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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
1. O Dr. A, ao tempo Coordenador-Adjunto do Gabinete para os Assuntos do Direito Internacional, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Chefe do Executivo, de 19 de Março de 2004, que negou provimento a recurso hierárquico do despacho do Director da Direcção dos Serviços de Finanças, que indeferira reclamação do recorrente, em que pretendia continuar a gozar de isenção do pagamento de imposto profissional de que beneficiavam os funcionários públicos, antes da alteração ao art. 9.º do Regulamento do Imposto Profissional, a que procedeu a Lei n.º 12/2003.
Por acórdão de 24 de Novembro de 2005, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpôs o referido Dr. A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância, alegando ter o Acórdão recorrido incorrido em violação do artigo 98.º da Lei Básica.
Por despacho do Relator do processo no Tribunal de Última Instância, transitado em julgado, foi fixado ao recurso contencioso o valor processual de MOP$1.744,00 (mil setecentas e quarenta quatro patacas), que foi, aliás, o valor declarado pelo recorrente.
Por despacho do Relator neste Tribunal, de 15 de Setembro de 2006, foi decidido não conhecer do recurso jurisdicional, pelos seguintes fundamentos:
«Dispõe o n.º 3 do artigo 18.º da Lei de Bases da Organização Judiciária (Lei n.º 9/1999) que “Em matéria de contencioso fiscal e aduaneiro, quando o valor da causa seja susceptível de determinação, a alçada dos Tribunais de Primeira Instância é de 15 000 patacas e a do Tribunal de Segunda Instância é de 1 000 000 patacas”.
   De acordo com o artigo 583.º do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente por força do art. 1.º do Código de Processo Administrativo Contencioso, salvo disposição em contrário, o recurso ordinário só é admissível nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre.
   Sendo o valor da causa manifestamente inferior à alçada do Tribunal de Segunda Instância, não se afigura ser admissível recurso jurisdicional da decisão proferida por este Tribunal.
   
   3. Ouvido sobre a possibilidade de não haver lugar a recurso com este fundamento, veio o Dr. A dizer que indicou como valor da causa o valor do acto de retenção fiscal do seu salário de Dezembro de 2003 (MOP$1.744,00), como poderia ter indicado o critério do valor dos actos imateriais, que é como quem diz, poderia ter indicado um valor da causa superior à alçada do TSI (art. 254.º do Código de Processo Civil).
   É certo que o recorrente poderia ter indicado outro valor, mas o Tribunal não estaria obrigado a aceitá-lo, houvesse ou não acordo da parte contrária (n.º 1 do art. 257.º e art. 259.º do Código de Processo Civil ).
   Seja como for, o valor que o recorrente indicou como valor da causa foi o de MOP$1.744,00. E fez bem, já que este valor representa a utilidade económica do pedido, sendo essa quantia que o recorrente pretendia ver restituída, já que só impugnou a retenção na fonte da quantia do imposto profissional relativo a Dezembro de 2003 – e que corresponde à referida quantia em dinheiro - e em 31 de Dezembro de 2003 deixou de prestar serviço para a Administração de Macau.
De todo o modo, o despacho que fixou o valor da causa não está, agora, em causa. Trata-se de matéria em que já se esgotou o poder jurisdicional do juiz.
Diz o recorrente que em todos os ordenamentos jurídicos não existe alçada nos tribunais constitucionais sempre que tal questão é levantada porque se entende que, o que está em causa é o interesse público de conformar o ordenamento jurídico à sua Lei Fundamental.
Só que na Região Administrativa Especial de Macau nem há Tribunal Constitucional nem existe nenhum meio específico de fiscalização da conformidade das leis com a Lei Básica. Os tribunais podem conhecer desta matéria no julgamento dos casos e, cumprindo o disposto no artigo 11.º da Lei Básica, não podem aplicar normas que infrinjam o disposto na Lei Básica ou os princípios nela consagrados, sem prejuízo do disposto no artigo 143.º daquela Lei. Mas na Ordem Jurídica de Macau o conhecimento de tais matérias faz-se de acordo com os meios processuais que couberem no caso. É que não existe nenhum recurso específico para fiscalização da conformidade das leis com a Lei Básica.
Assim, a norma que rege a questão de saber se existe recurso independentemente do valor da causa é a do n.º 2 do art. 583.º do Código de Processo Civil, e desta não resulta ser sempre admissível o recurso, independentemente do valor, quando se impute violação da Lei Básica.
Por fim, alega o recorrente que o eventual não conhecimento da questão central controvertida redundaria ainda “na negação do duplo grau de recurso que é uma garantia a que a RAEM está internacionalmente vinculada e à mais grosseira denegação do acesso à justiça e aos tribunais”.
Mas o recorrente não esclarece qual o instrumento que vincula internacionalmente a RAEM a estabelecer um duplo grau de jurisdição (e não de recurso, como certamente por lapso refere o recorrente), em casos como o dos autos, nem ele existe.
Na verdade, nenhuma lei ou convenção internacional vigentes em Macau impõem a existência de um grau de recurso jurisdicional, salvo em matéria penal, quando esteja em causa a condenação pela prática de crime, nos termos n.º 5 do art. 14.º do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos: “Qualquer pessoa declarada culpada de crime terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei”.
Aliás, por exemplo em Portugal, a Constituição apenas impõe um duplo grau de jurisdição – o que significa haver um grau de recurso jurisdicional – em matéria penal (art. 32.º, n.º 1). Nas outras matérias é pacífico na jurisprudência do Tribunal Constitucional e não suscita dúvidas na doutrina (J. J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, 3.ª edição revista, 1993, p. 164) que se trata de questão que se encontra na liberdade de conformação do legislador.
E dizer que a impossibilidade de recurso redunda na mais grosseira denegação do acesso à justiça e aos tribunais só se explica pelo calor que o recorrente põe na defesa das sua posições. A causa intentada pelo recorrente foi apreciada por um Tribunal independente, que decidiu após um processo equitativo, em que o recorrente teve oportunidade de defender livremente os seus pontos de vista.
A inexistência de recurso jurisdicional, que resulta da lei – e que o recorrente nem discute no plano do direito constituído – não afronta a Lei Básica nem qualquer convenção internacional».
2. Discordando deste despacho veio o Dr. A reclamar para a conferência.
O Chefe do Executivo e a Ex.ma Procuradora-Adjunta defendem a improcedência da reclamação.

II - Fundamentação
1. Conhecendo da reclamação.
Dá-se aqui por reproduzido o conteúdo do despacho do Relator, atrás transcrito, com o qual se concorda e, por isso, se subscreve.
Diz o reclamante que o Relator errou ao tratar o processo como decisão administrativa em última instância e que do art. 18.º, n.º 4 da Lei de Bases da Organização Judiciária resulta que há um meio processual de fiscalização da ilegalidade de normas.
Há aqui um equívoco do Reclamante, pois foi este que utilizou o meio processual do recurso contencioso para o TSI (petição de fls. 2 e segs.).
O meio processual a que se refere o art. 18.º, n.º 4, parte final, da Lei de Bases da Organização Judiciária - em que não há alçada - é o regulado nos arts. 88.º e seguintes do Código de Processo Administrativo Contencioso. Trata-se da impugnação de normas contidas em regulamento, com a finalidade de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral.
O ora Reclamante não veio pedir a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral de nenhuma norma jurídica.
O que o ora Reclamante fez foi interpor recurso contencioso de um acto administrativo, pedindo a sua anulação.
Ou seja, o ora Reclamante interpôs um recurso contencioso de anulação, meio processual regulado nos arts. 20.º e seguintes do mencionado Código de Processo Administrativo Contencioso. E sobre esta matéria nunca se suscitaram dúvidas. É que a forma de processo é determinada pelo pedido. O ora Reclamante pediu a anulação de um acto administrativo. Não impugnou nenhuma norma regulamentar, pedindo a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral. Logo, a forma de processo que cabia à sua pretensão era a do recurso contencioso de anulação, que escolheu e bem.
Só agora vem o Reclamante dizer que o meio processual empregue é o da fiscalização da legalidade e pede mesmo que se altere a distribuição dos autos. Mas agora é tarde. Como é evidente, na fase de recurso jurisdicional, em segundo grau de jurisdição, não pode vir o Reclamante pretender começar tudo de novo, em primeira instância, alterando o pedido.
De resto, nunca o Reclamante poderia ter utilizado o meio processual da impugnação de normas, com a finalidade de declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, pois há norma expressa a excluir do regime de impugnabilidade regulado nos arts. 88.º e seg. do Código de Processo Administrativo Contencioso a norma contida em regulamento administrativo que viole a Lei Básica.
Efectivamente, dispõe o art. 88.º, n.º 2, alínea a) deste Código de Processo Administrativo Contencioso:
“2. Fica excluída do regime de impugnabilidade regulado no presente capítulo a norma contida em regulamento administrativo:
a) Que viole norma constante de lei fundamental ou princípio dela decorrente”
Ou seja, mesmo que o Reclamante se tivesse enganado na escolha do meio processual, nunca poderia ter optado pela impugnação de normas pois neste meio não se pode impugnar norma com fundamento em violação da Lei Básica, a lei fundamental de que fala a norma da alínea a) do n.º 2 do art. 88.º do Código de Processo Administrativo Contencioso. E a razão deste regime é a seguinte: o legislador do Código de Processo Administrativo Contencioso (aprovado em Dezembro de 1999) contava que a Ordem Jurídica da Região Administrativa Especial de Macau viesse a prever um recurso para fiscalização da legalidade de normas, com fundamento em violação da Lei Básica, que seria da competência do Tribunal de Última Instância (cfr. os arts. 93.º e seg. do Regime de Custas nos Tribunais). Mas, devido a vicissitudes várias do processo de transição, que não cabe aqui tratar, isso não veio a acontecer. Por isso é que na competência do Tribunal de Última Instância não consta nenhum meio específico para fiscalização da legalidade de normas (art. 44.º da Lei de Bases da Organização Judiciária).
De todo o modo, os interessados podem sempre sindicar judicialmente a violação da Lei Básica por normas hierarquicamente inferiores, mas têm de utilizar os meios processuais comuns.
Em conclusão, estamos no domínio do contencioso fiscal e nestas matérias a alçada do TSI é de MOP$1,000,000.00. Daí que não haja recurso para o TUI nas causas com valor processual inferior a este montante, como é o caso.

2. Insiste, por fim, o Reclamante na tese da necessidade um recurso para tribunal superior perante a violação de direitos fundamentais. Mas o Reclamante não especifica que norma vigente em Macau, designadamente da Lei Básica, imponha um grau de recurso para tribunal superior, em questões como a dos autos. E ela não existe.
Improcede, pois, a reclamação.

III - Decisão
Face ao expendido, indefere-se a reclamação do despacho do Relator que decidiu não conhecer do recurso jurisdicional interposto.
Custas pelo Reclamante, fixando a taxa de justiça em 2 UC.
Macau, 25 de Outubro de 2006.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei



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Processo n.º 9/2006