Processo n.º 77/2012 Data do acórdão: 2012-2-23
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– tomada de declarações para memória futura
– decisões contraditórias já transitadas em julgado
– art.o 580.o, n.o 2, do Código de Processo Civil
S U M Á R I O
1. Como o despacho judicial ora recorrido se limitou, a propósito do idêntico pedido da assistente de inquirição de uma testemunha sua para memória futura, a repetir ou manter a decisão de indeferimento já emitida em 23 de Junho de 2011, devia a assistente ter recorrido dessa decisão de 23 de Junho, pelo que à falta de impugnação tempestiva desse despacho, a decisão nele tomada, de indeferimento da inquirição, já transitou em julgado, caso julgado formal esse que impede o conhecimento agora do mérito do presente recurso interposto pela assistente.
2. Segundo o art.o 580.o, n.o 1, do vigente Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do actual Código de Processo Penal: “Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que transitou em julgado em primeiro lugar”.
3. Como o sentido decisório do referido despacho de indeferimento de 23 de Junho de 2011 é contrário ao do despacho anteriormente proferido em 9 de Junho de 2011 na parte em que se decidiu solicitar à assistente para “informar quando a testemunha seja disponível ... para efeitos da marcação da nova data de diligência”, e tendo ambas essas duas decisões já transitado em julgado, mas incompatíveis entre si, há que mandar cumprir a dita anterior decisão sobre uma mesma questão concreta de cariz processual posta pela assistente em 26 de Maio de 2011, traduzida na pretensão de inquirição de uma testemunha sua para memória futura, com fundamento na saída desta de Hong Kong para trabalhar no estrangeiro.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 77/2012
(Autos de recurso penal)
Recorrente: A
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com a decisão do Juízo de Instrução Criminal que indeferiu em 6 de Julho de 2011, o seu pedido de 30 de Junho de 2011 de tomada das declarações de uma testemunha para memória futura, veio a assistente A, já melhor identificada nos autos de inquérito penal subjacentes, recorrer para este Tribunal de Segunda Instância, para peticionar, com invocação essencialmente do erro de direito na aplicação do art.o 253.o do vigente Código de Processo Penal (CPP), a revogação dessa decisão, com consequente determinação da inquirição para memória futura (cfr. a motivação de fls. 2 a 10 do presente processado recursório).
Ao recurso respondeu o Ministério Público (a fls. 129 a 130v) no sentido de procedência da pretensão da recorrente.
Subido o recurso em 30 de Janeiro de 2012 (depois de decidida a reclamação do despacho judicial de retenção do recurso), emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 362 a 362v), pugnando pelo provimento do recurso.
Feito o exame preliminar e corridos os vistos, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
Por decisão do Juízo de Instrução Criminal de 31 de Maio de 2011 – emitida sobre o pedido, então formulado pela assistente ora recorrente A, de tomada de declarações, possivelmente em mês de Julho desse ano, de uma testemunha sua para memória futura, com fundamento na planeada saída dessa testemunha de Hong Kong para trabalhar no estrangeiro – foi designada a data de 13 de Junho de 2011, pelas 10 horas, para inquirição da testemunha nos termos do art.o 253.o do CPP (cfr. o teor do requerimento de fl. 3419 e do despacho judicial de fl. 3422 dos autos de inquérito subjacentes).
Em 9 de Junho de 2011, a assistente pediu a alteração da data de inquirição para 27 de Junho de 2011, com fundamento em que a testemunha em causa tinha outros assuntos a tratar e por isso não poderia vir para Macau para depor na data inicialmente designada (cfr. o teor de fl. 3437 dos mesmos autos).
Por despacho judicial de 9 de Junho de 2011, deu-se sem efeito a diligência inicialmente agendada para o dia 13 de Junho de 2011, e solicitou-se ao Exm.o Mandatário da assistente para “informar quando a testemunha seja disponível, com excepção da data sugerida, i.e., 27 de Junho de 2011, para efeitos da marcação da nova data de diligência” (cfr. o despacho de fl. 3439 dos mesmos autos).
Na sequência disso, a assistente informou o Juízo de Instrução Criminal de que a mesma testemunha poderia vir depor em 27, 28 e 29 de Junho de 2011 (cfr. a resposta de fl. 3450 dos mesmos autos).
Por despacho judicial de 13 de Junho de 2011, foi determinada a notificação da assistente para vir apresentar, em dez dias, prova documental da data exacta da deslocação da dita testemunha para trabalhar no estrangeiro (cfr. o despacho de fl. 3454 dos mesmos autos).
Em 23 de Junho de 2011, a assistente expôs ao Juízo de Instrução Criminal que por motivos profissionais a testemunha “se encontra a residir no Japão, conforme cópia do passaporte onde consta o visto de permanência emitido por aquele país (DOC. 1) e bem como cópia do cartão de visita onde consta o seu domicilio profissional (Doc. 2) podendo, no entanto, deslocar-se à Região Administrativa Especial de Macau no período compreendido entre os dias 4 a 8 de Julho de 2011 para os efeitos tidos por convenientes, como seja a prestação de declarações para memoria futura” (cfr. o teor sic de fl. 3463 dos mesmos autos).
Em 23 de Junho de 2011, decidiu o Juízo de Instrução Criminal indeferir a inquirição para memória futura, sobretudo por entender que: tendo em conta que a assistente não forneceu a documentação comprovativa da saída da testemunha de Hong Kong para ir trabalhar no estrangeiro e da permanência desta a longo prazo no estrangeiro, e que a testemunha era residente de Hong Kong, podendo entrar em Macau em qualquer momento, o pedido da assistente, de 26 de Maio de 2011, de tomada de declarações da testemunha para memória futura, não satisfaz o disposto no art.o 253.o, n.o 1, do CPP (cfr. o teor do despacho de fls. 3466 a 3466v dos mesmos autos).
Em 30 de Junho de 2011, veio a assistente voltar a pedir ao Juízo de Instrução Criminal a inquirição da mesma testemunha para memória futura, em qualquer data e hora dentro do período de 4 a 8 de Julho de 2011 (cfr. o teor de fls. 3506 a 3509 dos mesmos autos).
Em 6 de Julho de 2011, o Juízo de Instrução Criminal decidiu manter o despacho de fl. 3466 dos mesmos autos, por entender que não há nova prova a comprovar que a testemunha satisfaz o n.o 1 do art.o 253.o do CPP e que tendo a testemunha o dever de colaborar com o tribunal na investigação da verdade das coisas, não pode invocar motivos profissionais ou a sua vida profissional ocupada para exigir que o tribunal tenha que a inquirir dentro do prazo por ela indicado (cfr. o despacho de fl. 3526 dos mesmos autos).
É dessa decisão judicial de 6 de Julho de 2011 que veio recorrer a assistente em 19 de Julho de 2011 (cfr. o teor de fls. 2 a 11 do presente processado recursório), enquanto todas as outras decisões judiciais acima referidas não chegaram a ser impugnadas por quem de direito.
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
Na sua motivação, alegou a assistente, como fundamento nuclear do recurso, que: “A Mma. Juiz de Instrução Criminal, ao desconsiderar o anterior despacho de fls. 3422, que determinou a realização da diligência de prestação de declarações para memória futura, e ao indeferir por despacho de fls. 3526 a realização de tal diligência, por entender agora que não se mostram preenchidos os pressupostos legais para a tomada das declarações para memória futura à testemunha …, designadamente por alegadamente residir a testemunha em Hong Kong e não estar impedida de entrar e sair da RAEM, inquinou o despacho ora em crise, por ter incorrido em vício de erro na aplicação do direito por violação do disposto no art. 253o do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser o despacho recorrido revogado, e proferida decisão que mande proceder à inquirição da testemunha … em declarações para memória futura” (cfr. o teor sic de fls. 8 a 9 do presente processado recursório).
Entretanto, afigura-se a este Tribunal ad quem, perante os dados processuais acima coligidos na parte II do presente acórdão, que como o despacho ora recorrido, datado de 6 de Julho de 2011, se limitou, a propósito do idêntico pedido da assistente de inquirição de uma testemunha sua para memória futura, a repetir ou manter a decisão de indeferimento já emitida em 23 de Junho de 2011, devia a assistente ter recorrido dessa decisão de 23 de Junho, e não da de 6 de Julho, pelo que à falta de impugnação tempestiva do dito despacho de 23 de Junho de 2011, a decisão nele tomada, de indeferimento da inquirição, já transitou em julgado, caso julgado formal esse que, processualmente falando, impede o conhecimento agora do mérito do presente recurso do despacho de 6 de Julho.
Não obstante, é de mandar observar agora, e oficiosamente, a seguinte norma do art.o 580.o, n.o 1, do vigente Código de Processo Civil, ex vi do art.o 4.o do CPP: “Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que transitou em julgado em primeiro lugar”.
Com efeito, vê-se nos dados processuais elencados na parte II do presente aresto, que o sentido decisório do despacho de indeferimento de 23 de Junho de 2011 é contrário ao do despacho anteriormente proferido em 9 de Junho de 2011 (a fl. 3439) na parte em que se decidiu solicitar ao Exm.o Mandatário da assistente para “informar quando a testemunha seja disponível, com excepção da data sugerida, i.e., 27 de Junho de 2011, para efeitos da marcação da nova data de diligência”, pelo que tendo ambas essas duas decisões já transitado em julgado, mas incompatíveis entre si, há que mandar cumprir a “primeira” decisão, de 9 de Junho de 2011, sobre uma mesma questão concreta de cariz processual posta pela assistente em 26 de Maio de 2011, traduzida na pretensão de inquirição de uma testemunha sua para memória futura, com fundamento na saída desta de Hong Kong para trabalhar no estrangeiro.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em não conhecer do mérito do recurso do despacho judicial de 6 de Julho de 2011, e, não obstante, determinar o cumprimento do anterior despacho judicial de 9 de Junho de 2011 na parte referente à marcação da nova data de tomada de declarações para memória futura, com prévia auscultação da assistente.
Custas do presente processado recursório pela assistente, com duas UC de taxa de justiça.
Macau, 23 de Fevereiro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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