Proc. nº647/2010
(recurso contencioso)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 07 de Dezembro de 2011
Descritores:
- Desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários
- Acto injusto
- Acto desproporcional
SUMÁRIO:
I- A total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários” que serve de fundamento ao recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC) é aquela que tem o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. Decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional.
II- Um acto desproporcional é desregrado, desmedido, é desequilibrado entre o interesse público subjacente e o interesse privado nele envolvido; é um acto que apresenta uma dispositividade com uma dimensão maior do que era expectável ou aconselhável que tivesse.
III- Um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este se lhe impõe, apesar disso, um gravame penoso demais.
Processo nº 647/2010
(Recurso Contencioso)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A, de nacionalidade chinesa e titular do passaporte da República Popular da China nº G35431XXX, recorre contenciosamente do despacho do Exmo. Secretário para a Economia e Finanças de 28/05/2010 (1), que indeferiu o pedido de renovação de autorização de residência temporária de seu pai B com fundamento na al. 1) do nº2, do art. 9º da Lei nº 4/2003, ex vi art. 11º do DL nº 14/95, de 27 de Março.
Na petição inicial o recorrente apresentou as seguintes conclusões:
1. A decisão sob censura viola dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e da justiça.
2. Foi concedido ao Requerente e aos membros do seu agregado familiar autorização de residência, pelo período de 3 anos, tendo a família desde então, passado a residir em Macau.
3. A mãe do Requerente é funcionária do casino Kampek, desempenhando a função de dealer.
4. O pai do o Requerente é engenheiro.
5. O Requerente, por sua vez, é proprietário de 4 fracções autónomas, e é bate-fichas.
6. Encontrando-se o agregado familiar perfeitamente enraizado, bem como social, económica e profissionalmente integrado em Macau.
7. O facto de o pai do Requerente ter sido condenado na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, não determina só por si a recusa da autorização de residência.
8. Tendo em conta as circunstâncias do agregado familiar, bem como a lei aplicável, entende o Requerente que a Administração deveria ter decidido em sentido diverso.
9. O n.º 2 d art.º 9.º da Lei n.º 4/2003, prescreve que para além dos antecedentes criminais deverá também atender-se a outros aspectos, tais como os meios de subsistência de que o interessado dispõe; as finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade; a actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM; os laços familiares do interessado com residentes da RAEM; bem como razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro pais ou território.
10. O pai do Requerente preenche todos os demais requisitos da lei, encontrando-se empregado, para além de ter aqui residência, juntamente com o seu agregado familiar, desde 2005, o qual se encontra perfeitamente integrado.
11. Os factos praticados pelo pai do Requerente remontam a 2000, tendo decorrido cerca de 10 anos desde a sua prática, além de que foram praticados anteriormente à concessão do pedido de autorização de residência.
12. Conforme se vê do art.º 4 da Lei n.º 4/2003, o facto de o pai do Requerente ter sido condenado, não determina a recusa automática da concessão do visto de residência. O art.º 4 da Lei n.º 4/2003 estipula duas situações diferentes, consoante a sua gravidade. O n.º 1 daquele artigo estipula as situações em que é desde logo “recusada a entrada dos não-residentes na RAEM”. O n.º 2, por sua vez, estipula os casos em que a entrada dos não residentes pode ser recusada.
13. Ou seja, o órgão decisor, tem a liberdade para avaliar a situação, tendo em conta os outros factores de que lei faz depender a concessão da residência.
14. A prolação da decisão sob censura demonstra que na apreciação dos factos, não se levou em devida conta a situação pessoal, profissional e familiar do agregado do Requerente, pois caso contrário tal decisão de indeferimento seria proferida.
15. As soluções concretas dos casos, para além das soluções normativas, não podem deixar de estar submetidas ao princípio da justiça.
16. A decisão recorrida afigura-se manifestamente excessiva, desrazoável, desproporcionada e injusta, pelo que deve a mesma ser invalidada por pôr em causa tais exigências fundamentais.
17. A decisão tomada violou o artigo 4.º da Lei n.º 4/2003, aplicável ex vi art.º 11.º do Decreto-Lei 14/95/M, de 27 de Março, padece do vício de violação de lei por erro nos pressupostos e por total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários, bem como viola os princípios da proporcionalidade e justiça, consagrados, respectivamente na al. d) do n.º 1 do art.º 21.º do Código de Processo Administrativo Contencioso e nos artigos 5.º e 7.º do Código do Procedimento Administrativo.
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Contestou a entidade recorrida, formulando as seguintes conclusões:
a) O recorrente contradiz-se ao, por um lado, arguir erro nos pressupostos e, por outro, reconhecer claramente a correcção dos mesmos;
b) O acto impugnado foi praticado no exercício de poderes discricionários,
c) e não é totalmente desrazoável recusar autorização de residência a quem mais do que uma vez cometeu crimes puníveis pela lei de Macau;
d) Não sendo o acto administrativo discricionário totalmente desrazoável, são irrelevantes, para efeitos de recurso contencioso, as questões da justiça e da proporcionalidade.
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O processo prosseguiu para a fase das alegações facultativas, limitando-se o recorrente a oferecer o merecimento dos autos.
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O digno Magistrado do MP opinou no sentido da improcedência do recurso.
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Cumpre decidir.
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II- Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.
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III- Os Factos
1- Em Abril de 2005 o recorrente A requereu ao IPIM autorização de residência em Macau, tendo adquirido 4 fracções autónomas no valor superior a um milhão de patacas e começado a trabalhar como bate-fichas.
2- O recorrente estendeu o seu pedido de autorização de residência ao seu agregado familiar, constituído pelos seus pais com quem residia.
3- O pedido foi deferido pelo período de três anos.
4- A mãe do recorrente é trabalhadora do casino Kampek, onde desempenha a função de dealer.
5- O pai do recorrente é engenheiro.
6- O pai do recorrente, de nome B, ou C, fora condenado no TJB da RAEM por sentença de 04/01/2000 na pena de 4 meses de prisão, suspensa por dois anos, como autor material de um crime de acolhimento ilegal, p.p. pelo art. 8º, nº1, da Lei nº 2/90/M, de 3/05 (fls. 37 e 38 do apenso instrutor), pena que foi extinta por decisão de 8/05/2002, ao abrigo do art. 55º, do Cod. Penal de Macau (fls. 39 do apenso instrutor).
7- A mesma pessoa referida em 6 foi ainda condenada por sentença de 8/10/2002, tendo a pena sido extinta com base no art. 55º do Cod. Penal de Macau por decisão de 20/06/2005 (fls. 40 e 41 do apenso instrutor).
8- Em 14/08/2008 o recorrente pediu a renovação da autorização de residência temporária para si e para os membros do agregado, pai e mãe (fls. 25-30 do apenso instrutor).
9- Em 28/05/2010 o Ex.mo Secretário para a Economia e Finanças deferiu o pedido em relação ao recorrente e sua mãe, mas indeferiu-o no que se refere ao pai, com base no teor do Parecer nº 1121/Residência/2005/1R (fls. 3 a 6 do apenso instrutor).
10- Tal parecer tem o seguinte conteúdo:
PARECER n.º 1121/Residência/2005/01R
Assunto: Apreciação do requerimento para fixação de residência com projecto de investimento
1. Solicitam a renovação da autorização de residência temporária as seguintes pessoas:
Num.
Nome
Relação
Documento
Num. Do documento
Prazo de validade
Prazo de validade de título de residência temporária
1.
A
Requerente
Passaporte da China
G25152XXX
11 de Outubro de 2017
1 de Novembro de 2008
2.
B
Ascendente
Passaporte da China
G20560XXX
30 de Junho de 2018
1 de Novembro de 2008
3.
D
Ascendente
Passaporte da China
G20560XXX
30 de Junho de 2018
1 de Novembro de 2008
2. O requerente A assinou “nota de elementos adicionais” quando a este pedido da renovação de autorização de residência temporária, prometendo que submetem o esclarecimento de registo criminal do seu ascendente B e a respectiva sentença do tribunal (vide documento constante de fls. 29 dos autos).
3. De acordo com o certificado de registo criminal emitido pela Direcção dos Serviços de Identificação de Macau em 23 de Junho de 2008, o ascendente do requerente, B foi condenado, respectivamente em 2000 e 2002, pela prática de “migração ilegal” prevista no art.º 8.º, n.º 1 da Lei n.º 2/90/M de 3 de Maio e de “uso ou posse de documento alheio” prevista no art.º 13.º da mesma Lei, na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, e de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. Segundo os dados, tais registos criminais já se extinguiram.
4. Em relação aos actos ilícitos acima referidos, o ascendente do requerente, B enviou uma carta em 28 de Agosto de 2008, indicando que ele foi punido pela lei acima referida por ter usado em 2000 documento alheio e que ele já conhece a lei de Macau, razão pela qual tem observado esta desde que imigrou a Macau 3 anos antes. Na carta B pediu que lhe seja concedida uma oportunidade para que ele se corrija e permaneça em Macau a reunir-se com os seus familiares. (vide documentos a fls. 30)
5. No entanto, ao abrigo do art.º 9.º, n.º 2, al. 1) da Lei n.º 4/2003 que se aplica subsidiariamente, para efeitos de concessão da autorização de residência temporária, deve atender-se às antecedentes criminais, ao comprovado incumprimento das leis da RAEM ou a qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei, nomeadamente, se os interessados terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior.
6. Nesse processo, B violou por duas vezes lei de Macau, e foi condenado respectivamente na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos, e de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos. Apesar de tais registos criminais já se extinguiram, não podemos negar o facto de ele ter sido punido na pena de prisão por a não observância da lei de Macau. Pelo que não podemos dar uma opinião positiva relativamente ao pedido da renovação de autorização de residência temporária de B, ascendente do requerente.
7. O recorrente solicitou a autorização da fixação de residência temporária a IPIM com a aquisição de bens imóveis de Macau no valor de um milhão de patacas como o fundamento. O respectivo requerimento foi deferido em 1 de Novembro de 2005.
8. Para os efeitos da renovação da autorização acima referida, o requerente apresentou o relatório escrito da Conservatória do Registo Predial e outros documentos para provar que solicitou a respectiva renovação tomando ainda os bens imóveis fundamentais:
1) Imóvel n.º 2865
Rua de Camilo Pessanha, no.17, Edf. XX, XX.º Andar A
Valor: MOP $309.000,00
Data de registo: 24 de Março de 2005 (160)
2) Imóvel n.º 21502-I
Rua de Malaca, no.186, Centro Internacional de Macau I (Torre I), AC/V2 (105700 G) Estacionamento 2/560
Valor: MOP $103.200,00
Data de registo: 24 de Março de 2005 (160)
3) Imóvel n.º 21970-VII
Avenida 1 de Maio, no.358, Edf. Kam Hoi San, Bloco VII, XX (115480 G) Estacionamento 1/27
Valor: MOP $5.160,00
Data de registo: 12 de Julho de 2005 (325)
4) Imóvel n.º 21502-II
Rua do Terminal Marítimo, n.º 93, Centro Internacional de Macau I (Torre II), XX.º Andar XX,
Valor: MOP $587.955,00
Data de registo: 18 de Março de 2005 (198)
Finda a apreciação, provou-se:
1) Os documentos de identificação do requerente e da sua ascendente D preenchem os requisitos para a renovação de autorização de residência temporária, no entanto, os documentos de identificação do ascendente do requerente, B, não preenchem tais requisitos;
2) O requerente ainda preenche as disposições legais sobre investimento em bens imóveis de Macau por 1 milhão de patacas.
11- O Digno recorrido proferiu o seguinte despacho em 28/05/2011:
“Deferido conforme proposto” (doc. fls. 19 do apenso instrutor).
12- Desse despacho foi o recorrente notificado pelo ofício nº 09825/GJFR/2010 de 25/06/2010 (fls. 2 do p.a.).
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III- O Direito
1- Está em causa nos autos a não renovação de residência a B, ficando a solução do problema dependente da análise da Lei nº 4/2003, de 17/03, do DL nº 14/95, de 27/03 e do Regulamento Administrativo nº 5/2003, de 4/04.
O despacho em crise de 28/05/2010 assentou na circunstância de o interessado ter praticado dois ilícitos criminais, um pela prática de “acolhimento ilegal”, outro por “uso ou posse de documento alheio”, previstos nos arts. 8º, nº1 e 13º, respectivamente, da Lei nº 2/90/M, de 3/05, pelos quais viria a ser condenado em penas de prisão cuja execução em ambos os casos foi suspensa por dois anos.
Para o acto sindicado, a factualidade sobre que recaiu colocou o interessado sob a mira do art. 9º, nº2, al.1), da Lei nº 4/2003, razão pela qual não foi autorizada a renovação.
O recorrente, filho do interessado a quem foi negada a renovação de residência (apesar disso no pedido inicial de autorização o ascendente foi incluído no agregado do filho, ao abrigo do art. 4º, nº2, al. b), do DL nº 14/95: ver fls. 25 s sgs. do apenso instrutor), entende que um tal despacho padece dos seguintes vícios:
- Erro sobre os pressupostos de facto;
- Desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários;
- Violação dos princípios da proporcionalidade, razoabilidade e justiça.
Vejamos.
2- A propósito do erro sobre os pressupostos de facto pouco ou nada de relevante o recorrente invocou. Na verdade, além de não negar a prática de um crime pelo seu progenitor, até omitiu o facto de ele, na realidade, ter cometido outro crime pelo qual viria a ser também condenado em pena de prisão suspensa por dois anos. Ou seja, foram dois os ilícitos que motivaram a decisão administrativa em apreço.
É verdade que as penas impostas a um e outro foram já julgadas extintas pelo decurso do prazo de suspensão, conforme se pode ler no apenso instrutor (fls. 39 a 42). E também é certo que, decorrido o prazo de cinco anos sobre a extinção da pena, a decisão condenatória é cancelada no registo criminal por efeito da reabilitação de direito (art. 23º, nº1, al. a), e 24º, nº1, al. b), do DL nº 27/96/M, de 3/06 (diploma sobre o registo criminal).
Todavia, em relação ao crime pelo qual foi condenado em 4/01/2010 a reabilitação não podia ter lugar em virtude do pai do recorrente ter entretanto ter cometido novo ilícito (cfr. art. 24º, nº1, “in fine”, citado DL nº 27/96/M). E quanto ao 2º ilícito, punido por decisão de 8/10/2002, tendo a extinção da pena ocorrido em 20/06/2005 (fls. 41 do apenso instrutor), ainda não tinha expirado o prazo de cinco anos para a reabilitação quando o acto administrativo impugnado foi praticado.
A ser assim, além de ser certo que o interessado pai do recorrente cometeu os factos que estiveram na base do despacho de não renovação da autorização de residência, certo é que as penas, apesar de extintas, ainda não estavam canceladas do registo por via da reabilitação.
Quer isto dizer que os factos em causa, além de verdadeiros, podiam ser utilizados como fundamentação para a decisão administrativa tomada.
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3- Sobre a desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários, a violação do princípio da proporcionalidade, da justiça e da proporcionalidade, o recorrente explana razões que, em seu entender, revelam o desacerto do acto impugnado.
Para melhor compreendermos o quadro legal, importa que nos fixemos nalgumas disposições legais.
O art. 8º do DL nº 14/95/M dispõe que:
“1. A renovação dos títulos de residência deve ser requerida ao IPIM até trinta dias antes do termo do respectivo período de validade.
2. A renovação está sujeita à verificação dos mesmos requisitos da emissão inicial do título de residência e é concedida por igual período de validade.
3. Sem prejuízo do disposto no número anterior, a renovação dos títulos de residência dos indivíduos a que se refere a alínea c) do n.º 1 do artigo 1.º não está dependente da manutenção do vínculo contratual alegado no pedido inicial, desde que seja feita prova de novo exercício profissional como tal devidamente tributado”.
Sendo assim, porque a renovação não se desliga das condições de uma autorização inicial, importa ver quais serão elas.
Ora, o âmbito pessoal fixado no art. 1º desse mesmo diploma estabelece que podem fixar residência em Macau: a) os titulares de projectos de investimento considerados relevantes; b) Os titulares de investimentos relevantes, sendo que no nº2 do preceito se diz que se podem ainda habilitar à fixação de residência as pessoas do agregado familiar dos indivíduos referidos no número anterior.
Todavia, a simples circunstância da verificação desta condição base não basta para a concessão, nem para a renovação. Estamos, não esqueçamos, ante uma norma que define apenas o seu âmbito pessoal de aplicação. Diz quem pode ser residente, não diz que as pessoas ali previstas são ou devam ser necessariamente residentes. Para que possam sê-lo, importa que reúnam outros requisitos.
E eles estão plasmados no art. 9º da Lei nº 4/2003.
Assim é que na análise do pedido, são considerados vários aspectos, como sejam (nº2):
1) Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei;
2) Meios de subsistência de que o interessado dispõe;
3) Finalidades pretendidas com a residência na RAEM e respectiva viabilidade;
4) Actividade que o interessado exerce ou se propõe exercer na RAEM;
5) Laços familiares do interessado com residentes da RAEM;
6) Razões humanitárias, nomeadamente a falta de condições de vida ou de apoio familiar em outro país ou território.
Ora, visto o que acaba de transcrever-se, não é suficiente que o interessado seja investidor relevante, pois é preciso que disponha concomitantemente de meios de subsistência e que comprove a verificação dos requisitos positivos e negativos alinhados de forma não exaustiva (“nomeadamente”: ver nº2) no referido art. 9º.
A alínea 1) do nº2 desse artigo 9º mostra-se de particular importância: pretende o legislador ali, tal como o tinha já exposto no art. 4º antecedente, que à RAEM não interessa que acedam, para aqui residirem, pessoas indesejáveis, que se não comportem de forma respeitadora da ordem e da lei, que tenham cometido crimes. O legislador quer que os investidores sejam pessoas boas, cidadãos honestos e de bom carácter. E uma das formas de avaliar o comportamento desviante do interessado é através da análise do certificado do registo criminal. E em função do que se apurar a respeito dos antecedentes criminais, do incumprimento das leis da RAEM ou de qualquer outra circunstância referida no artigo 4º, assim será possível, ou não, obter a pretendida autorização de residência (art. 9º citado).
É, pois, da concatenação de todos os elementos referidos nos art. 1º do DL nº 14/95/M e 4º da Lei nº 4/2003 e da apreciação da sua relevância no quadro dos aspectos incluídos no art. 9º que o exame administrativo acerca da conveniência ou inconveniência da autorização deve ser feito pela entidade competente.
É, claramente, este um quadro de discricionariedade que nem aponta para a negação automática da autorização de residência, nem conduz necessariamente para a sua automática concessão. Implica sempre uma análise casuística dentro dos parâmetros estabelecidos.
E porque é assim, uma “total desrazoabilidade no exercício dos poderes discricionários” pode servir de fundamento de recurso contencioso (art. 21º, al. d), do CPAC). Trata-se de uma expressão com alguma indeterminação conceptual, mas que se aceita possa comportar o sentido de uma absurda e desmesurada aplicação do poder discricionário administrativo perante um determinado caso real e concreto. A decisão desrazoável é aquela cujos efeitos se não acomodam ao dever de proteger o interesse público em causa, aquela que vai para além do que é sensato e lógico tendo em atenção o fim a prosseguir. Um acto desrazoável é um acto absurdo, por vezes até irracional2.
Por outro lado, um acto desproporcional é aquele em que há um excesso nos meios que o acto adopta em relação ao fim que a lei persegue ao dar ao Administrador os poderes que este exerce. O acto desproporcional é inadequado à situação, desnecessário, porque o seu fim pode ser realizável por uma via menos onerosa e mais idónea, sem atentar contra valores específicos de dignidade da pessoa humana, sem lesar alicerces de personalidade do indivíduo. Um acto desproporcional é desregrado, desmedido, é desequilibrado entre o interesse público subjacente e o interesse privado nele envolvido; é um acto que apresenta uma dispositividade com uma dimensão maior do que era expectável ou aconselhável que tivesse.
E um acto injusto é aquele que o administrado não merece, ou porque vai além do que o aconselha a natureza do caso e impõe sacrifícios infundados atendendo à matéria envolvida, ou porque não considera aspectos pessoais do destinatário que deveriam ter levado a outras ponderação e prudência administrativas. É injusto porque, podendo o seu objecto realizar-se com uma carga menor para o administrado, a este se lhe impõe, apesar disso, um gravame penoso demais.
Mas, sobre a violação destes princípios, deixemos falar por nós o TUI no segmento de acórdão ali lavrado e que em tudo se assemelha ao nosso caso:
“A segunda questão que importa solucionar consiste em saber se o acto recorrido violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, ao não ter deferido o pedido de renovação de residência, com fundamento em antecedentes criminais do cônjuge do requerente/recorrente.
(…) A tese do recorrente, de que o acto administrativo recorrido violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, assenta nas seguintes considerações:
(…) - A pena de prisão foi suspensa na sua execução, pelo que o Tribunal considerou suficiente esta pena para acautelar os valores jurídicos em causa e para a reintegração do cônjuge do recorrente na sociedade.
O primeiro argumento traduz-se num manifesto equívoco. Se a lei diz que o órgão que aprecia os pedidos de autorização de residência na RAEM deve atender aos antecedentes criminais do interessado, é evidente que, por natureza, têm de ser levadas em conta as condenações criminais e os factos em que estas se basearam, pois sem condenações criminais não existem antecedentes criminais.
Não se percebe bem, pois, a substância do argumento.
Quanto ao segundo argumento, o recorrente esquece que a punição pela prática de um crime, pode não esgotar a totalidade da apreciação que os poderes públicos ou privados podem extrair dessa condenação, desde que com base na lei. A finalidade da condenação criminal em pena de prisão suspensa na sua execução, não se confunde com os objectivos visados pelas normas administrativas.
Por isso, nada obsta, por exemplo, que o mesmo facto possa fazer incorrer o agente numa pena criminal e, se for funcionário público, ao mesmo tempo, numa pena disciplinar.
Deste modo, a condenação criminal do cônjuge do requerente/recorrente pode ser levado em conta para não ser autorizada a sua residência em Macau. Ou até para ser recusada a sua entrada na Região. Nada tem de estranho.
Por outro lado, como se disse, nos termos dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003, para efeitos de concessão de autorização de residência na RAEM, deve atender-se, nomeadamente, aos “Antecedentes criminais, comprovado incumprimento das leis da RAEM ou qualquer das circunstâncias referidas no artigo 4.º da presente lei”.
A lei não especifica de que antecedentes criminais se trata, de qual a sua gravidade, qual o número de infracções cometidas.
A propósito da discricionariedade, dissemos o seguinte no Acórdão de 3 de Maio de 2000, no Processo n.º 9/2000, momento este recordado no nosso Acórdão de 27 de Outubro de 2010, no Processo n.º 50/2010, em que se apreciou, igualmente, um recurso jurisdicional relacionado com a aplicação dos n. os 1 e 2, alínea 1) do artigo 9.º da Lei n.º 4/2003:
“(…) 12.
11. Uma matéria importante no âmbito da discricionariedade, relativamente ao caso em apreciação, é a que se refere aos limites do poder discricionário, por razões que estão ligadas à sindicabilidade judicial do exercício destes poderes.
As limitações do poder discricionário podem classificar-se com utilização de vários critérios.
Quanto ao critério da origem dos limites, costuma distinguir-se entre os limites legais, os que resultam da própria lei, e a auto-vinculação, isto é, de normas elaboradas pela própria Administração para disciplinar o uso de determinado poder discricionário.
Outra classificação distingue entre limites internos e limites externos.
De acordo com J. M. SÉRVULO CORREIA 6 «por limites internos da discricionariedade, entendem-se os factores que condicionam a própria escolha entre as várias atitudes possíveis, fazendo com que algumas deixem de o ser nas circunstâncias concretas».
Os limites externos serão os restantes, os que se referem à orientação dos poderes de livre decisão a priori e ao seu controlo a posteriori.
(…) No que respeita aos limites internos, o primeiro será o da vinculação ao fim, «a necessidade de conformar o exercício da discricionariedade com o interesse público visado pela norma que a concede
O desvio de poder é o vício típico do exercício de poderes discricionários. ».
Dispunha o art. 19.º da Lei Orgânica do STA que «o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder», existindo este sempre «que o motivo principalmente determinante da prática do acto recorrido não condizia com o fim visado pela lei na concessão do poder discricionário» (§ único do referido art. 19.º).
Dispondo a lei (art. 6.º do ETAF) que os recursos contenciosos são de mera legalidade e que o exercício de poderes discricionários só pode ser atacado contenciosamente com fundamento em desvio de poder, daqui resulta que os tribunais não controlam o mérito da decisão discricionária da Administração.
12. No que toca aos restantes limites internos do poder discricionário, interessa-nos destacar a consagração dos princípios jurídicos por que a Administração deve nortear a sua actividade.
De acordo com os arts. 5.º e 6.º do CPA, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 35/94/M, e vigente à data da prática do acto impugnado, no exercício da sua actividade, a Administração deve observar os princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade.
Estes são, pois, limites internos do poder discricionário, factores que condicionam a própria escolha do decisor entre as várias atitudes possíveis11.
Entre tais princípios, os que, à partida, podem estar em causa no nosso caso serão os da proporcionalidade e da justiça. O nosso exame limitar-se-á a estes.
O CPA prevê o princípio da proporcionalidade no seu art. 5.º, n.º 2, estabelecendo que «as decisões da Administração que colidam com direitos subjectivos ou interesses legalmente protegidos dos particulares só podem afectar essas posições em termos adequados e proporcionais aos objectivos a realizar».
Não cabe aqui fazer a história da génese do princípio ou a sua fundamentação filosófica.
Como refere VITALINO CANAS12o princípio da proporcionalidade só poderá aplicar-se na apreciação de comportamentos em que o autor goze de uma certa margem de escolha.
A doutrina tem dissecado o princípio em três subprincípios, da idoneidade, necessidade e proporcionalidade, em sentido estrito, ou de equilíbrio.
A avaliação da idoneidade de uma medida é meramente empírica, podendo sintetizar-se na seguinte pergunta: a medida em causa é capaz de conduzir ao objectivo que se visa?
Aceitando-se que uma medida é idónea, passa a verificar-se se é necessária.
O centro das preocupações desloca-se para a ideia de comparação. Enquanto na máxima da idoneidade se procurava a certificação de uma relação causal entre um acto de um certo tipo e um resultado que se pretende atingir, na máxima da necessidade a operação central é a comparação entre uma medida idónea e outras medidas também idóneas. O objectivo da comparação será a escolha da medida menos lesiva.
«A aferição da proporcionalidade, em sentido estrito, põe em confronto os bens, interesses ou valores perseguidos com o acto restritivo ou limitativo, e os bens, interesses ou valores sacrificados por esse acto. Pretende-se saber, à luz de parâmetros materiais ou axiológicos, se o sacrifício é aceitável, tolerável. Para alguns, esta operação assemelha-se externamente à análise económica dos custos/benefícios de uma decisão. Se o custo (leia-se o sacrifício de certos bens, interesses ou valores) está numa proporção aceitável com o benefício (leia-se a satisfação de certos bens, interesses ou valores) então a medida é proporcional em sentido estrito»13 14.
O CPA determina no art. 6.º que «no exercício da sua actividade, a Administração Pública deve tratar de forma justa e imparcial todos os que com ela entrem em relação».
13. Não se têm suscitado dúvidas tanto na doutrina como na jurisprudência, que os tribunais podem fiscalizar o respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da justiça e da imparcialidade. A dúvida está em saber em que medida deverão os tribunais intervir nesta matéria.
DAVID DUARTE15, referindo-se à proporcionalidade em sentido estrito, «que engloba a técnica do erro manifesto de apreciação, técnica jurisdicional francesa que compreende, em termos avaliativos, para além do erro na qualificação dos factos, a utilização de um critério decisório proporcional que se revela numa decisão desequilibrada entre o contexto e a finalidade. O erro manifesto de apreciação, na vertente de controlo da adequação da decisão aos factos…é, como meio de controlo do conteúdo da decisão, um dos degraus mais elevados da intervenção do juiz na discricionariedade administrativa. E, por isso, só é utilizável na medida da evidência comum da desproporção16» (o sublinhado é nosso).
Nas mesmas águas navega MARIA DA GLÓRIA F. P. DIAS GARCIA17 defendendo que «em face da fluidez dos princípios (da proporcionalidade, da igualdade, da justiça), só são justificáveis as decisões que, de um modo intolerável, os violem 18» (o sublinhado é nosso)”
(…) Uma condenação em pena de prisão suspensa na sua execução não deixa de ser uma condenação em processo crime.
Entendemos, assim, que o acto recorrido não violou os princípios da igualdade, da proporcionalidade e da justiça, ao não ter deferido o pedido de renovação de residência3.
Serve o trecho transcrito para demonstrar o modo como questão idêntica à que aqui nos ocupa foi decidida. E trata-se, a nosso ver, da boa solução.
Efectivamente, não se mostra desproporcional, nem desrazoável, nem injusto, que ao pai do recorrente tenha sido negada a renovação de residência. Aliás, no momento da autorização inicial admitimos teoricamente que havia já motivos para que ela não fosse concedida, pois em 2005 os pressupostos que agora ditaram a não renovação já então se mostravam verificados.
A decisão discricionária de não renovar, porque não arbitrária, nem grosseira, antes justificada com a prática de dois crimes, não pode assim ser censurada por este tribunal4 e os elementos que os autos e o processo administrativo reúnem não são suficientes para dar por violados os princípios invocados pelo recorrente.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar improcedente o recurso contencioso.
Custas pelo recorrente.
TSI, 07 / 12 / 2011
Presente José Cândido de Pinho
Vitor Coelho Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 E não, como por lapso, foi indicado pelo recorrente, de 25/06/2010.
2 Apud, Agustin Gordillo, in Tratado de Derecho Administrativo, tomo 3, VIII, pag. 22-26.
3 Ac. do TUI de 11 de Maio de 2011, Proc. nº 12/2011
4 Em sentido semelhante, ac. do TSI de 23/06/2011, Proc. nº 594/2009.
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