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Processo n.º 136/2010
(Recurso cível)

Data : 9/Fevereiro/2012

ASSUNTOS:
- Alteração do pedido e da causa de pedir
- Interpretação dos contratos
- Âmbito das estipulações abrangidas pelas razões da forma solene
- Doações modais/onerosas
- Censos reservativos
- Perpetuidade dos encargos
- Ónus reais

SUMÁRIO:
   
    Será de declarar extinto o encargo imposto numa doação feita em 1925 a uma dada Associação, encargo que se traduzia na obrigação desta pagar 70% dos rendimentos líquidos de dados prédios à doadora, enquanto viva fosse e aos seus herdeiros, porque o neto, réu na acção, que se arroga tal direito não detém tal qualidade.
    
Isto porque -
- Na doação se estabeleceu expressamente um encargo estendido aos herdeiros da doadora;
    - A expressão herdeiros não se confunde com a de descendentes ou muito menos com a de filhos e netos;
    - Não vindo provado erro da declarante;
    - Um mero registo no livro de encargos de uma expressão alusiva a descendentes não é razão bastante para inverter o sentido da expressão usada na escritura;
    - Havendo dúvida, as regras interpretativas não deixarão de apontar para uma opção por um encargo como beneficiando apenas os herdeiros, solução que não deixa de corresponder a um maior equilíbrio das prestações;
    - A configurar-se uma situação de perpetuidade, por integrada uma situação de censo reservativo, tal contrato estava proibido;
    - A configurar-se uma situação de doação modal com carácter perpétuo essa conformação não deixaria de ter as mesmas consequências e traduzir a mesma impossibiliddade daquele ónus real;
    - Registando-se a preocupação do legislador em pôr tendencialmente fim às situações reais perpétuas em termos de ónus reais ou situações similares;
    - Limitando-se o encargo apenas aos filhos e netos, tal deixa de ter correspondência com os elementos probatórios em que o interessado recorrido procura radicar o seu direito.
                    O Relator,


(João Gil de Oliveira)
Processo n.º 136/2010
(Recurso Civil)
Data: 9/Fevereiro/2012

Recorrente: A

Recorridos: B e seus herdeiros desconhecidos (B及其不知悉的繼承人)
     C
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, inconformada com a sentença que julgou improcedente a acção em que se pedia a extinção de um dado encargo resultante de uma doação que lhe foi feita em 1925 por B, vem recorrer, alegando em síntese conclusiva:
    I. Na escritura de 29.12.1925, lavrada a fls. 61 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 59 do notário público Carlos de Mello Leitão, B declarou transmitir por doação com encargos ou onerosa para a A., "A", os prédios em causa, pois declarou "que cede e transfere à donatária todo o domínio, direito, acção e posse que até agora tem tido nos prédios doados, ficando os respectivos encargos a cargo da donatária a partir desde esta data", com o encargo, por esta aceite, "de dar à doadora enquanto vida tiver e aos seus herdeiros, setenta por cento dos rendimentos líquidos" - interpretação diversa faz indevida aplicação dos arts. 1452.°, 1454.° e 1455.° do Código Civil de Seabra.
    II. A doação sub judice não é uma doação mortis causa, i.e. não é uma doação que produza os seus efeitos por morte do doador, pois no contrato de doação celebrado a morte do doador não funciona como causa de devolução dos bens, ou seja, como causa de transmissão dos bens doados; a transmissão dos bens operou-se no momento do contrato de doação formalizado na escritura acima referenciada - a partir da celebração desse contrato os bens consideram-se transmitidos ao donatário, não sendo necessário aguardar pela morte do doador para que tal aconteça - interpretação diversa faz indevida aplicação do art. 1457.° do Código Civil de Seabra.
    III. À data da celebração do negócio era exigida a forma de escritura pública para a prova da doação de bens imóveis de valor superior a Esc. 1,000.00, verificando-se que o contrato de doação que tivesse tal objecto mediato e não revestisse tal forma era totalmente inválido - interpretação diversa faz indevida aplicação dos arts. 686.° e 1459.° do Código Civil de Seabra.
    IV. Na escritura a declarante doadora declarou que o encargo era "de dar à doadora, enquanto vida tiver e aos seus herdeiros, setenta por cento dos rendimentos líquidos", sendo que qualquer declaratário normal colocado na posição do real declaratário da referenciada declaração não consegue extrair mais do que nela se contém, inexistindo qualquer correspondência entre a expressão "herdeiros" e a expressão "descendentes", mesmo para um leigo em direito, todos sabendo que aqueles são os que sucedem na totalidade ou numa quota do património do falecido, estes são os que descendem de uma pessoa, como os filhos netos, bisnetos, trinetos e por aí adiante interpretação diversa faz indevida aplicação dos arts. 228.° e 230.° do C.C.
    V. Mesmo que se entendesse que a vontade real de ambos os declarantes era, à data do negócio, respectivamente, impor e vincular-se, a "dar à doadora, enquanto vida tiver, e aos seus descendentes, setenta por cento dos rendimentos líquidos", o que como dito, não resulta dos factos provados, ainda haveria que verificar se as razões determinantes da forma do negócio, no caso a certeza e segurança do comércio jurídico imobiliário, que remetem as partes para a celebração do negócio por escritura pública, nomeadamente para evitar a celebração de negócios nulos, porque proibidos por lei, não impediriam que a declaração valesse com esse sentido - interpretação diversa faz indevida aplicação do art. 230.° do C.C.
    VI. Se se entendesse que a vontade real de ambos os declarantes era, respectivamente, a de impor e vincular-se, a "dar à doadora, enquanto vida tiver, e aos seus descendentes, setenta por cento dos rendimentos líquidos ", o negócio teria que ser qualificado como um censo reservativo, contrato pelo qual uma pessoa cede um prédio, com simples reserva de certa pensão ou prestação anual, que deve ser paga pelos rendimentos do mesmo prédio, que à data da celebração do negócio estava proibido por lei - interpretação diversa faz indevida aplicação dos artigos 1706.° e 1707.° do Código Civil de Seabra.
    VII. A expressão "herdeiros" mencionada na escritura é uma noção legal que não precisa de ser integrada ou interpretada com recurso a quaisquer outros elementos que não sejam a letra da lei.
    VIII. Os factos que provam que a associação A. continuou a pagar desde a morte do único herdeiro da doadora, por longos anos os encargos a pessoas que se diziam representantes dos descendentes de B, não fazem constituir na esfera jurídica destas pessoas um direito a tal prestação, pois fontes de obrigações são somente os contratos, os negócios unilaterais, a gestão de negócios, o enriquecimento sem causa e a responsabilidade civil, como se menciona no Livro II, do Código Civil.
    IX. Entendendo o encargo imposto à donatária, como uma obrigação de prestar 70% dos rendimentos líquidos dos prédios a favor dos descendentes da doadora, está-se a transformar um encargo de prestação de rendimentos líquidos dos prédios doados de natureza temporária - estabelecido pelo prazo de duas vidas -, num contrato tendencialmente perpétuo, o que contraria o espírito do legislador, que, desde o princípio do século XX, tem vindo a terminar com todas as formas de propriedade imperfeita ou onerada com ónus de consignação de rendimentos de natureza perpétua, em que a exploração económica do uso e fruição competem a uma pessoa, que por si e seus sucessores (lato sensu) no direito ficam eternamente obrigadas a prestar parte fixa ou variável dos rendimentos obtidos com a titularidade da propriedade (também entendida "lato sensu") a outrem.
    Termos em que, pede,
    Deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que declare extinto o encargo imposto sobre a donatária de prestar setenta por cento dos rendimentos líquidos à doadora e por sua morte aos seus herdeiros, por inexistirem no presente sujeitos que tenham legitimidade para o recebimento de tal prestação, já que o único herdeiro da doadora faleceu na década de cinquenta do século passado.
    
    C, Réu nos autos de acção ordinária acima cotados, contra-alega, concluindo:
    I. A Recorrente não pode alterar o pedido ou a causa de pedir na sua alegação do recurso da sentença que conheceu do mérito da acção, devendo ater-se ao que formulou a final na p.i., a saber, o pedido de que o Tribunal declare prescrito o direito de B e seus herdeiros a cobrar o encargo que onera os prédios doados pelo seu não exercício há mais de quinze anos, o que é diferente de pedir, como veio fazer na mencionada alegação, que se declare extinto o encargo por inexistirem no presente sujeitos que tenham legitimidade para o recebimento de tal prestação.
    II. A sentença recorrida não tomou a doação dos autos por uma doação mortis causa, apenas tendo explorado essa hipótese para a eventualidade de se querer dar esse cariz ao negócio.
    III. A interpretação da declaração negocial no domínio do Código de Seabra pautava-se por princípios que passaram para o Código Civil de 1966 e o nosso Código Civil actual, segundo os quais a declaração vale conforme a vontade real do declarante, desde que conhecida do declaratário.
    IV. Ao invés do que sustenta a Recorrente, a vontade real da doadora foi que o encargo que impôs à donatária, aqui Recorrente, beneficiasse a sua pessoa e, por sua morte, os seus “日後子孫”, ou seja, os seus descendentes.
    V. Esta vontade da doadora era conhecida da Recorrente, como provam:
    - o facto de a própria Recorrente (como confessa no ponto 35 da sua alegação) ter escrito isso mesmo no livro de cumprimento do encargo que entregou à doadora para nele passar a registar-se os pagamentos periódicos respectivos, logo após a celebração da escritura de doação - mais concretamente, quatro dias depois;
    - o facto de ao longo de setenta anos, até 1995, ter continuado pontualmente a cumprir o encargo perante os “日後子孫”da doadora, muito para além da morte desta e da do seu único filho, que foi o progenitor do Recorrido, ocorrida na década de cinquenta do século passado, e
    - o facto de já em 1 de Agosto de 2000 e depois novamente em 10 de Janeiro de 2002, escassos quatro meses antes de propor a presente acção, ter escrito ao irmão mais velho do Recorrido, cabeça-de-casal da herança de D, mãe de ambos e viúva do filho da doadora, a solicitar uma contribuição de 70% para as despesas de demolição das construções implantadas nos prédios doados, por ser essa a proporção dos rendimentos líquidos dos referidos prédios que a Recorrente estava obrigada a pagar à herança.
    VI. Nos negócios formais, tanto no domínio do Código de Seabra como hoje, a vontade real do declarante que fosse conhecida do declaratário só não valeria se o seu sentido não tivesse um mínimo de correspondência no texto do documento, ainda que imperfeitamente expresso, ou, citando o Professor Manuel de Andrade, "se lá não estive[sse] reflectido, nem mesmo segundo os usos de linguagem próprios do autor da declaração".
    VIII. A doação dos autos era um negócio formal, mas existe, porém, razoável correspondência, e não apenas mínima, entre "herdeiros" e “日後子孫”ou "descendentes", sendo por isso plausível (atendendo a que a doadora e os representantes da Recorrente eram de etnia chinesa e não conheciam a língua portuguesa e considerando a mentalidade e cultura da sociedade chinesa de Macau de 1925) admitir que os outorgantes tenham usado a expressão “日後子孫”, quando fizeram as suas declarações perante o notário, e que o intérprete que interveio na escritura a tenha traduzido ao notário por "herdeiros" e voltado a retroverter para “日後子孫”, quando explicou o conteúdo do documento aos outorgantes para que o confirmassem.
    VIII. São impertinentes as referências da Recorrente a censo reservativo como a categoria de contrato que as partes poderiam ter celebrado, dado que o negócio realizado pela doadora com a Recorrente foi uma verdadeira doação e transmitiu integralmente a propriedade dos prédios para a Recorrente, enquanto o censo reservativo envolvia um desmembramento da propriedade e por isso não se distinguia bem da enfiteuse.
    IX. Foi, aliás, por o censo reservativo se confundir com a enfiteuse que o Código de Seabra o ilegalizou, e não por aquele contrato criar direitos reais menores com carácter de perpetuidade, já que isso era visto naquela época com naturalidade, como se retira de a enfiteuse - perpétua por natureza - ser acolhida sem reticências.
    X. São igualmente impertinentes as referências na alegação da Recorrente ao contrato de renda perpétua e de renda vitalícia, designadamente porque estes negócios jurídicos criam vinculações meramente obrigacionais, enquanto que a doação feita à Recorrente criou um ónus real, o que é evidenciado pelo simples facto do registo deste na Conservatória do Registo Predial, onde só se registam direitos reais de aquisição, de gozo, incluindo restrições ao direito de propriedade, e direitos reais de garantia.
    XI. A figura do direito moderno de que o encargo discutido nos autos mais se aproxima é a reserva do direito a certa quantia sobre os bens doados prevista no artigo 959°, n.º 1, do Código Civil de 1966 e no artigo 954°, n.º 1, do Código Civil de Macau. É verdade que o n.º 2 do artigo 959° do Código Civil de 1966 veio dispor que o direito reservado não se transmite aos herdeiros do doador, o que foi repetido no n.º 2 do artigo 954° do Código Civil de Macau. Contudo, é também verdade que o artigo 12° do diploma de 1966 estabeleceu, no seu n.º 1, o princípio de que a lei nova só dispõe para o futuro e esclareceu, no seu n.º 2, que quando a lei dispõe sobre os efeitos de quaisquer factos se entende, em caso de dúvida, que só visa os factos novos, tendo idênticas normas sido adoptadas no artigo 11°, n.ºs 1 e 2, do Código Civil de Macau. Nada há no artigo 959°, n.º 2, do Código de 1966 ou no artigo 954°, n.º 2, do Código actual que faça crer que a proibição por eles estabelecida de passar o direito reservado aos herdeiros do doador possa ter eficácia retroactiva.
    XII. Seja como for, a solução jurídica pedida para o caso concreto pela Recorrente, atentos os próprios termos em que peticionou, não exige apurar se o encargo imposto pela doadora à Recorrente é ou não perpétuo.
    XIII. Portanto, a problemática da perpetuidade, suscitada neste processo pela Recorrente, é absolutamente escusada.
    XIV. Com efeito, a Recorrente dirigiu-se ao tribunal pedindo que fosse declarado prescrito o direito da doadora e seus herdeiros a haverem 70% dos rendimentos líquidos dos prédios, em virtude do não exercício desse direito há mais de quinze anos.
    XV. Sobre esse pedido, a Mma. Juiz a quo decidiu que:
    - o negócio valia com o sentido de o encargo ser em benefício da doadora e, por sua morte, do seus “日後子孫”, ou seja, descendentes;
    - “日後子孫” abrange, pelo menos, os filhos e os netos;
    - há netos vivos da doadora, concretamente o Recorrido e seus irmãos (entre os quais se conta aquele a quem a Recorrente escreveu em 2000 e em 2002, solicitando uma contribuição de 70% para os custos de demolição das construções levantadas nos prédios doados);
    - o encargo foi sendo efectivamente pago até à morte de D, mãe do Recorrido, em 3 de Março de 1995;
    - por conseguinte, o direito a exigir o cumprimento do encargo não se extinguiu.
    
    XVI. É quanto basta para dirimir a questão sub judice.
    XVII. Saliente-se que o encargo não tem sido pago por contumácia da Recorrente apenas, e que esta, já depois da morte da mãe do Recorrido, foi interpelada para pagá-lo por cartas de 8 de Julho e 30 de Agosto de 1996 e de 20 de Maio de 2002 (v. documentos 2 e 5 juntos à contestação), e em 4 de Novembro de 2002, através da própria contestação (cf. artigo 62.º da contestação).
    Pelo exposto, diz,
    deve julgar-se improcedente, por não provado, o recurso e confirmar-se plenamente a sentença proferida em primeira instância.
    
    A A., A, recorreu ainda interlocutoriamente do despacho de flas 183, na parte em que lhe recusa a repetição da notificação do despacho de fls 176, pretendendo que o despacho proferido em língua chinesa lhe fosse notificado com tradução em português.
    Este recurso não foi contra alegado.
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
“De factos assentes
    A). A A. é uma associação reconhecida como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa.
    B). O prédio urbano n.º 12 da Travessa do Armazém Velho, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 8994, a fls. 296v do Livro B-25.
    C). O prédio urbano n.º 14 da Travessa do Armazém Velho, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 8995, a fls. 297 do Livro B-25.
    D). O prédio urbano n.º 16 da Travessa do Armazém Velho, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º 9115, a fls. 25v do Livro B-26.
    E). E têm o direito de propriedade aí registado a favor da A., pela inscrição n.º 38913G, que o adquiriu por doação onerosa ou com encargos, que lhe foi feita por B, viúva, por escritura de 29.12.1925, lavrada a fls. 61 do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.º 59, do notário público Carlos de Mello Leitão.
    F). Os prédios encontram-se inscritos na Matriz Predial do Concelho de Macau, respectivamente, sob os artigos n.º 30369, 30371,30372, todos com o valor matricial individual de MOP$72.000,00 (setenta e duas mil patacas).
    G). Os encargos, aceites pela A. no acto de doação, consistiam na obrigação de dar setenta por cento dos rendimentos líquidos do prédio à doadora B, e por sua morte, aos seus herdeiros, tal como consta da escritura exarada de fls. 61 a 63 do livro de notas para escrituras diversas n.º 59, n.º 2 Cartório Notarial.
    H). A referida B, atendendo à idade que tinha à data da doação (1925), cinquenta e tal anos, já deve ser falecida.
    I). A A. foi durante anos pagando setenta por cento das rendas auferidas a quem nos seus escritórios aparecia dizendo-se representante de E e que até ao primeiro trimestre de 1993, foi um indivíduo de nome Lei Pak Seng.
    J). B foi casada com E e ambos geraram um único filho de nome F.
    K). F foi casado com D também conhecida por D.
    L). Os filhos de F e D são G, C, ora réu, H, I e J
De base instrutória
    1. A partir da data referida na alínea J) dos Factos Assentes, a A. começou a entregar os rendimentos por meio de depósito na conta de D do Banco XX.
    2. Os referidos depósitos foram interrompidos após a morte de D.
    3. F faleceu por volta de década de 50 do século passado.
    4. O texto das páginas iniciais do livro de registo do cumprimento dos encargos referidos na alínea G) da matéria de facto assente, usa-se a expressão“日後子孫” “
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O caso
    Em 1925, B doou à A os prédios acima identificados com a obrigação de esta dar setenta por cento dos rendimentos líquidos dos prédios à doadora e por sua morte aos seus herdeiros, - importando saber qual o alcance dessa expressão, se só “herdeiros”, tout court, se “filhos e netos”, se “descendentes”, estes últimas, como defende a A., a partir da expressão constante do livro de registo de encargos - sendo certo que o que está em causa, neste momento, é saber se a A. está ou não obrigada a prestar tal obrigação, ou seja, se esse encargo se mantém.
    Para melhor compreensão da questão, esclareça-se desde já, em termos práticos, que, no fundo, o que a A. pretende é não pagar tais rendimentos ao R. ou outras pessoas que não sejam os herdeiros da doadora B e o R., C, neto da doadora, seu descendente, mas não herdeiro, - porquanto ele próprio reconhece (vd. contestação) que primeiro morreu a avó e só depois F, seu pai -, tem direito a tais rendimentos, por ser descendente, enquanto neto de B.
    Na verdade, quando B morre deixa um único herdeiro, F, pai do R. C, tal como decorre dos autos e reconhecido pelas partes.
    
    2. As questões
    Importa ter presente que a A. deixou cair o fundamento do pedido inicial com o fundamento na extinção da obrigação pela prescrição em virtude de um alegado não uso ou não satisfação da obrigação de pagar 70% dos rendimentos dos prédios aos beneficiários da doação, em detrimento do pedido conducente à procedência da acção por inexistência dos destinatários beneficiários daquele encargo, na sua óptica, por inexistirem herdeiros da doadora, razão por que atenderemos apenas às questões que vêm individualizadas nas alegações do recurso, não sem que se aborde a questão da alteração do pedido e causa de pedir, pois que suscitada nas contra alegações.
    
    Curar-se-á, assim, de analisar:
    - da alteração do pedido e da causa de pedir;
    - das regras interpretativas;
    - da natureza e qualificação do contrato e dos encargos;
    - Dos contornos, alcance e conformação da situação jurídica em presença
    - Extinção dos encargos perpétuos e censo reservativo; consequências

3. Da alteração do pedido ou da causa de pedir
Há uma questão que se coloca e vem colocada pelo R. C, questão se traduz em saber da possibilidade de alteração da causa de pedir em sede de alegações de recurso.
    A ora recorrente, a A, pediu na petição inicial que fosse "declarado prescrito o direito de B e seus herdeiros, a haver da A. setenta por cento dos rendimentos líquidos dos prédios urbanos n.ºs 12, 14 e 16 da Travessa do XX, descritos na Conservatória do Registo Predial de Macau sob os n.ºs 8994, 8995 e 9115, pelo seu não exercício por prazo superior a quinze anos, para todos os efeitos legais, nomeadamente para efeitos de cancelar o encargo na Conservatória do Registo Predial de Macau"
    E se bem observarmos, ainda que em termos algo dissimulados, a A. começou a enveredar por outro caminho, passando a dizer que aquele encargo não é perpétuo e se extinguiu com a morte do último dos herdeiros da doadora, se existiu.
    A tónica passa a ser então a da falta de beneficiários daquele encargo, alegando um desconhecimento sobre os herdeiros de B e ainda que F fosse o pai do R,, C.
    
    Agora, em sede de alegações do recurso da sentença que conheceu do mérito da causa em primeira instância, veio pedir que se "declare extinto o encargo imposto sobre a donatária de prestar setenta por cento dos rendimentos líquidos à doadora e por sua morte aos seus herdeiros, por inexistirem no presente sujeitos que tenham legitimidade para o recebimento de tal prestação, pois que o único herdeiro da doadora já faleceu na década de cinquenta do século passado."
    Pretende o recorrido que se tenha o pedido ora formulado por inadmissível, por não consentido , face ao disposto no artigo 217º do CPC.
    É verdade que são evidentes as diferenças: primeiro a recorrente quis que se considerasse prescrito o direito a exigir o cumprimento do encargo pelo não exercício desse direito há mais de quinze anos; agora, passou a querer que o encargo se declare extinto por não haver mais quem possa exigir o seu cumprimento.
    Portanto, primeiro, sustenta-se que o direito deixou de ser exercido por quem pode fazê-lo, depois e afinal que não há quem tenha legitimidade para o exercer.
    E como justificação para essa mudança, vai adiantando o recorrido que tal mudança só pode explicar-se pela circunstância de a discussão da matéria de facto ter trazido à luz do dia uma realidade muito diferente do que a recorrente arguiu na p.i., qual seja a da acção ter sido dirigida contra "Herdeiros Desconhecidos de B", que havia mais de sessenta anos que não pagava o encargo da doação onerosa feita por B a seu favor. Leia-se o artigo 11.º da p.i.
    Ora, por ter ficado provado pela resposta ao quesito 2.° da Base Instrutória que a recorrente pagou o encargo até à morte de D em 3 de Março de 1995 e constarem dos autos cartas, não repudiadas pela recorrente, datadas de 1 de Agosto de 2001 e 10 de Janeiro de 2002, em que esta se dirige a G, cabeça-de-casal da herança de D, pedindo-lhe que pague 70% dos custos da demolição de construções implantadas nos prédios doados que havia sido imposta por decisão dos Serviços de Obras Públicas, vindo os autos a mostrar que o encargo continuou a ser exigido e pago pela recorrente ao longo do tempo a quem se foi apresentando e sendo reconhecido pela recorrente, como titular do direito à sua cobrança, mostrando os autos que cerca de quatro meses antes de instaurar a acção de "prescrição de direitos" contra "incertos", a recorrente endereçou a uma pessoa concreta um pedido de que arcasse com 70% dos custos de demolição de construções implantadas nos prédios doados, com a justificação de que o visado representava os indivíduos que tinham direito à percepção de 70% dos rendimentos dos prédios, todo esse circunstancialismo, para além de uma condenação por má-fé, ainda que circunscrita ao encobrimento de documentos, conforme despacho de fls. 263, não deixou de motivar a necessidade de desenvolver em sede de recurso as razões dadas na réplica, impondo-se mais um acerto, agora na conclusão da sua alegação de recurso, o que é, porém, proibido pelas regras sobre a estabilidade da instância. Deste modo, conclui, devia a recorrente ter pedido a final o mesmo que pediu na p.i., ou seja, a prescrição, por não exercício continuado há mais de quinze anos, do direito a exigir o cumprimento do encargo imposto com a doação dos prédios.
    Não obstante ser patente o caminho sinuoso trilhado pela recorrente, estamos em crer que essa inflexão, tanto do pedido, como da causa de pedir, surge logo na réplica, aliás, como o próprio recorrido, no fundo, reconhece, mais não traduzindo o desenvolvimento das alegações da posição anteriormente manifestada, no sentido da extinção do encargo por inexistência de herdeiros beneficiários do mesmo, não se podendo ter aquela obrigação ou encargo como perpétuo, alteração essa que não deixa de ser consentida pelo artigo 217º, n.º 1 do CPC.
    Conhecer-se-á, pois, do pedido, tal como formulado vem.
    
    4. Das regras interpretativas
    Está em causa a interpretação de uma doação que foi feita com o estabelecimento de um encargo para a donatária. Chamemos-lhe assim, por ora.
    Há que interpretar essa doação ocorrida em 1925.
    E desde logo se coloca uma questão de aplicação da lei no tempo, na certeza de que lhe sobrevieram já as estipulações de três códigos civis.
    O contrato outorgado no domínio de uma lei antiga pode ter de cumprir-se no domínio da nova lei; tal como um casamento celebrado no domínio de uma lei que perdura no período de vigência da nova lei; e importa saber se os efeitos que perduram para além do termo de uma lei, deverão ser regulados por esta ou pela nova lei.
E é precisamente a questão dos efeitos dos factos passados que se produzam ou perdurem no domínio da lei nova que constituem o fulcro da regulamentação da validade da lei no tempo.
A solução da questão consta em geral do Código Civil, art. 11º: "A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular.”
O princípio geral é, assim, o da não retroactividade da lei. Esta não se aplica aos factos ou seus efeitos já produzidos.
    É assim que as obrigações decorrentes de um contrato hão-de ser reguladas pela lei que vigorava ao tempo da sua celebração, bem assim como a determinação do seu conteúdo e alcance.
    A tese de que os contratos são, no seu todo, regulados pela lei do tempo em que foram celebrados tem suporte máximo na doutrina do Prof. Baptista Machado, segundo a qual, “sendo o contrato um acto de previsão e um acto de autonomia negocial, as partes tomam em conta, quando o celebram, a lei que então se acha em vigor e que é em função dessa lei que elas realizam o equilíbrio das suas convenções”. 1
    Em particular, como é caso dos autos, quando deva sobrelevar a autonomia e vontade das partes e não já quando se trate de contratos de natureza vinculística ou de uma forte componente de regulação e intervenção social.
    Regulava ao tempo o Código Civil de 1867 ou de Seabra (aprovado pelo artigo 1.º da Carta de Lei de 1/7/1867).
    E este Código preceituava no artigo 684º que é nulo o contrato sempre que dos seus termos, natureza e circunstâncias, ou do uso, costume ou lei, se não possa depreender, qual fosse a intenção ou vontade dos contraentes sobre o objecto principal do mesmo contrato e o artigo 685º, numa antecipação do actual regime (artigo 229º do CC vigente) que se a dúvida recair sobre os acessórios do contrato, e não se puder resolver pela regra estabelecida o artigo antecedente, observar-se-ão as seguintes regras:
    1ª se o contrato for gratuito, resolver-se-á a dúvida pela menor transmissão de direitos e interesse;
    2ª se o contrato for oneroso, resolver-se-á a dúvida pela maior reciprocuidade de interesses.
    Há, pois, que procurar ir ao encontro da vontade dos contraentes, o que se ensaiará em vista do circunstancialismo que vem comprovado e do enquadramento sistemático dos encargos e disposições apostas na doação.
    
    A este propósito e sobre tal artigo escreveu o Professor Manuel de Andrade:
    "Abraçamos quanto à maior parte dos negócios jurídicos a teoria da impressão do destinatário ... Segundo nos parece, o declaratário deve naturalmente perguntar-se, quando se trata de fixar o sentido da respectiva declaração negocial, o que quis dizer o declarante. Mas para obter a resposta não deve ser obrigado a empenhar toda a diligência e inteligência possível, mas só a duma pessoa razoável - isto é, mediana, normal -, que estivesse na posição concreta em que ele próprio está. .. Na interpretação dos negócios jurídicos prevalece pois - a nosso juízo aquele sentido objectivo que se obtenha do ponto de vista do declaratário concreto, mas supondo-o uma pessoa razoável (e não mais do que isso). Resta-nos, todavia, para complemento da doutrina geral propugnada, acrescentar uma nota, que também é de grande importância. Trata-se do seguinte: quando o declaratário, porém, acerte com o sentido correspondente à vontade real do declarante, embora diverso daquele outro, com tal sentido valerá o negócio; isto mesmo em casos de falsa demonstratio - ou seja, de emprego de termos inteiramente inadequados, até segundo a linguagem habitual, porventura isotérica, do declarante ... A nossa doutrina geral tem que ser modificada quanto a certos negócios jurídicos... Vale quanto [aos negócios formais], dum modo geral, o sentido objectivo correspondente à impressão do destinatário, mas é preciso que tal sentido encontre nos próprios termos da declaração formalizada (documento) uma qualquer expressão, embora imperfeita, sendo inoperante se lá não estiver reflectido, nem mesmo segundo os usos de linguagem próprios do autor da declaração." 2
    
    5. Da qualificação do contrato
    A recorrente vinca a ideia de que a doação não foi feita mortis causa, ponto que não deixa de ser realçado na sentença recorrida, visando-se com essa alusão referir as limitações que decorrem dessa liberdade negocial, tendo por escopo as reservas que a limitam em termos de garantia dos meios de subsistência ao doador, como flui dos artigos 1460º a 1463º do Código de Seabra.
    Ainda que com um fito perfeitamente dispensável, não se deixa de compreender essa referência, visando-se uma melhor compreensão do regime aplicável e do alcance pretendido.
    Parece não haver dúvida, existindo consenso quanto a esse aspecto, que estamos perante uma doação onerosa, face aos termos da apontada escritura de fls 118 e segs e às disposições contidas nos artigos 1452º e 1454, § 2º do Código de Seabra, na medida em que ela traz consigo certos encargos.
    
    6. Dos contornos, alcance e conformação da situação jurídica em presença face à forma do contrato
    Partindo da diferenciação entre a expressão “herdeiros” e a expressão "descendentes", mesmo para um leigo em direito, desprezando a expressão “herdeiros” usada na escritura, a recorrente alega que se a vontade real da doadora, conhecida da donatária, era a de dar à doadora. enquanto vida tiver, e aos seus descendentes -“日後子孫” - setenta por cento dos rendimentos líquidos", se as razões determinantes da forma do negócio não impediriam que a declaração valesse com esse sentido, então o negócio teria que ser qualificado como um censo reservativo.
    Antes de analisarmos este argumento, vejamos o alcance das razões de forma de um dado negócio, isto é, se se pode conformar um sentido diferente daquele que foi expressamente utilizado na escritura, com um sentido preciso em termos técnico-jurídicos e concluir que afinal a expressão “herdeiros”, expressão usada na escritura, significa algo mais e passa a significar “filhos e netos” com o sentido de descendentes, vindouros.
    Cremos que não.
    É verdade que o sentido da declaração pode ser comprovado por outros meios, tal como acontece até com as cláusulas acessórias, entendendo-se pacificamente que elas podem ser comprovadas por outros elementos desde que não abrangidas pelas razões que impõem uma determinada solenidade, o que resultava do art. 2427º do Código de Seabra e hoje está plasmado no art. 213º do CC.
    Só que essa não será a situação dos autos.
    Para o estabelecimento de um encargo para o donatário sobre o objecto da doação, ainda que de cláusula acessória, modal, se trate, incidindo sobre coisa imóvel, afigura-se não ser dispensável a razão de forma que rodeou a celebração da escritura pública. Trata-se, na verdade de um encargo que até deve ser levado ao registo.3
    Esta orientação e obrigatoriedade foi cumprida no caso dos autos, observando-se – cfr. fls 11 – que ficou registado exactamente o que constava da escritura, ou seja que a donatária fica onerada com a obrigação de dar 70% dos rendimentos do prédio à doadora B e depois da sua morte aos seus herdeiros.
    Esta enunciação e sentido não podia ser mais claro e não se vê como se pode agora defender que houve erro e que o declarado não corresponde à vontade dos declarantes e declaratários intervenientes na escritura, sem que o mesmo se comprove.
    Para mais, quando consta da escritura expressamente que a donatária se obriga a dar à doadora, enquanto viva e aos seus herdeiros setenta por cento dos rendimentos líquidos e, mais adiante, pelo segundo outorgante foi dito que aceita agradecido em nome da associação esta doação e se obriga a entregar à doadora setenta por cento dos rendimentos líquidos, nas condições atraz indicadas, ficando com os respectivos encargos.
    Tal escritura foi lida em voz alta e explicada pelo intérprete e confirmada pelos outorgantes.
    Atente-se que não se alega erro, pretendendo-se apenas que a expressão “herdeiros” tem um conceito preciso e um vocábulo próprio, tanto em português como em chinês, tem um conceito diferente daquele que o recorrido pretende ali contido.
    De certa forma nem sequer está aqui uma questão de interpretação, já que um conceito não se reconduz ao outro.
    Uma das razões da celebração da escritura pressupõe uma razão de reflexão e de compreensão do alcance daquilo que se declara e é exactamente por isso que ela é celebrada perante um notário, pessoa devidamente habilitada para inteirar os outorgantes do alcance e efeitos do contrato que assinam.
    O único facto provado, com eventual relevância para a determinação da vontade real de uma das partes é a de que o texto das páginas iniciais do livro de registo de cumprimento dos encargos referidos na alínea G) [referimo-nos aos encargos mencionados na escritura] da matéria de facto assente, usa a expressão "日後子孫" (posteriores filhos e netos).
    Mas por que razão se haverá de privilegiar um documento particular, onde esta expressão foi aposta por um quidem, não necessariamente representante da associação, num qualquer documento interno de notas de pagamentos, não necessariamente do conhecimento da beneficiária do encargo, em detrimento daquela expressão aposta num documento solene e formalmente garantístico e tradutor da vontade dos outorgantes?
    Por que razão se há-de garantir que a declarante e declaratária pretenderam dizer descendentes na escritura, enquanto escreveram herdeiros e não garantir que o funcionário ao escrever descendentes no livro de registo interno, escreveu descendentes quando queria dizer herdeiros?
    Dizer, como se diz na sentença, que a expressão herdeiros usada na escritura não tem o sentido estrito e técnico jurídico daquilo que a expressão significa afigura-se carecer de comprovação que, sinceramente, não se enxerga.
    Dizer que com muita probabilidade o que se passou na escritura é que foi usada a expressão filhos e netos e não herdeiros, palavras distintas, tanto em português como em chinês, como impressivamente se afirma nas alegações do recorrido, é mera conjectura.
    Em suma, no fundo, não se coloca aqui um problema de interpretação do contrato, sendo que o que o recorrido defende é que o que ficou dito não foi aquilo que a declarante B, sua avó, quis dizer.
    E essa divergência ou erro não vem comprovado, alegado, sequer.
    Mas ainda que por mera hipótese académica se admitisse que estaríamos perante um problema de interpretação, de determinação do alcance pretendido com o uso daquela expressão “herdeiros”, então, aí, teria de funcionar, na dúvida, a regra de um equilíbrio das prestações por se tratar de um negócio oneroso, não havendo dúvidas de que a solução mais razoável passaria por uma limitação dos beneficiários à situação dos herdeiros e não a uma perpetuação desse benefício, vista a onerosidade daí acrescida e a própria intenção do legislador em limitar as situações onerosas perpétuas.
    
    7. Do argumento que se extrai da extinção dos encargos perpétuos
    Procura a recorrente reforçar a sua pretensão a partir do argumento extraído da abolição dos censos reservativos.
    Dispunha o artigo 1706.° e ss. do Código de Seabra:
    Diz-se censo reservativo o contrato por que qualquer pessoa cede algum prédio, com simples reserva de certa pensão ou prestação anual, que deve ser paga pelos rendimentos do mesmo prédio.
    E o artigo 1707.°:
    Ficam proibidos para o futuro os contratos de censo reservativo; os que se estipularem com este nome serão havidos como enfitêuticos.
    Ou seja, à data em que foi celebrado o negócio de doação estava este contrato proibido por lei - contratos esses que foram definitivamente abolidos nos termos do artigo 1518º do CC pré-vigente -, donde não fazer sentido que por via do contrato, contrato esse celebrado por escritura pública, se houvesse pretendido um contrato que a lei já não permitia.
    Só não seria assim, se se tivesse o contrato em presença como não constitutivo de um ónus real, havendo que retirar do conceito desta figura a proximidade ao das rendas perpétuas – cfr. art. 1231º do CC pré-vigente de 1967. A dimensão real da situação resultante dos contratos de censo residia na afectação de um imóvel à garantia do censo, na medida em que o prédio afectado respondia pelo pagamento da prestação, independentemente de quem quer que fosse o seu dono.4
    Então das duas uma: ou estaríamos perante uma situação inerente (à coisa) e perpétua e, como se viu, proibida; ou não estaríamos perante um censo reservativo, como pretende o recorrido e, aí, configurar-se-ia tão somente como um contrato com estabelecimento de uma obrigação vinculativa para o donatário, propter rem, sendo que nesse caso, a expressão descendentes tem de sofrer uma outra limitação em relação ao alcance da utilizada no livro de pagamento dos encargos, reconduzindo-se apenas aos filhos e netos, tout court.
    Por qualquer das vias sempre teremos de afastar uma aproximação à tese do recorrido de forma a sufragar o entendimento que conduza à manutenção daquele pagamento a que a A. se procura eximir.
    
    8. Ainda do censo reservativo...
    Diz o recorrido que não será lícita a ilação da recorrente de que o encargo dos autos não podia ter carregado os prédios transmitidos em benefício da doadora e seus descendentes porque isso equivaleria a um encargo perpétuo, o que redundava num censo reservativo, àquela época proibido. É que, por um lado,“日後子孫”pode significar os descendentes numa sucessão múltipla ou apenas filhos e netos, hipótese em que a designação é finita; por outro lado, havia situações de perpetuidade de restrições ao direito de propriedade que eram naturalmente admitidas no domínio do Código de Seabra e, portanto, a introdução dum elemento de perpetuidade num negócio real não o subsumia obrigatoriamente à figura do censo reservativo, mais a mais sendo este proibido; a proibição do censo reservativo nada tinha a ver com a perpetuidade do encargo, aspecto que de todo não repugnava ao legislador naquele tempo - veja-se que a enfiteuse era perpétua e plenamente aceite no tempo do Código de Seabra - mas prendia-se antes com o facto de o censo reservativo não se distinguir da enfiteuse e ser, por isso, fonte de confusão que o legislador quis eliminar.
    Não estamos seguros desta asserção.
    O censo reservativo não se traduzia num desmembramento da propriedade e embora próximo não se confundia com a enfiteuse. Naquela, a pensão ou prestação anual devia ser paga pelos frutos ou rendimentos do prédio, não havendo aí um desmembramento dos domínios directo e útil. Donde, tratar-se de um ónus real e não já de uma qualquer forma de direito real menor. A propriedade garante aí o pagamento de uma pensão que deve ser paga em frutos ou dinheiro pelos rendimentos do prédio, como diz Cunha Gonçalves.5
    O contrato celebrado entre a doadora e a donatária não operou um desmembramento da propriedade.
    E não podendo ser um censo reservativo que estava proibido, não se pode pretender que se tratava de uma outra figura que, no fundo, ainda com outro nome tivesse as caraterísticas daquele instituto.
    Mesmo que se considerasse que o que se verificou foi uma doação onerosa, considerando até que não foi estabelecida uma prestação certa, mas variável em função dos rendimentos do prédio, é um facto que o direito reservado ao doador não se transmite aos herdeiros deste como flui do actual n.º 2 do artigo 954º do CC e fluía do n.º 2 do artigo 959° do Código Civil de 1966.
    É certo que essa reserva não existia na lei anterior, mas se assim é, então esbarramos com a questão da perpetuidade de um encargo, sendo clara a intenção da sua abolição, proibindo-a o legislador nos censos reservativos, vindo a proibir as rendas perpétuas, os próprios direitos reais que assumiam tal natureza, com é o caso da enfiteuse.
    Ainda que se trate de um instituto diferente, no caso presente, falamos da doação modal, a que o C. de Seabra chamava doação onerosa no art. 1454º, § 3º e 1455º, muito menos sentido faria abolir a perpetuidade num ónus real, como seria o censo reservativo e mantê-lo, a título de encargo, em sede obrigacional, pois que muito mais se justificaria ali, vista exactamente a sequela e a inerência daquele e como bem diz o recorrido, mantendo-se a perpetuidade em inúmeras situações reais.
    Tal preocupação recorta-se até no Direito Comparado e é assim que o direito reservado nas doações já não se transmitia aos herdeiros do doador no CC francês, italiano e espanhol e italiano de 1865, como nos dão conta Pires de Lima e A. Varela.6
    
    9. Da pretensa correspondência entre "herdeiros" e "descendentes"
    Pretende o recorrido uma aproximação entre ambas as expressões, dizendo que, como judiciosamente nota a Mma. Juiz a quo, o artigo 1969.° do Código de Seabra consagra os descendentes como primeira classe de herdeiros na sucessão legítima, especificando depois o artigo 1985.° do mesmo Código que são descendentes os filhos legítimos e seus descendentes.
    Com todo o respeito, mas deste argumento nada se retira, antes pelo contrário se reforça a ideia de que herdeiros e descendentes são realidades diferentes, tanto na linguagem comum, como na linguagem jurídica, seja na lei velha, seja na lei actual.
    
    10. Outros factos que pretensamente sustentariam aquela recondução de herdeiros a descendentes
    Nem sequer o eventual pagamento do encargo indevido não pode significar, sem mais, como pretende o recorrido o reconhecimento da obrigação de prestar; tal pode ficar a dever-se exactamente a um desconhecimento dos herdeiros, bem podendo a Associação ter presumido que as pessoas que se apresentavam a beneficiar daquele encargo eram os herdeiros da doadora.
    
    11. Em suma,
    será de declarar extinto o encargo imposto numa doação feita em 1925 à Associação, autora nos autos, encargo que se traduzia na obrigação desta pagar 70% dos rendimentos líquidos de dados prédios à doadora, enquanto viva fosse e aos seus herdeiros, porque o neto, réu na acção, que se arroga tal direito, não detém tal qualidade.
    Isto, porque
    - Foi feita uma doação em que se estabeleceu expressamente um encargo estendido aos herdeiros da doadora;
    - A expressão herdeiros não se confunde com a de descendentes ou muito menos com a de filhos e netos;
    - Não vindo provado erro da declarante;
    - Um mero registo no livro de encargos de uma expressão alusiva a descendentes não é razão bastante para inverter o sentido da expressão usada na escritura;
    - Havendo dúvida, as regras interpretativas não deixarão de apontar para uma opção por um encargo como beneficiando apenas os herdeiros, solução que não deixa de corresponder a um maior equilíbrio das prestações;
    - A configurar-se uma situação de perpetuidade, por integrada uma situação de censo reservativo, tal contrato estava proibido;
    - A configurar-se uma situação de doação modal com carácter perpétuo essa conformação não deixaria de ter as mesmas consequências e traduzir a mesma impossibiliddade daquele ónus real;
    - Registando-se a preocupação do legislador em pôr tendencialmente fim às situações reais perpétuas em termos de ónus reais ou situações similares;
    - Limitando-se o encargo apenas aos filhos e netos, tal deixa de ter correspondência com os elementos probatórios em que o interessado recorrido procura radicar o seu direito,
    Por todas as aludidas razões, nos termos e fundamentos expostos, somos a julgar procedente o recurso e por errada interpretação dos factos e aplicação da lei revogar-se-á sentença proferida.
    12. Quanto ao recurso interlocutório
    Aqui chegados, um apontamento apenas para concluir no sentido da falta de interesse processual no conhecimento do recurso interlocutório.
    Não cabe a este tribunal fixar o direito e interpretá-lo com valor fora do processo. Ora, a questão que se colocava, se o despacho proferido numa língua oficial, no caso em chinês, - tendo sido requerido o processamento em língua portuguesa – tinha de ser traduzido para o mandatário, face ao desfecho da acção e ao que alegado foi não se traduz visivelmente em nenhum prejuízo para a A. Esta não alegou nem tal se vislumbra em que medida ficou prejudicada ou qual o acto que deixou de praticar, compreender ou impugnar.
    Assim sendo e porque a questão se configura apenas como a definição de um princípio ou de uma interpretação sem projecção no processo, para mais, face ao desfecho da acção, tem-se o recurso por prejudicado.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em:
    - considerar o recurso interlocutório prejudicado nos termos vistos;
    - em conceder provimento ao recurso final, revogando a decisão recorrida e declarando extinto o encargo imposto no sentido de a A, pagar os aludidos 70% dos rendimentos dos prédios referidos aos herdeiros da doadora por inexistência dos mesmos nos termos apostos à doação .
    Custas pelo recorrido quanto ao recurso final e sem custas o recurso interlocutório.
Macau, 9 de Fevereiro de 2012,


_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)

1 - Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, 1968, pág. 108
2 - Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II, 4ª Reimpressão, Almedina, 1974, págs. 311, 312 e 315

3 - Cfr. Oliveira Ascensão, Dto Civil, Reai,, Coimbra editora, 5ª ed., 587 e 588
4 Pinto Duarte, Curso de Dtos Reais,Principia, 2ª ed., 211
5 - Da Propriedade e da Posse, 147
6 - CC Anot. II , anotação ao art. 959º
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