui atenuante para a segunda arguida do presente processo.
   Segundo as circunstâncias dos actos enganosos do recorrente, os objectos utilizados nas transacções, o valor da quantia obtida através da burla, o quadro de situações em que foram realizadas as transacções com a ofendida, a necessidade de prevenção criminal e as condutas posteriores do crime, tal como a confissão, o arrependimento e a indemnização parcial dos prejuízos causados, é de fixar a pena de dois anos e nove meses de prisão para o crime de burla de valor consideravelmente elevado cometido pelo recorrente.
   
   
   
   3. Decisão
   Face ao exposto, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso, revogando o acórdão recorrido na parte de fixação da pena concreta, e passar a condenar o recorrente na pena de dois anos e nove meses de prisão.
   Custas pelo recorrente com a taxa de justiça fixada em 6UC.
   Os honorários de trezentas patacas para cada um dos defensores que participam na audiência e leitura do acórdão do presente recurso são a cargo da segunda arguida.


   Aos 18 de Outubro de 2006.



           Juízes:Chu Kin
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
Sam Hou Fai

Processo n.° 30 / 2006 1