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Proc. nº 106/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 16 de Fevereiro de 2012
Descritores:
-Marcas
-Interesse legítimo
-Classe de classificação internacional


SUMÁRIO:
I- A lei (art. 206º do RJPI) não restringe o pedido de registo a um só bem ou serviço dentro de cada classe de classificação internacional de produtos e serviços para efeito de registo de marcas.
II- O art. 201º do RJPI não limita o interesse legítimo no direito ao registo de marca a quem esteja já em exercício de actividade ou em fabrico de bens, produtos ou serviços, mas também o reconhece a quem, estando em condições de o usar já, o quiser vir a exercer posteriormente, sem prejuízo, porém, de, em caso de concessão do registo, ele vir a ser caducado em virtude do não uso.
III- Mas a requerente “Sociedade de Entrega de Valores” (SEV) não dispõe de interesse para a iniciativa procedimental se não dispuser de interesse legítimo na concessão do registo da marca no momento em que formula o pedido, por a ordem jurídica não permitir o uso da marca em bens ou serviços que não façam parte daquela que é a única actividade legalmente possível, face ao art. 2º, nº2, do DL nº 15/97/M, de 5/05.









Proc. nº106/2011

Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório

Stichting A, grupo empresarial com sede em XX XX XXXX XX XX, XX, apresentara recurso do despacho da Ex.ma Chefe do Departamento de Propriedade Intelectual dos Serviços de Economia, que concedeu à sociedade comercial “Sociedade de Entrega de Valores A (Macau) Limitada”o registo da marca A Remit (Macau).
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Contestaram a entidade recorrida e a recorrida particular.
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Foi oportunamente proferida sentença que negou provimento ao recurso e manteve o despacho recorrido.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso, em cujas alegações a recorrente Schiting A formula as seguintes conclusões:
   1.ª O Recorrente pretende trazer ao conhecimento do Venerando Tribunal de Segunda Instância, apenas, uma questão que considera primordial e que tem a ver com o direito ao registo que, nos termos do art.º 201.º do RJPI, cabe a quem nisso tiver interesse legítimo.
   2.a Não pretende o Recorrente que sejam reapreciadas as demais questões por si suscitadas perante o douto Tribunal de Primeira Instância, uma vez que se conforma com a decisão de direito quanto a tais questões, quais sejam: (i) notoriedade e prestígio da marca do Recorrente, em Macau e (ii) possibilidade de a Recorrida praticar actos de concorrência desleal ainda que de forma não intencional, tendo o douto Tribunal a quo, sobre as mesmas produzido uma fundamentação convincente.
   3.a Imputa o Recorrente à decisão recorrida um vício de violação da lei substantiva consistente em erro de interpretação, considerando, também, que a douta sentença recorrida enferma do vício da contradição na fundamentação.
   4.a A marca registanda deve ser recusada à Recorrida, uma vez que, por imposição legal, esta não pode prestar os serviços indicados como sendo aqueles que pretende assinalar com a marca registanda, considerando-se que não tem a mesma interesse legítimo no registo da marca para outros serviços que não sejam os que está legitimamente autorizada a prestar.
   5.ª A Recorrida é uma sociedade constituída em conformidade com as leis da RAEM, sediada em Macau, cuja actividade exclusiva é a entrega rápida de pequenos valores em numerário, entre diversos países e territórios, sendo que se trata de uma actividade que é regulada por lei própria e, portanto, sujeita a autorização prévia do Chefe do Executivo.
   6.a O douto Tribunal recorrido interpretou de forma não correcta o art.º 201.º do RJPI ao considerar que, em sede de recurso judicial, não deve ser invocada a matéria associada à legalidade do exercício da actividade por banda da Requerente da marca
   7.a A Requerente da marca, aqui Parte Contrária, e ora Recorrida, sendo uma Sociedade de Entrega de Valores (SEV) não pode, por lei, desenvolver outra actividade, nomeadamente, a que se relacione com qualquer dos serviços integrados na classe 36.ª.
   8.ª Foi na qualidade de SEV que a ora Recorrida solicitou o registo da marca que tomou o n.º N/43494, para os serviços da classe 36.a, conforme se pode constatar dos elementos constantes dos autos.
   9.ª A Requerente da marca, ora Recorrida, não podendo, nos termos da lei, exercer qualquer outra actividade que não seja aquela para a qual obteve autorização, não pode ver-lhe concedida a marca, sob pena de se violarem regras de ordem pública.
   10.ª O douto Tribunal a quo entrou em contradição na sua fundamentação, quando perante um facto por si dado como assente, acaba por fazer consignar na sua sentença que, do que consta do registo comercial, a Requerente é uma empresa com sede em Macau, sendo sócia de uma sociedade do grupo A ligado ao Banco de Oro das Filipinas.
   11.ª O douto Tribunal a quo devia ter interpretado o art.º 201.º do RJPI no sentido de que há interesse legítimo sempre que o requerente destine a marca a uma actividade económica concreta que exista ao tempo do pedido apresentado junto da entidade competente para a sua concessão, sendo que o requisito exigido é o da ligação da marca a uma actividade directamente exercida (ou, comprovadamente, a exercer) pelo interessado.
TERMOS EM QUE, contando com o douto suprimento de Vossas Excelências, Venerandos Juízes, deve:
1) o presente recurso ser julgado procedente e revogada que seja a douta decisão recorrida,
2) ser recusada a marca que consiste em “A REMIT (Macau)”, que tomou o n.º N/43494, uma vez que, por imposição legal, a Requerente da marca não pode prestar os serviços por si indicados como sendo aqueles que pretende assinalar com a marca registanda, considerando-se, assim, que não tem a mesma interesse legítimo no registo da marca para serviços integrados na classe 36.ª.
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A entidade recorrida respondeu ao recurso, pugnando pelo não provimento do recurso.
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A recorrida particular contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1a Nas suas alegações de recurso, a Recorrente circunscreveu à apreciação do Venerando Tribunal de Segunda Instância apenas a matéria relativa ao legitimo interesse na concessão da marca à aqui Recorrida - que na sua óptica inexiste;
2a A ora Recorrida considera que a decisão tomada pelo douto Tribunal a quo, ora colocada em crise, não padece de qualquer vício, e a respetiva secção decisória segundo a qual “bem andou a entidade recorrida ao conceder o registo da marca objeto destes autos. Termos em que pelos fundamentos expostos, negando-se provimento ao recurso, mantém-se o despacho recorrido” faz correcta aplicação do direito aos factos, pelo que deverá ser mantida por esse Venerando Tribunal de Segunda Instância;
3ª É verdade que a ora Recorrida é uma sociedade de entrega rápida de valores em numerário (SEV), cujo objecto social consiste na promoção de entregas rápidas de valores em numerário, no território de Macau ou no exterior, por ordem de terceiros, após a entrega, por estes, da respectiva contrapartida, e que o Decreto-Lei nº 15/97/M prevê ainda que só é permitido às SEV efectuarem as operações cambiais estritamente necessárias à prossecução do mesmo, e que, finalmente, é vedado às SEV o exercício de qualquer actividade diferente do seu objecto social;
4a A Recorrida solicitou o registo da sua sobredita marca na classe 36ª, porque é precisamente a essa classe que pertencem os serviços constantes do seu objecto social;
5ª Através do Aviso do Chefe do Executivo nº 10/2009, constante do Boletim Oficial, II Série, nº 20/2009, publicado em 22 de Maio de 2009, foram mandadas publicar as modificações e outras alterações à 8.ª Edição da Classificação Internacional de Produtos e Serviços para Efeitos do Registo de Marcas, adoptadas pela Comissão de Peritos da União Particular, nas suas 19.a e 20.a Sessões, havidas respectivamente em Outubro de 2003 e em Outubro de 2005, na sua versão autêntica em língua inglesa, acompanhada das respectivas traduções para as línguas chinesa e portuguesa, e bem assim a tradução para a língua portuguesa da 9.a Edição da Classificação Internacional de Produtos e Serviços para Efeitos do Registo de Marcas, efectuada a partir dos respectivos textos autênticos em inglês e em francês e adaptada à tradução oficial em língua chinesa;
6a Considerando-se no aludido diploma legal que o Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional dos Produtos e Serviços aos Quais se Aplicam as Marcas de Fábrica ou de Comércio, concluído em Nice, em 15 de Junho de 1957, tal como revisto pelo Acto de Estocolmo, de 14 de Julho de 1967 e pelo Acto de Genebra, de 13 de Maio de 1977 e emendado em 28 de Setembro de 1979 (Acordo de Nice), por virtude da notificação efectuada, em 1 de Novembro de 1999, pela República Popular da China ao Depositário, o Director Geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual, se continua a aplicar na Região Administrativa Especial de Macau;
7a A referida publicação foi efectuada nos termos do nº 1 do artigo 6º da Lei nº 3/1999, e entrado em vigor na RAEM as referidas alterações ao Acordo de Nice relativo à Classificação Internacional dos Produtos e Serviços aos Quais se Aplicam as Marcas de Fábrica ou de Comércio a partir de tal publicação de 22 de Maio de 2009, precedida de promulgação por parte do Exmo. Senhor Chefe do Executivo de 28 de Abril de 2009;
8ª A aqui Recorrida requereu o registo da sua marca ora em crise “A REMIT (Macau) ” em 25 de Junho de 2009, pelo que as sobreditas alterações aplicaram-se ao seu pedido e processo de registo;
9ª A Classificação Internacional de Produtos e Serviços para efeitos de Registo de Marcas (Classificação de Nice - 9a Edição) em vigor também em Macau desde o sobredito dia 22 de Maio de 2009, prevê que à classe 36a pertencem os serviços referentes às actividades de seguros, negócios financeiros, negócios monetários e negócios imobiliários, conforme Guia do Utilizador dela constante;
10ª Desenvolvendo a ora Recorrida uma actividade respeitante a negócios monetários, o registo da sua sobredita marca só podia ser efectuado no âmbito da classe 36ª;
11ª Como bem decidiu o despacho de concessão de registo de marca nº N/43494 (A REMIT (Macau)), para a classe 36ª, proferido pela Senhora Chefe do Departamento da Propriedade Intelectual da Direcção dos Serviços de Economia;
12ª Tendo por isso a ora Recorrida legítimo interesse na concessão do registo da sua marca “A REMIT (Macau) ”;
13ª Respeitou-se integralmente o postulado no art. 201º do Regime Jurídico da Propriedade Industrial, o qual confere o direito ao registo da marca a quem nisso tiver legítimo interesse, nomeadamente, “aos que prestam serviços, para assinalar a respectiva atividade”;
14a Inexiste qualquer contradição na fundamentação em sede de decisão recorrida, ao se consignar, por um lado, que “o certo é que nada do que se invoca corresponde ao registo comercial desta, tratando-se tão só de uma empresa com sede em Macau, com a firma que se refere e da qual é sócia uma sociedade do grupo A ligado ao Banco de Oro das Filipinas”, e ao considerar-se provado, por outro lado, que “A Requerente dedica-se a exercer a actividade “de entrega rápida de valores em numerário na RAEM ou no exterior, por ordem de terceiros, após a entrega, por estes, da respectiva contrapartida, nos termos do Decreto-Lei nº 15/97/M de 5 de Maio” - cfr.fls.50 certidão do registo comercial”, porquanto o douto Tribunal a quo verificou tão somente a existência in casu do pressuposto legal do legítimo interesse da aqui Recorrida - que se dedica a exercer a actividade de entrega rápida de valores em numerário na RAEM ou no exterior, por ordem de terceiros, após a entrega, por estes, da respectiva contrapartida - para fazer constar da marca registada o vocábulo “A”, decorrente de: 1) a firma social por si adoptada - Sociedade de Entrega de Valores A (Macau), Limitada; 2) ter como sócia a sociedade A Remittance Limited, com sede em Hong Kong; e 3) ser uma sociedade afiliada do Banco de Oro, das Filipinas;
15a Não padeceu a douta Sentença recorrida dos invocados vícios de violação da lei substantiva consistente em erro de interpretação, nem do vício da contradição na fundamentação, devendo em conformidade ser proferido douto Acórdão por esse Venerando Tribunal que mantenha in totu aquela douta decisão.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
a) Em 24.06.2009 Sociedade de Entrega de Valores B Express Padala (Macau) Limitada requereu o registo da marca N/43494 para a classe de produtos nº36 a qual consiste em “A Remit (Macau) ” - cf. fls. 1 do proc. adm. apenso -.
b) O pedido d e registo foi publicado no Boletim Oficial de 05.08.2009 - cf. fls.12 -;
c) A Requerente dedica-se a exercer a actividade “de entrega rápida de valores em numerário no território de Macau ou no exterior, por ordem de terceiros, após a entrega, por estes, da respectiva contrapartida, nos termos do Decreto-Lei nº 15/97/M de 5 de Maio” - cf. fls.50 certidão do registo comercial -;
d) São sócios da sociedade A Remittance Limited com sede em Hong Kong – cf. fls.51 certidão do registo comercial -;
e) Em 22.07.2009 foi inscrita na Conservatória do registo Comercial relativamente à sociedade Requerente da marca a alteração parcial do pacto, passando a ter a firma em Chinês “A (澳門)現金速遞有限公司”, em Português “Sociedade de Entrega da Valores A (Macau) Limitada” e em inglês “A Remittance (Macau) Limited” - cf. fls.51 certidão do Registo Comercial -;
f) A Requerente da marca e ora Recorrida faz parte do grupo de empresas A - cf. fls.54 -;
g) Por despacho de 08.02.2010 proferido a fls.130 dos autos de Processo Administrativo apensos, foi concedido o registo da marca N/43494 com base nos fundamentos constantes da informação de folhas 130/137 do processo administrativo apenso e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.
h) O Despacho referido na alínea g) foi publicado no Boletim Oficial de Macau, II Série, de 03.03.2010 - cf. fls.142 do proc. adm. apenso -.
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III- O Direito
1- No presente aresto, conforme decorre das palavras de abertura da conclusão 1ª das respectivas alegações da recorrente “Stichting A”, uma única questão vem equacionada: o interesse legítimo da recorrida particular no registo da marca por si pedida.
Segundo a recorrente, ao tratar este tema, a sentença cometeu um erro de interpretação do art. 201º do RJPI, contradizendo-se na fundamentação utilizada.
As entidades recorridas, pública e particular, essas vêm em socorro do julgado.
Cumpre analisar, então, o objecto do recurso.
O raciocínio da recorrente, se bem o interpretamos, é o seguinte:
Se a actividade da sociedade recorrida é dirigida à “entrega rápida de pequenos valores em numerário entre diversos países e territórios”, sendo por isso uma “SEV” (Sociedade de Entrega de Valores), ela tem que obedecer ao regime legal que emana do DL nº 15/97/M, de 5 de Maio, sendo-lhe ainda aplicáveis normas do Regime Jurídico do Sistema Financeiro contido no DL nº 32/93/M, de 5 de Julho, carecendo até de autorização prévia do Chefe do Executivo. Autorização que lhe foi concedida, efectivamente, pela Portaria nº 253/97/M, de 15 de Dezembro.
Mas, uma vez autorizada a actividade, é unicamente para ela que a interessada tem que manifestar o seu interesse ao pedir o registo da marca. Assim, dado que é muito vasta a tábua de actividades e serviços que se enquadram na classe 36ª, não podia ser concedida a marca nessa classe, como foi concedido, por falta de interesse legítimo.
Vejamos.

Como é evidente, uma coisa é o direito de pedir o registo, outra coisa é o direito em obtê-lo. Esta segunda situação carece da verificação de requisitos positivos e negativos que podemos avistar nos arts. 199º e 214º do RJPI.
Tudo tem que a ver, portanto, com o art. 201º do RJPI, segundo o qual, com a epígrafe “Direito ao registo”, “O direito ao registo da marca cabe a quem nisso tiver interesse legítimo, designadamente (…)e) Aos que prestam serviços, para assinalar a respectiva actividade” (negrito nosso).
Ora, um interesse legítimo é aquele que está em sintonia com a ordem jurídica e por esta não reprovado1.

Por outro lado, o interesse legítimo é, noutra perspectiva, também aquele que é conferido ao interessado de exigir que a Administração adopte um comportamento que respeite a legalidade. Caso em que a protecção é indirecta ou reflexa, diferentemente do que sucede no direito subjectivo, em que o particular pode exigir um comportamento que satisfaça o seu interesse provado (a protecção seria imediata)2.

Portanto, o direito ao registo (inconfundível com o direito conferido pelo registo) é um direito universal, mas que, em concreto, apenas se reconhece a quem mostrar estar dotado de requisitos indispensáveis à obtenção do bem protegido pela norma, tal como exemplificativamente se colhe das alíneas a) a e), do art. 201º. Requisitos que, se verificados, permitem o acesso ao direito com vista à protecção da marca pretendida.

Ora, de acordo com o Aviso do Chefe do Executivo nº 10/2009, no Boletim Oficial nº 20/2009, de 22/05/2009, que manda publicar a parte útil da notificação da Organização Mundial da Propriedade Intelectual relativa à entrada em vigor das modificações e outras alterações à 8.ª Edição da Classificação Internacional de Produtos e Serviços para Efeitos do Registo de Marcas, bem como a 9.ª Edição da Classificação Internacional de Produtos e Serviços para Efeitos do Registo de Marcas, que incorpora as referidas modificações e outras alterações, a classe 36ª do Acordo de Nice relativo à classificação internacional de produtos e serviços para efeito de registo de marcas é mais vasta.
Aquela classe inclui seguros, negócios financeiros, negócios monetários e negócios imobiliários, sendo certo que, seguindo a nota explicativa que a acompanha, “A Classe 36 inclui essencialmente os serviços prestados em negócios financeiros e monetários e os serviços prestados relativamente a contratos de seguros de todos os tipos (…) nomeadamente - serviços relacionados com negócios financeiros ou monetários, a saber:
a) Serviços de todas as instituições bancárias ou instituições com elas relacionadas tais como agências de câmbio ou serviços de compensação; b) serviços de instituições de crédito que não sejam bancos, tais como associações cooperativas de crédito, empresas financeiras individuais, prestamistas, etc.; c) serviços de fundos de investimento e de companhias holding; d) serviços de corretagem em valores e em bens imóveis; e) serviços relacionados com negócios monetários, assegurados por agentes fiduciários; f) serviços relativos à emissão de cheques de viagem e de letras de crédito; — serviços de administração de imóveis, ou seja, serviços de locação, de avaliação ou de financiamento; — serviços relativos a seguros, tais como serviços prestados por agentes ou corretores que se ocupam de seguros, serviços prestados aos segurados e serviços de subscrição de seguros”.

Sendo assim, se às SEV é permitido promover a entrega rápida de valores em numerário, no território de Macau ou no exterior, por ordem de terceiros, após a entrega, por estes, da respectiva contrapartida (art. 2º, do DL nº 15/97/M) e efectuar as operações cambiais estritamente necessárias à prossecução do seu objecto social (art. 3º cit. dip.) com exclusão de qualquer outra (art. 2º, nº2, cit. dip.), cremos que o seu objecto se inscreve no âmbito da classe 36ª enquanto “serviço relacionado com negócios financeiros ou monetários”.

Deste modo, era patente o legítimo interesse da recorrida em obter o registo para o exercício daquela actividade (cfr. ainda o art. 19º do RJPI3).

E é aqui, precisamente, que parece residir a preocupação do recorrente. Quer dizer, para o recorrente, faltaria interesse legítimo à recorrida particular em obter o registo da marca na classe 36ª, por esta conter actividades e serviços estranhos àquele que desenvolvia.

Pois bem. Numa situação de normalidade, não cremos que o facto de alguém estar em exercício de uma determinada actividade não pode impedir de pedir o registo de marca para diferente actividade ou serviço.

Com efeito, o requerente, ao pedir o registo de marca, não tem que restringi-lo a um só serviço ou produto, pois que lhe é permitido fazer o pedido que inclua todas as actividades e serviços que compõem uma certa classe de classificação (art. 206º, al. a), do RJPI)4. Nem sequer lhe é proibido pedir novo registo de marca para produtos, bens ou serviços integrados em classe diferente. Por conseguinte, não é a circunstância de estar a recorrente integrada na classe 36ª que a proíbe de pedir registo para actividade diferente daquela que no momento exerce. Isto em tese, repetimos.

Em segundo lugar, o art. 201º citado não é selectivo no que respeita quanto à actualidade ou ao futuro da actividade e serviços em causa. Não estabelece distinção quanto a esse efeito, e por isso não condiciona o direito ao registo a quem só já estiver em exercício de actividade ou serviço ou em fabricação de bens ou produtos.

Não o faz, nem podia fazer, já que, de outro modo, não faria sentido, por um lado, que o legislador aceitasse que o uso da marca fosse facultativo (art.223º) e, por outro, que o registo de marca pudesse ser cancelado pelo não uso, tal como emerge do art. 231º, nº1, al. b). Quer isto dizer que a marca serve os interesses do requerente e que, uma vez concedido o registo, pode ele usa-la imediatamente, ou deixar o seu uso para mais tarde, embora sem prejuízo da caducidade por falta de utilização séria durante o período de três anos (art. 231º, nº1, al. b))5.

Além disso, nem o pedido de marca para todas as actividades, bens e serviços de cada classe de classificação é motivo para recusa (art. 214º), sendo ainda certo que se o pedido pode ser parcialmente recusado quanto a alguns serviços ou produtos é porque se considera que não há limitação quanto ao número de produtos ou serviços a incluir no pedido.

Efectivamente, embora pareça decorrer do art. 201º do RJPI que a legitimidade se confira ao interessado que geralmente já esteja em exercício de uma actividade no momento do pedido6, o que constituiria um destino imediato da marca, a verdade é que nada obsta a que o interessado possa aceder ao registo da marca, mesmo que, estando em condições de a usar já, somente pretenda vir a usá-la somente no futuro, o que se traduziria num uso diferido ou mediato7.

A questão mais difícil é saber se, mesmo para esse uso futuro, (sempre sujeito a caducidade, recordemos) tem o interessado que estar já em exercício de uma qualquer actividade.

Tanto quanto nos parece, não, porque importa ter presente que a legitimidade do interesse se afere em relação à obtenção da marca. Diferente é a questão do exercício da actividade para a qual a marca é pedida, ou, se quiser de uma maneira mais prosaica, o uso da marca. Só que essa actividade e esse exercício não estão por ora em discussão e apenas têm importância no plano da legalidade da actividade, que não no da legalidade do registo da marca.

Diferente é a posição do citado acórdão da Relação de Lisboa, de 30/09/2009, Proc. nº 3546/3008-1, segundo o qual “O Requerente tem legitimidade quando, no momento do pedido, independentemente da sua natureza jurídica [pessoa singular ou colectiva, de direito privado ou público], exerça ou demonstre poder vir a exercer, por via de regra, empresarialmente, qualquer das actividades económicas indicadas nas várias alíneas do art. 225º, e destine a marca, imediata ou diferidamente, a produtos ou serviços relacionados com essas actividades ou a produtos ou serviços diferentes (utilização indirecta) desde que, nesta última hipótese, já exerça uma efectiva actividade económica”.

De qualquer maneira, mesmo que seja de acolher a ideia que evola do citado aresto, no caso concreto nunca dificuldade alguma a esse respeito se divisaria, porquanto a requerente da marca já estava em exercício de uma actividade no momento em que formulou o pedido de registo de marca para outros bens e serviços de diferente actividade.

Assim sendo, fazendo o ponto da situação, sem grandes dúvidas podemos até este momento concluir que os interessados não têm que estar já em exercício de actividade económica quando fazem o pedido de registo. Mas, se já estiverem, não estão limitados ao pedido de registo de marca para bens, serviços e produtos integrados na classe que corresponde essa actividade.

Por outro lado, nada os impede de pedir o registo da marca para todos os bens e serviços de uma classe ou de classes diferentes.

E por fim, também nada obsta a que o registo seja pedido, não para uso imediato, mas para uso futuro ou diferido.

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Ainda assim, devemos ter por eliminadas todas as dúvidas.

E a principal que ainda resiste é a que interfere com a circunstância de, enquanto SEV, a ora recorrida não poder exercer qualquer outra actividade, como se viu (art. 2º, nº2, do DL nº 15/97/M).

É nesse plano que a recorrente coloca o seu enfoque impugnativo, contrariando a posição da sentença, a qual, em duas ou três breves linhas, parece ter desviado da mira da sua atenção a actividade em si mesma. Isto é, segundo se depreende do julgado, não teria o tribunal que fazer um exercício de antecipação sobre a legalidade (ou não) da actividade que futuramente a “Sociedade de Entrega de Valores A (Macau) Limitada” viesse a desenvolver à sombra da marca concedida.

Isto é, se conseguimos ser fiéis ao raciocínio exibido na sentença, a questão do interesse legítimo seria, nesta fase, indiferente ao exercício concreto e futuro da actividade para que tendia o registo pedido. Uma coisa seria, portanto, a legalidade do pedido (se quisermos a legitimidade para a formulação do pedido), outra, diferente, seria a legalidade do uso da marca no exercício vindouro de actividade diferente daquela que no momento do pedido era exercida.

O raciocínio que desta maneira ousamos entrever nas palavras da sentença posta em crise está quase perfeito e, para o completarmos, até lhe poderíamos acrescentar algo que nela faltou: que eventual impedimento ao exercício da marca só existe enquanto SEV, mas que nada proíbe que a sociedade possa vir a transformar o seu objecto social, deixando de ser SEV, caso em que fica acautelada a possibilidade do exercício de qualquer uma das outras actividades e serviços, nomeadamente, por exemplo, os alusivos a contratação de seguros. E assim, nem os novos produtos ou serviços teriam que ser o prolongamento da actividade já exercida, nem a requerente do registo tinha que provar estar em vias de alterar o seu objecto social ou demonstrar que outra actividade ou serviço dentro da classe estava em vias de ser iniciada, ao contrário do que defende a recorrente.

Bem. Realmente, a actividade em si mesma não é preocupação que esteja em debate. Isso é já assunto para abordagem noutra perspectiva que não vem equacionada. Nesse ponto, tem a sentença razão.

Não podemos, contudo, esquecer que estamos no âmbito de um procedimento administrativo. Ou seja, ainda que o RJPI não forneça a solução directa para o problema equacionado em nenhum dos seus preceitos, não podemos deixar de ter presente que a iniciativa do procedimento (aqui, iniciativa particular para a abertura do procedimento) tem regras.

O art. 55º do CPA estipula que “Têm legitimidade para iniciar o procedimento administrativo…os titulares de direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos…”.

Os requerentes têm que assentar o seu direito subjectivo ou interesse invocado numa norma que, ao menos reflexamente, satisfaça a sua pretensão. Quer dizer, se a norma esta gizada para tutelar o interesse público, indirectamente abriga os direitos e interesses do particular sempre que ele possa ser titular de uma posição jurídica concreta que o coloca no âmbito de incidência dela. Razão pela qual a lei (art. 55º citado) lhe permite o uso instrumental do procedimento para aceder à realização do seu direito ou interesse.

Do ponto de vista substantivo, isto é, segundo o universo normativo que confere direitos e satisfaz interesses, muitas vezes as próprias normas acabam por estabelecer as condições para o exercício pela Administração do seu poder em ordem à satisfação das posições jurídicas substantivas dos interessados na decisão do procedimento8. Nesses casos, a própria legitimidade procedimental acaba por ficar desde logo traçada sem ser preciso recorrer à norma do art. 55º do CPC.

Mas, no caso concreto, o RJPI apenas toca no assunto no art. 201º, como vimos. Mas, não tendo a norma um carácter exaustivo na sua previsão, nem contendo ela uma definição dos requisitos concretos de acesso ao direito, senão através da fórmula do “legítimo interesse”, será preciso descobrir noutro lado – se necessário for, no citado art. 55º do CPC – os critérios de acesso ao procedimento.

Ora, como já observámos, as SEV estão limitadas no exercício da sua actividade. A lei é muito clara e imperativa: proíbe que elas possam prestar serviços que, por natureza, caibam a outros agentes económicos. Sendo assim, se a empresa desenvolve a actividade de entrega de valores (classe 36ª), nenhuma outra actividade pode mais ela exercer, qualquer que seja a classe em que esta possa ser integrada. Não pode agora, nem nunca! Isto é, por causa da sua especial natureza, a lei criou um obstáculo insuperável às SEV.

Então, se a lei assim o estatuiu, a única conclusão a extrair é de que a posição jurídica substantiva da requerente só merece tutela jurídica enquanto Sociedade de Entrega de Valores, não já para o desempenho concreto de outro qualquer objecto social. Portanto, a ordem jurídica não lhe confere direitos novos ao exercício de diferente actividade, não protege os seus interesses dirigidos a esse fim, nem tão pouco ampara as suas expectativas.

Da mesma maneira que “não tenho legitimidade para desencadear um procedimento respeitante a uma licença de obras só porque tenho em vista comprar o respectivo terreno”9 (posso a vir a ser dono do terreno, mas ainda não sou, nem é seguro que o venha a ser), assim também se considera que não faz sentido uma legitimidade diferida dependente da verificação de uma condição suspensiva. Isto é, não pode conferir-se legitimidade para iniciar um procedimento se no momento em que formula o pedido a ora recorrida não reunia as condições de acesso ao direito, nem podia vir a reunir enquanto SEV.

Se não é possível, por conseguinte, reconhecer um direito por antecipação de uma situação de facto que pode não vir a acontecer na realidade, isso equivale a dizer que não é possível reconhecer legitimidade à iniciativa procedimental.

O que acaba de dizer-se não obstaria, mesmo assim, a que a própria entidade administrativa (DSE) pudesse produzir um acto de concessão do registo da marca sujeito a eficácia diferida (art. 119º, al. b), do CPC), isto é, um acto de registo de marca cujos efeitos se começariam a produzir se e somente quando a requerente viesse a comprovar ter deixado de ser SEV (condição suspensiva). Nada disso estaria errado, nem contenderia com o problema de legitimidade para a iniciativa procedimental.

Mas, acontece que nem o pedido foi feito nessa base, nem o acto foi de concessão do registo com tal eficácia diferida.

Assim, porque no momento em que formulou o pedido a requerente não reunia os pressupostos de acesso ao direito, sendo até certo que a ordem jurídica lho proibia mesmo, então ela não dispunha de legitimidade procedimental por carência de interesse legítimo na acepção estudada e, consequentemente, a DSE também não lho podia conceder.

Neste sentido, não andou bem a sentença na interpretação do art. 201º do RJPI, nem na solução que acabou por alcançar.

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2- No que respeita à alegada contradição na fundamentação da sentença, o destaque feito pelo recorrente vai para a seguinte passagem da decisão recorrida:

“Embora não cabendo apreciar nesta sede a matéria invocada quanto à legalidade do exercício da actividade por banda da requerente da marca, o certo é que nada do que se invoca corresponde ao registo comercial desta, tratando-se tão só de uma empresa com sede em Macau, com a firma que se refere e da qual é sócia uma sociedade do grupo A ligado ao Banco do Oro das Filipinas”.

Pois, embora nos pareça que este parágrafo é inócuo no que concerne à questão central em debate, e por isso nenhuma influência poderia ter no desenlace final decisório, ainda assim estamos capazes de compreender o sentido do texto transcrito.

O que o M.mo juiz terá querido dizer é que, em primeiro lugar, lhe não cabia analisar nesta sede a eventual ilegalidade do exercício da actividade da requerente. O que estava em causa era apreciar se podia ter sido concedido o registo e se para tal tinha legitimidade para o pedir. Saber se viria a ser legal o exercício dessa ou outra actividade integrada na classe 36ª era questão para já arredada da discussão.

Em segundo lugar, o que o M.mo juiz teria em mente na 2ª parte do parágrafo, segundo parece lógico inferir-se do contexto da afirmação, era que o eventual exercício de outra actividade fora da SEV não correspondia de momento ao que consta da certidão de registo comercial (fls. 50 do p.a. apenso), pois aí se descreve a actividade de entrega rápida de valores em numerário.

Portanto, se estamos a ser fiéis ao pensamento do autor da sentença recorrida, nada do que ali foi exarado está mal dito ou representa contradição de fundamentação.

E, seja como for, trata-se de um segmento fundamentativo que se nos afigura inerte, portanto dispensável, e sem importância decisiva à solução do tema da legitimidade do interesse, tal como vem colocado no recurso.

Eis por que somos a considerar não haver razão para censurar o julgado na parte sindicada.

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IV- Decidindo

Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença da 1ª instância e, por consequência, nos termos do art. 279º, nº 2do RJPI, revogando o despacho acto recorrido.

Custas pela recorrida em ambas as instâncias.


TSI, 16 / 02 / 2012


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José Cândido de Pinho
(Relator)

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Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Ainda que adaptando o conceito à utilização do recurso contencioso, ver M. Caetano, «Manual...» vol. II, pag. 1357; F. Amaral, Direito Administrativo, 1988, IV, pag. 171; Guilherme da Fonseca, in «Condições de procedibilidade» na obra Contencioso Administrativo, Livraria Cruz, Braga, pag. 201.

2 Freitas do Amaral, in Direito Administrativo cit., II, pag. 86-98.
3 “Tem legitimidade para requerer a prática de quaisquer actos jurídicos perante a DSE aqueles que tiverem interesse relativamente aos referidos actos”.
4 Nalguns países, o pedido é restringido a um determinado número de produtos ou serviços. Será o caso do Brasil, que parece limitá-lo a três em cada classe.
5 Neste mesmo sentido, ver Luis Couto Gonçalves, in Manual de Direito Industrial, 2ª ed., pag. 254.
6 Assim parece ser, por exemplo, no Brasil, pois que segundo o art. 128º da Lei de Propriedade Industrial (Lei nº 9279/1996, de 14/05): “…só podem requerer registro de marca relativo à atividade que exerçam efetiva e licitamente, de modo direto ou através de empresas que controlem direta ou indiretamente, declarando, no próprio requerimento, esta condição, sob as penas da lei” (negrito nosso)
7 Luis M. Couto Gonçalves, in Função Distintiva da Marca”, Almedina, 1999, pag.156. Neste sentido, também o ac. da R. L de 30/09/2008, Proc. nº 3546/3008-1.
8 Por exemplo, se a lei disser que o juiz tem direito de uso e porte de arma de defesa, a legitimidade para o respectivo pedido e, portanto, para o desencadeamento de um processo de iniciativa particular com ele aquele fim, já está ali contida.
9 O interesse tem que ser actual. Neste sentido, Mário Esteves de Oliveira e outros, in Código do Procedimento Administrativo, 2ª ed., pag.281.
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