Processo n.º 228/2011 Data do acórdão: 2011-12-15
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– processo contravencional
– auto de notícia
– contestação
– fundamentação fáctica da sentença
– enumeração de factos não provados
– art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal
– tema probando
– objecto do processo
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
– matéria de facto
– afirmações jurídicas
– afirmações conclusivas
– Lei das Relações de Trabalho
– não pagamento atempado da remuneração de base
– trabalho extraordinário
– art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008
– art.o 59.o, n.o 1, alínea 2), da Lei n.o 7/2008
– art.o 62.o, n.o 3, da Lei n.o 7/2008
– art.o 37.o, n.o 2, da Lei n.o 7/2008
S U M Á R I O
1. Como o tribunal a quo só afirmou na sentença que “não há outros factos importantes constantes da acusação por provar”, depois de ter já especificado concretamente quais os factos tidos por provados, os quais, por sua vez, se referem à tese acusatória materialmente vertida no auto de notícia que tinha levado à instauração do processo contravencional subjacente à presente lide recursória, é de dar por cumprido pelo mesmo tribunal o seu dever de enumeração de factos não provados exigido pelo n.o 2 do art.o 355.o do Código de Processo Penal vigente (CPP), embora feita in casu através daquela fórmula genérica.
2. Como ante o conteúdo da fundamentação fáctica da sentença recorrida, em confronto do conteúdo do auto de notícia que, à falta da apresentação da contestação pela arguida, delimitou já todo o tema probando objecto do processo em tudo que fosse desfavorável à própria arguida recorrente, já se pode reconhecer que o tribunal a quo já investigou, sem qualquer lacuna, todo esse objecto probando, não se pode dar por verificado o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP.
3. Como depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da sentença recorrida, não se vislumbra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o tribunal a quo seja patentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora de quaisquer normas relativas à prova tarifada ou de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos, não se verifica também o vício de erro notório na apreciação da prova referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP.
4. A matéria de facto deve ser depurada de afirmações de natureza jurídica ou conclusiva, as quais, por isso, devem ser tidas como não escritas na fundamentação fáctica da sentença recorrida.
5. Verifica-se a violação, por parte da arguida, e em relação ao trabalhador dos autos, do disposto no art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (Lei das Relações de Trabalho), quando esta não pagou, atempadamente, parte da remuneração de base devida ao mesmo trabalhador, in casu, concretamente correspondente a uma hora, por dia, de trabalho extraordinário prestado por este fora do tempo normal de trabalho (cfr. os art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma Lei).
6. Na verdade, a contravenção efectivamente praticada pela arguida não consiste propriamente no incumprimento das regras de cálculo da remuneração do trabalho extraordinário plasmadas no art.o 37.o, n.o 2, dessa Lei, mas sim na negação do direito do trabalhador à remuneração do trabalho extraordinário como parte integrante da remuneração de base.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 228/2011
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida a fls. 306 a 311 dos autos de Processo de Contravenção Laboral n.° CR1-10-0044-LCT do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, a arguida A, ficou condenada, tal como inicialmente acusada, pela autoria material de uma contravenção p. e p. conjugadamente pelos art.os 37.o, n.o 2, e 85.o, n.o 3, alínea 2), da Lei n.o 7/2008, de 18 de Agosto (Lei das Relações de Trabalho, doravante abreviada como sendo LRT), em MOP5.800,00 (cinco mil e oitocentas patacas) de multa, e no pagamento de MOP36.164,60 (trinta e seis mil, cento e sessenta e quatro patacas e sessenta avos) de indemnização pecuniária ao trabalhador ofendido B, com juros legais desde o trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento.
Inconformada, veio a arguida recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), e concluiu a sua motivação (apresentada a fls. 351 a 367 dos presentes autos correspondentes) de moldes materialmente seguintes, a fim de rogar a sua absolvição da imputada contravenção e da quantia indemnizatória fixada na sentença:
– 1) a sentença recorrida dá como assente que o trabalhador B prestou trabalho extraordinário não remunerado;
– 2) aquele trabalhador comprometeu-se contratualmente, perante a ora recorrente, a prestar oito horas de trabalho diário e 48 horas de trabalho semanal;
– 3) o trabalhador nunca excedeu as 48 horas de trabalho semanais;
– 4) desde o dia em que foi contratado, o trabalhador trabalhou em turnos de nove horas, com uma hora de refeição durante a qual podia ausentar-se livremente da empresa;
– 5) essa hora de refeição não constitui período de prestação laboral;
– 6) ao condenar a recorrente na prática da contravenção que lhe é imputada e a pagar ao trabalhador a quantia de MOP36.164,60, acrescida de juros, a sentença parte do princípio, errado, de que aquele trabalhador só devia prestar sete horas de trabalho diárias, em manifesta e flagrante oposição face ao teor literal do contrato de trabalho;
– 7) nos termos do mesmo contrato de trabalho, só pode haver lugar a horas extraordinárias quando o trabalhador exceda as 48 horas de trabalho semanais, o que não é o caso;
– 8) não houve, no caso do trabalhador B, qualquer alteração dos termos da prestação de trabalho, desde que foi contratado;
– 9) B recebia a sua remuneração ao mês, e não à hora, não tendo havido qualquer diminuição da sua remuneração de base, directa ou indirecta, desde o dia em que foi contratado até ao dia em que abandonou a empresa;
– 10) a sentença recorrida fez uma errada interpretação e aplicação do disposto nos art.os 33.o, 36.o, 37.o, 59.o e 85.o da LRT;
– 11) a matéria de facto provada também é insuficiente para a decisão tomada, porquanto não se encontra provado que ao trabalhador tenha, pela recorrente, sido entregue a “Benefit Guide” de Dezembro de 2006, à data da contratação ou em momento posterior, o que constitui fundamento de recurso, à luz do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal vigente (CPP);
– 12) da fundamentação de direito consta que ao trabalhador B foi, pelo Departamento de Recursos Humanos, aquando da assinatura do contrato de trabalho, entregue a “Benefit Guide” de Dezembro de 2006;
– 13) este facto não consta nem da acusação, nem da fundamentação de facto, sendo indispensável para a decisão, o que fez a sentença incorrer na nulidade estatuída no art.o 360.o, alínea b), do CPP;
– 14) a fundamentação de facto (parágrafos 3, 5, 6, 8 e 9) está eivada de matéria de direito e juízo de valor, de que deverá ser depurada, sendo os “factos” assim inquinados dados como não escritos, em cumprimento do art.o 355.o, n.o 2, do CPP;
– 15) a sentença é nula, ao limitar-se a considerar que “Não há outros factos importantes por provar”, por violar o art.o 360.o, alínea a), do CPP;
– 16) a sentença incorre em erro notório na apreciação da prova, ao aplicar ao caso a “Benefit Guide” de Dezembro de 2006 (parágrafo 3 dos factos provados), o que é fundamento de recurso, à luz do art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP;
– 17) a sentença incorre ainda em erro notório na apreciação da prova, ao ignorar o facto de que o trabalhador podia, nos intervalos de descanso, ausentar-se livremente do seu local de trabalho, facto que foi suscitado na discussão da causa e demonstrado por prova testemunhal;
– 18) a sentença encontra-se também ferida de insuficiência da matéria de facto para a decisão, o que constitui fundamento de recurso, à luz do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP, ao não ter indagado sobre qual o intervalo para descanso aplicável ao abrigo do “Benefit Guide” de Dezembro de 2006, sendo que a sentença, acriticamente, se baseia no facto de tal intervalo ser de uma hora diária;
– 19) porém, acriticamente, a sentença baseia-se no facto de tal intervalo ser de uma hora diária;
– 20) a consideração de tal facto gera, também, a nulidade estatuída no art.o 360.o, alínea b), do CPP, por ter condenado por factos não descritos na acusação.
Ao recurso, respondeu o Ministério Público (a fls. 369 a 370v) no sentido de improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 386 a 389v), pugnando pela manutenção do julgado.
Feito o exame preliminar, corridos os vistos, e com audiência feita nesta Segunda Instância (em que a arguida ficou advertida da eventualidade de alteração oficiosa da qualificação jurídica dos factos como integrando uma contravenção p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT), cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Do exame dos autos, fluem os seguintes elementos pertinentes à decisão do recurso:
Consta da fundamentação fáctica da sentença ora recorrida, o seguinte conteúdo, materialmente (escrito originalmente em chinês, e ora traduzido pelo relator):
– Discutida a causa, provaram-se os seguintes factos:
– o trabalhador B foi contratado pela A para no período de 16 de Julho de 2007 a 28 de Fevereiro de 2010, trabalhar como cozinheiro no A, sendo que a remuneração mensal do trabalho foi de MOP10.000,02 no período de 16 de Julho de 2007 a 31 de Maio de 2008, e foi de MOP10.600,01 no período de 1 de Junho de 2008 a 28 de Fevereiro de 2010;
– a “Benefit Guide” (guia de benefícios), actualizada em 26 de Dezembro de 2006, dos trabalhadores de categoria F da arguida, revela que o tempo de trabalho dos trabalhadores dessa categoria é de 48 horas de trabalho por semana (incluindo o tempo de refeição), e de seis dias de trabalho por semana, ou seja, oito horas de trabalho por dia (incluindo o tempo de refeição);
– o trabalhador acima referido é de categoria F, e a mencionada “Benefit Guide” já é aplicável aquando da assinatura do contrato de trabalho e do ingresso desse trabalhador;
– contudo, no período da duração contratual desse trabalhador, a arguida, unilateralmente, afectou-o às escalas de turno de nove horas por dia (nelas se incluindo uma hora como tempo para refeição), ou seja, às escalas de prestação de oito horas de trabalho efectivo por dia, sem se contar o tempo para refeição;
– a arguida, sem obter o consentimento do trabalhador, actualizou de novo, e unilateralmente, em 3 de Agosto de 2007, tal “Benefit Guide”, no sentido de alterar o tempo de trabalho de “48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição)” para “48 horas por semana”, mas não procedeu ao correspectivo aumento da remuneração do referido trabalhador nem lhe atribuiu a remuneração de trabalho extraordinário naquela uma hora, o que diminuiu indirectamente a remuneração desse trabalhador;
– o referido trabalhador, no período de 16 de Julho de 2007 a 28 de Fevereiro de 2010, prestou diariamente uma hora de trabalho extraordinário para além do tempo de trabalho normal;
– no período de 16 de Julho de 2007 a 31 de Dezembro de 2008, a remuneração do trabalho extraordinário acordada entre a arguida e o referido trabalhador seria calculada ao coeficiente de 1,1;
– desde 1 de Janeiro de 2009, o referido trabalhador, de modo voluntário, prestou diariamente uma hora de trabalho extraordinário fora do tempo de trabalho normal;
– com base na remuneração mensal do referido trabalhador, a arguida, até agora, ainda não lhe pagou a diferença da remuneração de trabalho extraordinário no período de 16 de Julho de 2007 a 28 de Fevereiro de 2010, no valor de MOP36.164,60;
– ao praticar os actos acima referidos, a arguida agiu de modo livre, voluntário e consciente;
– bem sabendo que tais actos eram proibidos e punidos por lei.
– Mais se provou, na audiência de julgamento, que:
– de acordo com o teor do contrato de trabalho assinado em 9 de Julho de 2007 entre a arguida e o trabalhador acima referido, o tempo de trabalho desse trabalhador era de 48 horas de trabalho por semana, e as regalias do trabalhador ficariam definidas em função do manual da equipa fornecido e da categoria profissional referida nos respectivos dados.
– Factos não provados:
– não há outros factos importantes constantes da acusação por provar.
Por outro lado, a fls. 4 a 5 dos presentes autos, foi levantado, e também confirmado (cfr. também o teor de fl. 6), o auto de notícia que levou à instauração do processo contravencional subjacente, do qual consta o seguinte (originalmente escrito em chinês e ora traduzido pelo relator):
– <
O trabalhador B, titular do BIRM n.o …, morador na Rua…, tel:…, foi contratado pela parte empregadora para o posto de cozinheiro, no período de 16 de Julho de 2007 a 28 de Fevereiro de 2010, sendo que a remuneração mensal do trabalho foi de MOP10.000,02 no período de 16 de Julho de 2007 a 31 de Maio de 2008, e foi de MOP10.600,01 no período de 1 de Junho de 2008 a 28 de Fevereiro de 2010.
O trabalhador referido apresentou queixa em 10 de Março de 2010 a este Departamento, dizendo que após ingressado, precisava ele de prestar nove horas de trabalho por dia (incluindo o tempo de refeição), mas que de acordo com a “Benefit Guide” dos trabalhadores da empresa, o tempo de trabalho por dia devia ser de oito horas (incluindo o tempo de refeição), pelo que a parte empregadora não lhe pagou as compensações de trabalho extraordinário correspondente a uma hora por dia, prestado no período da duração contratual.
Por isso, este Departamento abriu o processo para investigação.
Do auto de declarações tomadas neste Departamento ao referido trabalhador, revela-se que ele pertencia aos trabalhadores de categoria F, e conforme a “Benefit Guide” de 26 de Dezembro de 2006 dos trabalhadores da parte empregadora, o tempo de trabalho era de 48 horas (incluindo o tempo de refeição) por semana, mas o referido trabalhador foi afectado, no período da sua duração contratual, a nove horas de trabalho (nelas se incluindo uma hora para refeição) por dia, razão pela qual o referido trabalhador precisou, na prática, de prestar, por dia, uma hora de trabalho extraordinário, mas a parte empregadora nunca chegou a atribuir-lhe a remuneração por tal uma hora de trabalho extraordinário.
De acordo com o auto de declarações tomadas neste Departamento ao representante C da parte empregadora (gerente de recursos humanos da parte empregadora), este declarou que: o referido trabalhador, aquando do ingresso, já soube claramente que o tempo efectivo de prestação de trabalho por dia era de oito horas; as escalas de turnos eram também organizadas em função de nove horas de trabalho por dia (nelas se incluindo uma hora para refeição); a “Benefit Guide dos Trabalhadores” era aplicável apenas aos trabalhadores de diversas categorias do D, e não era aplicável aos trabalhadores no A.
Do contrato assinado entre a parte empregadora e o referido trabalhador, revela-se que este pertencia aos trabalhadores de categoria F, e começou a trabalhar no A a partir de 16 de Julho de 2007. E da “Benefit Guide” dos trabalhadores actualizada em 26 de Dezembro de 2006 pela parte empregadora, o tempo de trabalho do referido trabalhador era de oito horas de trabalho por dia e de 48 horas de trabalho por semana (incluindo o tempo de refeição). Por aí se vê que tal “Benefit Guide” dos trabalhadores já foi aplicada aquando do ingresso do referido trabalhador.
Posteriormente, a parte empregadora, sem obter o consentimento do trabalhador, actualizou unilateralmente, em 3 de Agosto de 2007, a “Benefit Guide” dos trabalhadores em causa, no sentido de alterar o tempo de trabalho de “48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição)” para “48 horas por semana”, reduzindo indirectamente a remuneração do trabalhador. E a parte empregadora não apresentou pedido relativo a esta matéria à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais nos termos do disposto no art.o ... . Por isso, o acto em questão da parte empregadora não produz efeitos jurídicos. Ao mesmo tempo, a parte empregadora deve pagar ao referido trabalhador as compensações do trabalho extraordinário de uma hora por dia, prestado no período da duração contratual.
[...]
Termos em que este Departamento elaborou o mapa de apuramento. De acordo com o mapa de apuramento em anexo, a parte empregadora não pagou ao referido trabalhador as compensações de horas extraordinárias prestadas por este, no valor total de MOP36.164,60 (trinta e seis mil, cento e sessenta e quatro patacas e sessenta avos).
[...]
O acto de não pagamento pela infractora das compensações das horas extraordinárias ao referido trabalhador violou o disposto no art.o 37.o, n.o 2, da Lei n.o 7/2008, e constituiu uma contravenção. Nos termos do art.o 85.o, n.o 3, alínea 2), da mesma Lei, a infractora deve ser punida com multa de cinco mil a dez mil patacas (por cada trabalhador em relação ao qual se verifica a infracção).
Não tendo o referido acto ilegal sido reparado, elaboro o presente auto, em cumprimento dos deveres impostos por lei [...].
Em anexo: a) mapa de apuramento das quantias devidas ao trabalhador;
b) cópias de diversos documentos e declarações constantes do presente processo.
A autuante,
(ass.)>>.
Remetido o expediente da Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (com o referido auto de notícia e demais documentação) ao Tribunal Judicial de Base, o Digno Representante do Ministério Público decidiu (a fl. 227) converter tal auto de notícia em acusação pública.
Dessa documentação em anexo ao dito auto de notícia:
– existem as ora fls. 223 e 19 dos autos, alusivas à “Benefit Guide” dos trabalhadores de categoria F, nas suas versões de 26 de Dezembro de 2006 e de 3 de Agosto de 2007, respectivamente, sendo que em topo do texto das mesmas há os logotipos do A e do D;
– existem as ora fls. 27 a 28 dos autos, alusivas à proposta de contratação oferecida a B e por este aceite mediante a assinatura, da qual constando, no seu ponto 12 (“Benefits Program”), o seguinte: “You will be eligible to participate in the benefit programs of VML on the terms and conditions as offered to your grade level. Details of the benefit programs are described in the Team Member Handbook and similar materials which will be provided to you. […]”.
A final, foi realizada a audiência de julgamento (em sede da qual não foi apresentada contestação em nome da arguida – cfr. o teor da respectiva acta de fls. 282 a 284, a contrario sensu), com audição do trabalhador dos autos e da Inspectora autuante como testemunhas da acusação, e dos três empregados da arguida como testemunhas de defesa.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
De antemão, cumpre notar que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver só as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Conhecendo, agora, em concreto (e segundo a ordem lógica das coisas):
– Da nulidade da sentença (por alegada violação do art.o 360.o, alínea a), do CPP), suscitada sobretudo no ponto 15 das conclusões da motivação do recurso:
Não tem razão a recorrente, porquanto ante os elementos dos autos já acima referidos na parte II do presente acórdão de recurso, se vê com nitidez que o Tribunal a quo só afirmou que “não há outros factos importantes constantes da acusação por provar”, depois de ter já especificado concretamente quais os factos tidos por provados, os quais, por sua vez, se referem à tese acusatória materialmente vertida no auto de notícia, pelo que é de dar por cumprido pelo mesmo Tribunal o seu dever de enumeração de factos não provados exigido pelo n.o 2 do art.o 355.o do CPP, embora feita in casu através daquela fórmula genérica.
– Da nulidade da sentença (por alegada violação do art.o 360.o, alínea b), do CPP), suscitada mormente através dos pontos 12, 13, 19 e 20 das conclusões da motivação do recurso:
Também não tem razão a recorrente, ao invocar aí que o Tribunal recorrido a ter condenado por factos não descritos na acusação.
Na verdade (ao contrário do alegado pela recorrente):
– na matéria fáctica acusada no auto de notícia dos autos (já traduzido para português na parte II do presente acórdão de recurso), estava incluída materialmente a menção de existência não só do contrato de trabalho assinado entre as partes, como também da “Benefit Guide” nas versões de 26 de Dezembro de 2006 e de 3 de Agosto de 2007 (cfr. o teor dos 7.o e 8.o parágrafos do auto de notícia), sendo que no ponto 12 da própria proposta de contrato de trabalho, então aceite pelo trabalhador em questão nos autos, a parte empregadora declarou que “Details of the benefit programs are described in the Team Member Handbook and similar materials which will be provided to you”, e o Tribunal a quo acabou por dar por provado que “de acordo com o teor do contrato de trabalho assinado em 9 de Julho de 2007 entre a arguida e o trabalhador acima referido, o tempo de trabalho desse trabalhador era de 48 horas de trabalho por semana”, para além de ter dado por provada a existência da “Benefit Guide” nas duas versões de 26 de Dezembro de 2006 e de 3 de Agosto de 2007;
– outrossim, na matéria fáctica acusada no mesmo auto de notícia, estava também incluída materialmente a menção de uma hora por dia como tempo de refeição (cfr. o teor dos 7.o e 8.o parágrafos do auto de notícia, na parte em que se referiu a que “[...] o tempo de trabalho do referido trabalhador era de oito horas de trabalho por dia e de 48 horas de trabalho por semana (incluindo o tempo de refeição)”; “Posteriormente, a parte empregadora, sem obter o consentimento do trabalhador, actualizou [...] a “Benefit Guide” [...], no sentido de alterar o tempo de trabalho de “48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição)” para “48 horas por semana” [...]”; e “[...] compensação do trabalho extraordinário correspondente a uma hora por dia, prestado no período da duração contratual”).
Assim sendo, a recorrente não foi condenada por factos não descritos na acusação (ou na fundamentação fáctica da sentença recorrida).
– Do arguido vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (invocado nomeadamente nos pontos 11 e 18 das conclusões da motivação do recurso):
A razão também não está no lado da recorrente, visto que ante o conteúdo (já acima traduzido para português na parte II do presente acórdão de recurso) da fundamentação fáctica da sentença recorrida, em confronto do conteúdo (também traduzido acima) do auto de notícia que, à falta da apresentação da contestação pela arguida, delimitou já todo o tema probando objecto do processo em tudo que fosse desfavorável à própria arguida recorrente, é de reconhecer que o Tribunal a quo já investigou, sem qualquer lacuna, todo esse objecto probando.
Aliás, sob o outro prisma falando, tendo o vício do art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do CPP sido alegado pela arguida nos termos concretamente interligados com a arguição da nulidade da sentença, e uma vez concluída já acima pela improcedência da nulidade da sentença, não pode deixar de naufragar também a questão de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
– Do alegado vício de erro notório na apreciação da prova (levantado designadamente nos pontos 16 e 17 das conclusões da motivação do recurso):
A razão também, outra vez mais, não está no lado da recorrente, uma vez que depois de analisados todos os elementos probatórios referidos no texto da sentença recorrida, não se vislumbra que o concreto resultado do julgamento de factos a que chegou o Tribunal a quo seja patentemente desrazoável aos olhos de qualquer homem médio conhecedor das regras da experiência da vida humana na normalidade de situações, ou flagrantemente violadora de quaisquer normas relativas à prova tarifada ou de quaisquer legis artis vigentes em matéria de julgamento de factos.
Não se justifica, por isso, a pretendida renovação da prova nesta Segunda Instância.
– Da questão de os parágrafos 3, 5, 6, 8 e 9 estarem eivados de matéria de direito e juízo de valor (cfr. o esgrimido pela recorrente mormente no ponto 14 das conclusões da motivação):
Nesta parte do seu recurso, já tem parcial razão a arguida.
De facto, sendo a segunda parte do 3.o parágrafo da matéria de facto provada (de acordo com a qual a “Benefit Guide” de 26 de Dezembro de 2006 já é aplicável aquando da assinatura do contrato de trabalho e do ingresso do trabalhador dos autos) manifestamente do foro exclusivamente jurídico, e sendo a última parte do 5.o parágrafo da matéria de facto provada (em sintonia com a qual houve diminuição indirecta da remuneração do mesmo trabalhador) de natureza conclusiva, é de dar por não escritas essas duas partes em questão, com o que os 3.o e 5.o parágrafos da matéria de facto provada ficam apenas com a seguinte factualidade, respectivamente:
– o trabalhador acima referido é de categoria F;
– a arguida, sem obter o consentimento do trabalhador, actualizou de novo, e unilateralmente, em 3 de Agosto de 2007, tal “Benefit Guide”, no sentido de alterar o tempo de trabalho de “48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição)” para “48 horas por semana”, mas não procedeu ao correspectivo aumento da remuneração do referido trabalhador nem lhe atribuiu a remuneração de trabalho extraordinário naquela uma hora.
Enquanto os 6.o, 8.o e 9.o parágrafos da matéria de facto descrita como provada na sentença recorrida já são totalmente factos.
– E finalmente, do remanescente alegado na motivação do recurso e delimitado nos pontos 1 a 10 das conclusões da mesma peça:
Pois bem, juridicamente falando, e perante toda a matéria de facto já dada por provada em primeira instância (sem nenhum vício de erro notório na apreciação da prova nem alguma lacuna no apuramento do tema probando objecto do processo, sendo que a alegada tese fáctica de que o trabalhador, durante os turnos de nove horas, podia ausentar-se livremente da empresa no tempo de uma hora de refeição, não resultou ali minimamente provada), com eliminação, porém, das duas partes acima referidas (por serem, numa das quais, matéria de direito e, na outra, matéria conclusiva):
– é de considerar, desde já, indubitavelmente aplicável ao trabalhador dos autos, aquando do seu ingresso como trabalhador da arguida, a “Benefit Guide” de 26 de Dezembro de 2006, de acordo com a qual o tempo de trabalho era de 48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição) e de seis dias por semana;
– bem como de considerar que a versão dessa “Benefit Guide” actualizada em 3 de Agosto de 2007 estava a reduzir indirectamente a remuneração do mesmo trabalhador devido à alteração do tempo de trabalho de “48 horas por semana (incluindo o tempo de refeição)” para “48 horas por semana”;
– e como essa nova versão da “Benefit Guide” não foi objecto de comunicação à Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais, a mesma não pode produzir nenhuns efeitos jurídicos em relação ao trabalhador em questão na parte da eliminação da menção de inclusão do tempo de refeição no número de horas de trabalho por semana;
– pelo que em conjugação também com toda a matéria de facto já provada em primeira instância (e depurada nos termos acima), é de dar por verificada a violação continuada, por parte da arguida, e em relação ao trabalhador dos autos, do disposto no art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, ao não ter pago, atempadamente, parte da remuneração de base devida ao mesmo trabalhador (in casu, concretamente correspondente a uma hora, por dia, de trabalho extraordinário prestado por este fora do tempo normal de trabalho) (cfr. os art.os 59.o, n.o 1, alínea 2), e 62.o, n.o 3, da mesma LRT);
– termos em que há que alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos decidida na sentença recorrida, já que a contravenção efectivamente praticada pela arguida não consiste propriamente no incumprimento das regras de cálculo da remuneração do trabalho extraordinário plasmadas no art.o 37.o, n.o 2, da LRT, mas sim na negação do direito do trabalhador à remuneração do trabalho extraordinário (como parte integrante da remuneração de base).
Assente assim a prática continuada, pela arguida, de uma contravenção prevista pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, e punível com multa de MOP20.000,00 a MOP50.000,00, é de impor-lhe, em princípio, a multa de MOP30.000,00, vistas todas as circunstâncias fácticas apuradas e sob a égide dos critérios da medida da pena definidos nomeadamente no art.o 65.o do Código Penal vigente.
Entretanto, por força do espírito da proibição da reforma para pior em caso de recurso somente interposto pelo arguido, e não existindo nos autos elementos que possam levar a conclurir pelo melhoramento superveniente sensível da situação económica e financeira da arguida (cfr. o art.o 399.o, n.o 2, alínea a), parte final, do CPP, a contrario sensu), é de tomar a multa de MOP5.800,00 aplicada na sentença recorrida como sendo a multa dessa contravenção efectivamente cometida pela arguida.
Do acima observado decorre naturalmente, e sob a égide do art.o 100.o do Código de Processo do Trabalho vigente, a necessidade da manutenção de toda a decisão de arbitramento oficioso da indemnização cível tomada na sentença recorrida, que nem foi impugnada pela arguida no tocante ao seu montante concreto, então calculado com base nas contas feitas no mapa de apuramento outrora anexo ao auto de notícia.
Com o que fica comprometida a tese absolutória contravencional e civil defendida pela arguida mediante a invocação de razões nomeadamente sumariadas nos pontos 1 a 10 da sua motivação.
IV – DECISÃO
Face ao exposto, acordam em:
– julgar improcedente o pedido absolutório contravencional e civil formulado pela arguida A, no seu recurso interposto da sentença da Primeira Instância;
– considerar que os 3.o e 5.o parágrafos da matéria de facto descrita como provada na sentença recorrida apenas contêm a seguinte factualidade, respectivamente: <> e <>;
– alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos provados em primeira instância, passando a condenar a arguida como autora material, na forma continuada, de uma contravenção p. e p. pelo art.o 85.o, n.o 1, alínea 6), da LRT, na multa de MOP30.000,00 (trinta mil patacas), multa essa que fica reduzida à multa de MOP5.800,00 (cinco mil e oitocentas patacas) então aplicada na sentença recorrida, por força do princípio consagrado no art.o 399.o, n.o 1, do Código de Processo Penal vigente;
– manter toda a decisão de arbitramento oficioso de indemnização cível tomada na sentença recorrida a favor do trabalhador ofendido B.
Custas do recurso pela recorrente, com vinte UC de taxa de justiça.
Comunique a presente decisão ao trabalhador ofendido.
Macau, 15 de Dezembro de 2011.
___________________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
___________________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
___________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo n.º 228/2011 Pág. 1/24