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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
A, inspector especialista da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, interpôs recurso contencioso de anulação do despacho do Secretário para a Economia e Finanças, de 17 de Junho de 2005, que aplicou ao recorrente a pena de demissão.
Por acórdão de 15 de Dezembro de 2005, o Tribunal de Segunda Instância, (TSI) negou provimento ao recurso.
Inconformado, interpõe o referido A o presente recurso jurisdicional, terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões:
1.ª A decisão recorrida padece de ilegalidades, (1) o vício de forma por falta de fundamentação e (2) o vício da violação da lei por erro nos pressupostos de facto da decisão e (3) o vício de violação de lei por ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça que a tomam anulável nos termos gerais de direito.
2.ª A conduta do recorrente não pode, objectivamente e por si só, produzir qualquer resultado prejudicial efectivo ao serviço público ou ao interesse geral e muito menos considerar-se que o recorrente podia ou devia prever essa consequência.
3.ª Perante a alternativa da aplicação da pena de aposentação compulsiva e da pena de demissão, a escolha da última sem fundamentação válida importa a invalidade da decisão.
4.ª Mau grado o Tribunal não possa substituir a Administração na concretização da medida da sanção disciplinar, isso não o impede de sindicar a legalidade da decisão punitiva na medida em que esta ofenda critérios gerais de individualização e graduação estabelecidos na lei, ou se saia dos limites normativos correspondentes, ou não tenha levado em linha de conta as circunstâncias que militam contra ou a favor do arguido.
5.ª A discricionaridade de que a Administração goza, na determinação da medida da pena, é sindicável pelo Tribunal tratando-se de caso, como o que aqui está em causa, de erro grosseiro ou palmar.
6.ª Verifica-se manifesta desproporção entre a sanção aplicada e a falta cometida, do que resulta que o despacho punitivo, ao ter escolhido a pena de demissão para sancionar a violação do dever de assiduidade, está eivado do vício de violação de lei por violação do princípio da proporcionalidade, na sua vertente de adequação e necessidade e do princípio da justiça, vício que deveria ter sido reconhecido pelo Venerando Tribunal recorrido.
7.ª Não tem base legal o entendimento do Ac. recorrido no sentido de que as mais de trinta faltas dadas sem apresentação de qualquer justificação, fazem presumir a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público, pois a circunstância agravativa da efectiva produção de resultados prejudiciais não faz parte do tipo de infracção cometida.
8.ª A produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral não pode resultar da mera ausência do agente ao serviço, sem justificação, pois se assim fosse, não existiria qualquer violação do dever de assiduidade a que, forçosamente, não correspondesse aquela agravante.
9.ª A livre apreciação pretendida pelo legislador, ao conceder poderes discricionários falseia-se se os pressupostos em que assenta a decisão não forem correctos, constituindo um momento vinculado do acto discricionário a constatação dos pressupostos realmente ocorridos.
10.ª É possível o controlo jurisdicional sobre a justeza da pena aplicada dentro do escalão respectivo nos casos de erro palmar ou grosseiro.
11.ª Se o Tribunal se não pode substituir à Administração na concretização da medida da sanção disciplinar, nada impede que lhe seja possível sindicar a legalidade da decisão punitiva em caso de ofensa aos critérios gerais de individualização e graduação.
12.ª A decisão recorrida violou, nomeadamente, as normas do art.º 76.° (parte final) do CPAC e dos art.ºs 316.°, n.ºs 1 e 5 do ETAPM; violou, ainda, o 283.°, n.º 1, alínea b) do ETAPM (ao aplicá-lo fora de um quadro de verificação dos respectivos pressupostos); violou, finalmente, os princípios da proporcionalidade e da justiça.

A Ex. ma Procuradora-Adjunta emitiu o seguinte parecer:
Inconformando com o douto Acórdão do Tribunal de Segunda Instância no sentido de negar provimento ao seu recurso contencioso, vem A interpor recurso para o Tribunal de Última Instância.
Alega a ilegalidade da decisão recorrida, invocando o erro nos pressupostos de facto da decisão, a falta de fundamentação na escolha de pena de demissão e a violação de lei por ofensa aos princípios da proporcionalidade e da justiça.
A desconformidade do recorrente com o Acórdão recorrido reside, essencialmente, em duas partes: uma referente ao entendimento de que, a partir do facto de o recorrente no ano civil de 2005 ter dado mais de 30 faltas seguidas ao serviço sem apresentação de qualquer justificação, é de presumir a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público e a outra respeitante à proporcionalidade e adequação da pena de demissão que lhe foi aplicada.
Vejamos.
Nos termos do art° 283.º n° 1, al. b) do ETAPM, é considerada como uma das circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar "a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta".
Alega o recorrente que a sua condutas "não pode, objectivamente e por si só, produzir qualquer resultado prejudicial efectivo ao serviço publico ou interesse geral" e muito menos considerar-se que ele "podia ou devia prever essa consequência".
Ora, resulta dos autos que o recorrente era inspector especialista na Direcção de Inspecção e Coordenação e se encontrava escalado para exercer funções em vários casinos de Macau.
Desde 17 de Março até ao dia 26 de Abril de 2005, dada em que foi deduzida a acusação no processo administrativo instrutor, o recorrente faltou ao serviço sem apresentação de qualquer justificação.
E face a tal conduta e a inconveniência em virtude das trocas diárias que eram necessárias por força da sua ausência, foi o recorrente retirado da escala de serviço (cfr. art° 20.º do despacho impugnado).
Entende ainda a Administração que o recorrente "agiu livre e conscientemente, revelando com a sua conduta grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres profissionais, tendo atentado contra a dignidade e prestígio das suas funções de inspector de Jogos" (cfr. art° 26º do despacho impugnado).
Daí que considera verificada a circunstância agravante prevista na al. b) do n° 1 do art° 283.º do ETAPM.
Concordamos com este entendimento, salvo o muito respeito pela opinião diferente.
É evidente que, com a falta ao serviço dada por qualquer funcionário ou agente, seja necessário fazer a respectiva substituição.
No caso vertente estamos perante uma situação excepcional em que o recorrente faltou, consecutivamente, mais de 30 dias, o que obrigou a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos a efectuar todos os dias as respectivas trocas e até retirá-lo da escala de serviço.
Temos de partir do pressuposto de que todos os funcionário públicos são necessários e úteis, tendo o seu próprio lugar de serviço, sendo que ninguém está sempre disposto a fazer papel de substituição.
E os falados "resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral" podem revestir de qualquer natureza.
A conduta do recorrente, pelo período da sua falta e associada à sua publicidade (agravante esta que não foi impugnada pelo recorrente), nunca pode deixar de ter consequências negativas para o serviço público, pondo em causa a dignidade e prestígio das funções desempenhadas pela Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, daí que nos parece permitir falar "a produção efectiva de resultados prejudiciais".
E também é de concluir pela possibilidade de o recorrente prever essas consequências causada pela sua conduta.
Face às considerações acima expostas, que resultam nomeadamente do despacho posto em crise pelo recorrente, entendemos que também não lhe assiste razão quanto ao invocado vício de forma por falta de fundamentação, uma vez que, na total concordância com o entendimento do Magistrado do Ministério Público explanado no seu parecer dado no recurso contencioso, o acto administrativo em causa está clara, suficiente e congruentemente fundamentado, dando a conhecer as razões de facto e de direito por que foi aplicada ao recorrente a pena de demissão.
Entende ainda o recorrente que não se pode considerar proporcionada e adequada a pena de demissão que lhe foi aplicada, apesar de reconhecer que a Administração não está vinculada a aplicar a pena de aposentação compulsiva por gozar do poder discricionário de escolha entre essa sanção e a de demissão.
Nos termos do n° 1 do art° 315° do ETAPM, as penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizam a manutenção da situação jurídico-funcional, tendo o seu n° 2 enumerado, a título exemplificativo, alguns casos em que as mesmas penas devem ser aplicadas, incluindo a situação em que os funcionários e agentes que "dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação" -alínea f).
E só pode haver lugar à aplicação da pena de aposentação compulsiva se o funcionário ou agente reunir o período mínimo de 15 anos de serviço, caso contrário será aplicada a pena de demissão (nº 3 do art° 315°).
Face aos factos apurados nos autos, é evidente que a conduta do recorrente, faltando no ano civil de 2005 mais de 30 dias seguidos ao serviço sem que tenha apresentado qualquer justificação, está enquadrada na previsão da al. f) do n° 2 do referido art° 315°.
Por outro lado, resulta dos autos que o recorrente tinha já mais de 15 anos de serviço.
Assim sendo, ao recorrente pode ser aplicada a pena de demissão ou a de aposentação compulsiva, pois o que resulta do disposto no n° 3. do art° 315º não é a obrigatoriedade de aplicação desta segunda pena aos funcionários ou agentes que completarem 15 anos de serviço, mas sim a de aplicação de pena de demissão nos casos em que não está verificada aquela condição.
Daí que, não estando em causa matéria a resolver por decisão vinculada, a Administração actua no âmbito de exercício do seu poder discricionário, que fica fora de controle jurisdicional, salvo nos casos excepcionais.
Como sustenta o Magistrado do MP no parecer dado no Tribunal de Segunda Instância, "a intervenção do juiz fica apenas reservada aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas contingências em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção inflingida e a falta cometida, dado não poderem ser legitimados, em nenhuma circunstância, comportamentos da Administração que se afastem dos princípios da justiça e da proporcionalidade que necessariamente devem presidir à sua actuação".
E "a intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem", o que resulta também do disposto na al. d) do n° 1 do art° 21º do CPAC que prevê como um dos fundamentos do recurso "a violação de lei, nela incluindo o erro manifesto ou total desrazoabilidade no exercício de poderes discricionários". (cfr. Ac. do TUI, de 15-10-2003, proc. n° 26/2003)
No caso sub judice e face aos factos apurados nos autos, não se nos afigura que a pena de demissão aplicada pela Administração se revela manifestamente desproporcional, não tendo sido violados, muito menos intoleravelmente, os princípios de proporcionalidade e de justiça.
Pelo exposto, parece-nos que se deve negar provimento ao recurso.

II - Os Factos
O Acórdão recorrido considerou provados os seguintes factos:
O Secretário para a Economia e Finanças proferiu o seguinte despacho, em 17 de Junho de 2005:
«Despacho
Processo Disciplinar
Contra A, inspector especialista, terceiro escalão, funcionário de nomeação definitiva do quadro de pessoal da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, de ora em diante designada abreviadamente por DICJ, foi instaurado um processo disciplinar por despacho de 28.03.2005, do Director da DICJ.
Cumprido o disposto nos n.º 1 e 3 do artigo 328.° e n.º 1, 2, e 3 do artigo 329.°, ambos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, doravante designado por E.T.A.P.M., foi deduzida acusação, onde se descriminam os factos cuja prática foi imputada ao arguido e que integram a violação dos deveres que se deram por infringidos, cumprindo, assim, o formalismo constante do n.º 2 do artigo 332.°, do Estatuto supra citado.
Dada a ausência do arguido, e não se conhecendo o seu paradeiro, foi dado cumprimento ao disposto no artigo 353.°, n.º 2 do E.T.A.P.M., tendo a respectiva acusação sido publicada no Boletim Oficial n.º 18, na II Série, de 4 de Maio de 2005, e em dois jornais diários, um em língua chinesa outro em língua portuguesa, e foi concedido um prazo de 30 dias para o arguido apresentar a sua defesa por escrito.
O arguido não apresentou defesa escrita no prazo legal para o efeito, nem requereu a realização de qualquer acto processual.
No relatório elaborado, o instrutor propôs a aplicação de uma pena de aposentação compulsiva ou pena de demissão nos termos do referido artigo 315.° do E.T.A.P.M..
Nestes termos, considero provado os factos constantes dos artigos 1.° a 30.° da acusação, constante a folhas 90 a 95, e que aqui se reproduzem para todos os efeitos legais:
1.º
O arguido A, exerce as funções de inspector especialista, terceiro escalão, na Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, sob a forma de provimento definitiva, corresponde-lhe o n.º XX de funcionário de serviço.
2.º
No dia 17 de Março de 2005, o inspector especialista, A, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (1), no período do turno entre 18.00 horas e as 24.00 horas, conforme a escala de serviço.
3.º
O arguido, nesse dia 17 de Março de 2005, faltou ao serviço, avisando previamente o inspector responsável de serviço, o Sr. B (n.º XX), que estaria doente, o qual registou esse facto no relatório diário.
4.º
O arguido, no dia 18 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no casino (2), no período de turno entre as 24.00 horas e as 6.00 horas, conforme a escala de serviço.
5.º
O arguido, nesse dia 18 de Março de 2005, faltou ao serviço, avisando previamente o inspector responsável de serviço, o Sr. C (n.º XX), que estaria doente, o qual registou esse facto no relatório diário.
6.º
O arguido, não apresentou posteriormente, qualquer documento justificativo do seu estado de doença, referentes aos dias 17 e 18 de Março de 2005, dos constantes no artigo 100.º do E.T.A.P.M., e para os efeitos do artigo 89.º do mesmo diploma legal.
7.º
O arguido no dia 19 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (3), no período de turno entre 18.00 horas e às 24.00 horas, faltou ao serviço e não avisou o inspector responsável que iria faltar, nem deu parte de doente.
8.º
O arguido no dia 20 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (4), no período de turno entre 24.00 horas e as 06.00 horas, conforme a escala de serviço, e não compareceu ao serviço.
9.º
O arguido no dia 22 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (5), no período de turno entre as 18.00 horas e as 24.00 horas, conforme a escala de serviço, tendo faltado novamente ao serviço.
10.º
O arguido no dia 23 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (6), no período de turno entre as 24.00 horas e as 06.00 horas, conforme a escala de serviço, e faltou ao serviço.
11.º
O arguido no dia 24 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (7), no período de turno entre as 12.00 horas e as 18.00 horas, conforme a escala de serviço, e faltou ao serviço.
12.º
O arguido no dia 25 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (8), no período de turno entre as 18.00 horas e as 24.00 horas, conforme a escala de serviço, tendo faltado novamente ao serviço.
13.º
O arguido no dia 26 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (1), no período de turno entre as 24.00 horas e as 06.00 horas, conforme a escala de serviço, e não compareceu ao serviço.
14.º
O arguido no dia 27 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (2), no período de turno entre as 06.00 horas e as 12.00 horas, conforme a escala de serviço, e faltou ao serviço.
15.º
O arguido no dia 28 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (2), no período de turno entre as 06.00 horas e as 17.00 horas, conforme a escala de serviço, e, novamente, faltou ao serviço.
16.º
O arguido no dia 29 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (9), no período de turno entre as 11.00 horas e as 17.00 horas, conforme a escala de serviço, e faltou ao serviço.
17.º
O arguido no dia 30 de Março de 2005, encontrava-se escalado para exercer funções no Casino (8), no período de turno entre as 12.00 horas e as 18.00 horas, conforme a escala de serviço, tendo faltado novamente ao serviço.
18.º
O arguido não comunicou superiormente as razões da sua ausência, permanente, nem apresentou qualquer justificação.
19.º
O arguido faltou assim, de acordo com os turnos definidos pela escala de serviço referente ao mês de Março de 2005, consecutivamente, e, sem que tenha apresentado qualquer justificação, 11 dias consecutivos.
20.º
Dada a conduta do arguido, e a inconveniência para o serviço, foi o mesmo, por decisão superior, retirado da escala de serviço, em virtude das trocas diárias que eram necessárias fazer por força da sua ausência, nela passando a estar referenciado apenas como ausente.
21.º
O arguido, desde o dia 17 de Março até ao dia 26 de Abril de 2005, data da presente acusação, nunca mais compareceu ao serviço, nem apresentou qualquer justificação para as suas faltas.
22.º
O arguido, não contactou com os seus superiores hierárquicos, ou estabeleceu qualquer tipo de contacto com a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, apesar dos esforços desenvolvidos pelos seus colegas de departamento no sentido de o contactarem telefonicamente.
23.º
O arguido no ano civil de 2005 deu mais de 30 faltas (injustificadas) seguidas, sem que tenha apresentado qualquer justificação.
24.º
Em 19 de Abril de 2005, a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, recebeu uma notificação dos serviços do Ministério Público da Região Administrativa Especial de Macau, no qual foi dado conhecimento da emissão de um Mandado de Detenção fora de flagrante delito, e solicitada a colaboração daquele serviço na detenção do arguido ora acusado, caso fosse detectada a sua presença.
25.º
O arguido é indiciado da prática de um, ou mais, crimes e encontra-se em parte incerta.
26.º
O arguido agiu livre e conscientemente, revelando com a sua conduta grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres profissionais, tendo atentado contra a dignidade e prestígio das suas funções de inspector de Jogos.
27.º
A conduta do arguido, pelos factos descritos, inviabiliza a manutenção da sua situação jurídico profissional.
28.º
O arguido, agiu com culpa grave, e com a sua conduta violou o dever de assiduidade, previsto na alínea g) do n.º 2, e no n.º 9 do artigo 279.° do E.T.A.P.M., a que este diploma legal faz corresponder a pena de aposentação compulsiva ou demissão, de acordo com a alínea f) do n.º 2 do artigo 315.° do E.T.A.P.M..
29.º
Como circunstâncias atenuantes, milita a favor do arguido a prestação de mais de 10 anos de serviço com a classificação de Bom, prevista na alínea a) do artigo 282.° do E.T.A.P.M..
30.º
Como circunstâncias agravantes, militam contra o arguido a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, e a sua publicidade, nos termos do artigo 283.°, n.º 1, alíneas b), e i), do E.T.A.P.M., respectivamente.
Assim sendo, o arguido, ao faltar 30 dias consecutivos no ano civil de 2005 , sem que tenha apresentado superiormente qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa da sua conduta, agiu livre e conscientemente, revelando com a sua conduta um grave desinteresse pelo cumprimento dos seus deveres profissionais.
Com a sua conduta, o arguido violou com culpa grave o dever de assiduidade previsto na alínea g) do n.º 2, e do n.º 9 do artigo 279.° do E.T.A.P.M., e punido no artigo 315.°, n.º 2, alínea f) do E.T.A.P.M. com a pena de aposentação compulsiva ou demissão.
Como circunstâncias agravantes, militam contra o arguido a produção efectiva de resultados prejudiciais para o serviço público ou interesse geral, e a sua publicidade, nos termos do artigo 283.°, n.º 1, alíneas h), e i) do E.T.A.P.M., respectivamente.
A favor do arguido milita a circunstância atenuante da prestação de mais de 10 anos de serviço com a classificação de Bom, prevista na alínea a) do artigo 282.° do E.T.A.P.M.
Ao arguido, enquanto funcionário público, e como inspector de jogos, era exigido que exercesse a sua função de forma digna, impedindo que de qualquer forma fossem desrespeitados e desprestigiados os objectivos e a missão do serviço a que pertence.
Com a sua conduta, o arguido revelou grave desinteresse pelo cumprimento dos deveres funcionais, tendo desrespeitado o serviço a que pertence e cuja missão é exactamente, entre outras, fiscalizar, supervisionar e monitorizar, a frequência e funcionamento dos casinos, salas e zonas de jogo e demais zonas afectas à exploração de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casino, assim como zelar pelo cumprimento das disposições legais, regulamentares e contratuais relativas à exploração das várias modalidades de jogos de fortuna e azar ou outros jogos em Casino, inviabilizando desta forma a manutenção da sua situação jurídico profissional.
Decisão:
Assim, tudo ponderado, determino o seguinte:
1. Ao abrigo do disposto do artigo 322.° do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau e no uso da competência delegada pela Ordem Executiva n.º 12/2000, de 28 de Fevereiro, publicada no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau, I Série, n.º 9, de 28.02.2000, aplico ao inspector especialista, terceiro escalão, funcionário de nomeação definitiva do quadro de pessoal da Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos, A, a pena de demissão prevista no artigo 315.° n.º 1 e 2 alínea f), do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau, com os efeitos do artigo 311.°, do mesmo Estatuto.
2. Remeta-se o presente processo ao Sr. Director da DICJ, para efeitos de ser promovida a notificação do teor deste despacho ao arguido, tendo em atenção as normas aplicáveis do Código do Procedimento Administrativo, bem como, a consequente execução da respectiva decisão”.
Este é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
As questões a apreciar são as seguintes:
Uma questão consiste em saber se o acto recorrido violou os princípios da proporcionalidade e da justiça ao ter escolhido a pena de demissão, por haver manifesta desproporção entre a falta cometida (falta ao serviço ininterruptamente desde 17 de Março até 26 de Abril de 2005, sem qualquer justificação) e a sanção aplicada.
A propósito desta questão, importa esclarecer que não iremos apreciar uma outra suscitada neste recurso jurisdicional, que é a de saber se, perante a alternativa de aplicação das penas de aposentação compulsiva e de demissão, o acto recorrido teria de explicar porque escolheu a segunda e não a primeira. É que o recorrente não suscitou esta questão no recurso contencioso, pelo que dela não conheceremos, face à jurisprudência constante deste Tribunal, de que os recursos jurisdicionais para o Tribunal de Última Instância não visam criar decisões sobre matérias novas, pelo que se a questão não foi posta no recurso para a instância inferior, não se pode da mesma conhecer, a menos que se trate de matéria de conhecimento oficioso. O que não é o caso (cfr. o Acórdão de 29 de Junho de 2005, no Processo n.º 15/2005).
Outra questão a apreciar é a de saber se a consideração como circunstância agravante da “produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral” viola o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante designado de ETAPM), sem que nada se tenha considerado provado para além das faltas ao serviço.
Iremos começar pela apreciação desta última, pois se a mesma for procedente (no sentido que o acto recorrido não poderia ter considerado uma circunstância agravante, como considerou) não poderemos apreciar a primeira questão, atinente à violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça na aplicação da pena de demissão.

2. A circunstância agravante da “produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral”
Vejamos, então, se o Acórdão recorrido, ao ter entendido existir a circunstância agravante da “produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral”, violou o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 283.º do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau (doravante designado de ETAPM).
O recorrente foi punido com a pena de demissão por ter dado mais de 30 faltas injustificadas seguidas, ao serviço.
Na verdade, dispõe o art. 315.º do ETAPM que:
“Artigo 315.º
(aposentação compulsiva ou demissão)
“1. As penas de aposentação compulsiva ou de demissão serão aplicáveis, em geral, às infracções que inviabilizem a manutenção da situação jurídico-funcional.
2. As penas referidas no número anterior serão aplicáveis aos funcionários e agentes que, nomeadamente:
a) ...
b) ...
c)...
d) ...
e) ...
f) Dentro do mesmo ano civil derem 20 faltas seguidas ou 30 interpoladas, sem justificação;
g) ...
h) ...
i) ...
j) ...
l) ...
m) ...
n) ...
o) ...
3. ...”

Por sua vez, dispõe o art. 283.º do ETAPM:
“Artigo 283.º
(Circunstâncias agravantes)
1. São circunstâncias agravantes da responsabilidade disciplinar:
a) ...
b) A produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral, nos casos em que o funcionário ou agente pudesse ou devesse prever essa consequência como efeito necessário da sua conduta;
c) ...
d) ...
e) ...
f) ...
g) ...
h) ...
i) ...
j) ...
l) ...
2. ...
3. ...
4. ...
5. ...”

Ora, percorre-se a fundamentação do acto punitivo e não encontra qualquer referência concreta a prejuízo efectivo para o serviço por força das faltas dadas pelo recorrente, para além da referência conclusiva do despacho recorrido.
É certo que na contestação do recurso contencioso, a entidade recorrida invoca o disposto no art. 20.º da acusação - facto que foi considerado provado no acto punitivo. E nesse artigo, após a descrição das faltas dadas, consta o seguinte:
“20.º
Dada a conduta do arguido, e a inconveniência para o serviço, foi o mesmo, por decisão superior, retirado da escala de serviço, em virtude das trocas diárias que eram necessárias fazer por força da sua ausência, nela passando a estar referenciado apenas como ausente”.
Ou seja, mesmo na tese da entidade recorrida, o único facto descrito na decisão punitiva susceptível de integrar a circunstância agravante de produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico ou ao interesse geral, é o referido, constante do art. 20.º.
Mesmo aquele facto do art. 20.º, tem de ser devidamente circunscrito. Efectivamente, o recorrente faltou sem interrupção desde o dia 17 de Março até ao dia 26 de Abril de 2005. Mas só se encontrava na escala de serviço desde 17 até 31 de Março de 2005, já que, posteriormente, foi retirado da escala. Ou seja, como consta do art. 19.º da acusação – facto considerado provado no acto final - o arguido faltou, de acordo com os turnos definidos pela escala de serviço referente ao mês de Março de 2005, consecutivamente, e, sem que tenha apresentado qualquer justificação, 11 dias consecutivos.
Será isto suficiente para se considerar ter havido produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico ou ao interesse geral?
Entende-se que não.
A necessidade de mudança de escala, decorrente da falta de um funcionário, num serviço como a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos não pode constituir produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico ou ao interesse geral, a menos que tenham ocorrido circunstâncias especiais, que não foram alegadas e que só casuisticamente podem ser ponderadas.
Na verdade, a Direcção de Inspecção e Coordenação de Jogos tem um quadro de inspectores que lhe permite colmatar faltas pontuais ao serviço pois, certamente, quase todos os dias hão-de faltar funcionários sem aviso prévio, por doença ou por qualquer outra causa.
Ora, o serviço tem de estar preparado e há-de certamente estar, para assegurar aquelas substituições, pelo que não é a mera necessidade de alteração de uma escala de serviço que pode constituir a mencionada agravante, salvo circunstâncias particulares, que ninguém mencionou.

3. O princípio da proibição da dupla valoração, ou o princípio do non bis in idem
Nem se diga - como faz o Acórdão recorrido – que por “o arguido ter dado mais de 30 faltas seguidas ao serviço sem apresentação de qualquer justificação ... é de presumir ... a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico”.
Em primeiro lugar, mesmo na tese da entidade recorrida - constante da referida contestação – só estariam em causa as 11 faltas em que o arguido estava escalado e não as restantes, mais de 30.
Em segundo lugar, a ser exacta a tese apontada, o resultado a que conduziria seria manifestamente contrário à lei.
É que, se da existência de 30 faltas seguidas ao serviço sem apresentação de qualquer justificação fosse de presumir a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico, então teríamos que esta circunstância faria parte do tipo de ilícito disciplinar constante da alínea f) do n.º 2 do art. 315.º do ETAPM.
Ora, a ser assim, o Acórdão recorrido não poderia ter considerado como circunstância agravante a produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço publico, constante da alínea b) do n.º 1 do art. 283.º do ETAPM, por a isso se opor o princípio da proibição da dupla valoração, ou princípio do non bis in idem, constante do n.º 2 do art. 65.º do Código Penal 1- aplicável subsidiariamente nos termos do art. 277.º do ETAPM - nos termos do qual, na determinação da medida da pena o tribunal só pode atender às circunstâncias que não fizerem parte do tipo de crime.

4. Discricionariedade. Contencioso de anulação. Contencioso de plena jurisdição.
Finalmente, o Acórdão recorrido adiantou, ainda, outro argumento para ter como irrelevante a mencionada circunstância agravante, mesmo que ela se verificasse. É que, diz-se, seria supérflua a invocação de tal circunstância, já que a mera falta ao serviço sem justificação, nos termos previstos naquela alínea f) do n.º 2 do art. 315.º do ETAPM, já seria suficiente para ser aplicada a pena de demissão.
Ora, ainda que fosse exacto que as meras 30 faltas injustificadas ao serviço, num ano civil, integrem, sem mais, os pressupostos da aplicação da pena de demissão - questão que não há que examinar - o entendimento da superfluidade da agravante não tem suporte legal num sistema, como o nosso, em que a intervenção jurisdicional no contencioso de anulação, maxime no contencioso disciplinar, tem limites.
Na verdade, como dissemos no Acórdão de 17 de Dezembro de 2003, no Processo n.º 29/2003, “(e)m contencioso de anulação de acto punitivo, se o tribunal considerar que um dos dois factos em que assentou a sanção não existe, tem de anular o acto, não lhe competindo opinar que o outro facto provado justificaria a mesma sanção. É à Administração que compete fazer tal avaliação, em sede de execução da sentença anulatória, tanto podendo, em abstracto, manter a sanção, como atenuá-la, como, até, não aplicar sanção alguma. 2 Não cabe é ao tribunal invadir a área reservada à Administração, pois nem estamos no domínio do contencioso de plena jurisdição, nem se trata de área vinculada, mas antes numa zona em que à Administração é reconhecida uma margem de livre decisão, pelo que nunca estaria em causa o princípio do aproveitamento dos actos administrativos 3 4”.
Estas considerações aplicam-se, mutatis mutandis, ao caso dos autos. Só à Administração cabe ponderar se mantém a pena de demissão que aplicou, apesar de não se verificar uma circunstância agravante que levou em conta na aplicação daquela pena disciplinar.
   Ou seja, comportando a escolha entre as penas disciplinares de aposentação compulsiva e demissão uma margem de discricionariedade – cuja decisão a lei reservou à Administração - não pode o Tribunal decidir qual destas penas deve ser aplicada, se entender que não se verifica uma circunstância agravante, indevidamente considerada pelo acto punitivo. Neste caso, deve, apenas, anular o acto administrativo, com fundamento em ilegalidade – cuja função a lei atribui aos tribunais em caso de recurso contencioso - devolvendo a apreciação da situação à Administração, a quem cabe a apreciação da função jurídica que constitui a discricionariedade.
Em conclusão, tanto o Acórdão recorrido como o acto recorrido violaram o disposto na alínea b) do n.º 1 do art. 283.º do ETAPM, impondo-se a revogação do primeiro e a anulação do segundo.

IV - Decisão
Face ao expendido, revogam o Acórdão recorrido e anulam o acto administrativo recorrido.
Sem custas, nas duas instâncias.
Macau, 10 de Maio de 2006.

Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

A Magistrada do Ministério Público
presente na conferência: Song Man Lei



1 Sobre o princípio, cfr. J. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 234 e segs. e GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das Penas e das Medidas de Segurança, Lisboa/São Paulo, Editorial Verbo, 1999, p. 135 e 136.
2 Só não podendo, em princípio, agravar a sanção.
3 Como é sabido, o princípio do aproveitamento dos actos administrativos, não invalidando o acto, apesar do vício constatado, só vale no domínio dos actos vinculados, o que não se verifica no domínio da dosimetria das penas disciplinares, que comporta uma margem de discricionariedade.
4 Fornecendo ampla informação jurisprudencial e esgotando o tema, cfr. o Boletim do Ministério da Justiça n.º 490, p. 102 e 103.
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Processo n.º 7/2006