Processo n.º 482/2010 Data do acórdão: 2012-2-23
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– erro notório na apreciação da prova
– art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal
S U M Á R I O
Não pode ocorrer o vício de erro notório na apreciação da prova a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal, se não se mostra patente ao tribunal ad quem, depois de examinados todos os elementos probatórios referidos no acórdão recorrido, que a livre convicção a que chegou o tribunal colectivo a quo tenha sido formada com violação de qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, de qualquer norma sobre prova legal, ou de quaisquer legis artis em matéria de julgamento de matéria de facto.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 482/2010
(Autos de recurso penal)
Recorrente (assistente): A (XXX)
Recorrido (arguido): B (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido a fls. 219 a 225 dos autos de Processo Comum Colectivo n.° CR2-09-0226-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, que absolveu o arguido B do inicialmente imputado crime doloso consumado de abuso de confiança, p. e p. pelo art.o 199.o, n.o 1 e n.o 4, alínea b), do Código Penal de Macau (CP), veio a assistente A recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para rogar a condenação do arguido como autor material desse crime, tendo, para o efeito, assacado à decisão recorrida o vício de erro notório na apreciação da prova, por entender, na sua essência, que a prova documental existente nos autos, devidamente conjugada com a prova testemunhal produzida em audiência, permitiria chegar objectivamente a uma decisão condenatória (cfr. a motivação apresentada a fls. 237 a 241 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso responderam o Ministério Público (a fls. 245 a 248) e o arguido (a fl. 251), no sentido idêntico da improcedência da argumentação da recorrente.
Subidos os autos, emitiu a Digna Procuradora-Adjunta parecer (a fls. 266 a 267), pugnando materialmente também pelo não provimento do recurso.
Feito subsequentemente o exame preliminar (em sede do qual se entendeu dever o recurso ser rejeitado em conferência por manifestamente improcedente) e corridos os vistos legais, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO FÁCTICA
O acórdão recorrido tem por seguinte fundamentação fáctica:
<<[...]
Factos provados:
A ofendida A em 2005, através do seu amigo conheceu B, arguido do presente processo. Posteriormente, o arguido disse à ofendida que ele fosse capaz de ajudar a ofendida a transferir o dinheiro em RMB para Macau, e depois trocá-lo por dólar de Hong Kong ou pataca.
Em 2007, a ofendida, através do arguido, conseguiu transferir da China para Macau a quantia de um pouco mais de trezentas mil RMB e trocou-a por dólar de Hong Kong, enquanto o arguido tirou da qual cerca de cinco mil a título de despesa com formalidades.
Em 18 de Dezembro de 2008, a ofendida telefonou ao arguido, pedindo-lhe para ajudar a transferir para Macau, a quantia pertencente ao seu parente no interior da China, no valor de um milhão e quinhentas RMB e troca-la por dólar de Hong Kong a fim de comprar imóvel em Macau. O arguido aceitou o pedido mas tinha de cobrar doze mil dólares de Hong Kong a título de despesa com formalidades. Assim as duas partes chegaram a acordo.
O arguido pediu à ofendida para depositar a quantia de um milhão, quinhentas mil RMB na conta bancária n.oXXX-XXXXXXXXXX, aberta em nome da “Agência XXX XXX Ltda.” junto ao Banco Industrial e Comercial, sucursal da Cidade de Xiamen, Zona Este.
Em 19 de Dezembro de 2008, a ofendida segundo a instrução do arguido, depositou em nome da “Companhia de Engenharia Mecânica XXX” que foi estabelecida pelo seu amigo, a quantia de um milhão, quinhentas mil RMB na conta bancária fornecida pelo arguido (vide fls. 5 e 72 dos autos).
Após ter depositado a quantia na conta acima referida, a ofendida, desde 20 de Dezembro de 2008, nunca mais conseguiu entrar em contacto com o arguido.
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Mais se provou:
Que o arguido está desempregado e tem como habilitações académicas a frequência da 6a classe do ensino primário.
Não tem ninguém a seu cargo.
Conforme o CRC, o arguido é primário.
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Factos não provados:
Os restantes factos constantes da acusação pública e particular que não estejam em conformidade com a factualidade acima provada, nomeadamente:
Que a conta bancária n.oXXXXX-XXXXXXXXXX junto do Banco Industrial e Comercial, sucursal da Cidade de Xiamen, Zona Este, em nome da “Agência XXX XX Ltda.” foi aberta pelo arguido.
Que o arguido se apropriou, sem tivesse conhecimento e consentimento da ofendida, o dinheiro que a ofendida lhe tinha entregue por título não translativo da propriedade, cujo valor era consideravelmente elevado.
E demais elementos subjectivos deste tipo de ilícito.
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Convicção do Tribunal:
A convicção do colectivo fundamenta-se nas declarações das testemunhas e no exame dos documentos juntos aos autos, sendo que nem as testemunhas nem a prova documental constante dos autos foi suficiente para convencer o tribunal, para além de qualquer dúvida razoável, que o arguido se apropriou ilegitimamente do dinheiro depositado pela ofendida na conta bancária em nome de “Agência XXX XX Ltda.”, na medida em que, ficou por esclarecer se a referida conta bancária fora aberta pelo arguido, que ele próprio, ou por intermédio de terceiros, podia proceder ao levantamento de dinheiro depositado nessa conta e se aquele dinheiro efectivamente havia sido levantado, tanto pelo arguido como por qualquer outra pessoa>> (cfr. o teor sic da tradução portuguesa da fundamentação fáctica do acórdão, constante das págs. 9 a 11 do texto do próprio acórdão, ora a fls. 223 a 224 dos autos).
III – FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA
É de notar, de antemão, que mesmo em processo penal, e com excepção da matéria de conhecimento oficioso, ao tribunal de recurso cumpre resolver apenas as questões material e concretamente alegadas na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas conclusões da mesma, e já não responder a toda e qualquer razão aduzida pela parte recorrente para sustentar a procedência das suas questões colocadas (nesse sentido, cfr., de entre muitos outros, os acórdãos do TSI, de 7 de Dezembro de 2000 no Processo n.o 130/2000, de 3 de Maio de 2001 no Processo n.o 18/2001, e de 17 de Maio de 2001 no Processo n.o 63/2001).
Nesses parâmetros, vê-se que a assistente colocou apenas o vício de erro notório na apreciação da prova (a que alude o art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do CPP) como questão única objecto do seu recurso, tendo frisado ela na parte das conclusões da sua motivação, em abono da sua posição, que “o crucial depoimento prestado em audiência pela testemunha XXX, titular do registo do telemóvel n.o XXXXXXXX, apontando o dedo acusador ao arguido no sentido de ter sido este o utilizador contínuo e ininterrupto do telemóvel em causa à data dos factos, incluindo o pagamento mensal das facturas”, “Conjugado com o teor das mensagens enviadas desse mesmo telemóvel ao número da assistente, com detalhes do nome da firma e o número da conta bancária na China para a qual a assistente deveria depositar o dinheiro, facto que aconteceu”, “Permitiriam ao Tribunal Colectivo a quo chegar à conclusão e convicção de que o arguido arquitectara o esquema criminoso, dera indicações detalhadas à assistente, e, a final, apoderara do dinheiro que lhe foi transferido sem título translativo da propriedade, e, portanto, a prática criminosa de que vinha acusado”.
Entretanto, para este Tribunal ad quem, depois de examinados todos os elementos probatórios referidos no acórdão recorrido, não se mostra patente que a livre convicção a que chegou o Tribunal Colectivo a quo tenha sido formada com violação de qualquer regra da experiência da vida humana em normalidade de situações, de qualquer norma sobre prova legal, ou de quaisquer legis artis em matéria de julgamento de matéria de facto, pelo que não pode ocorrer o esgrimido erro notório na apreciação da prova, ao contrário do entendido pela assistente recorrente.
Aliás, o depoimento da testemunha XXX, nos termos citados pela assistente na motivação do recurso, nem tem a virtude de, por si só, fazer provar a alegada apropriação, pelo arguido, do dinheiro depositado na conta bancária em causa.
Naufraga, pois e evidentemente, e sem mais indagação por ociosa, o recurso.
IV – DECISÃO
Dest’arte, acordam em rejeitar o recurso, por ser manifestamente improcedente.
Custas do recurso pela assistente, com duas UC de taxa de justiça e três UC de sanção pecuniária aplicada nos termos do art.o 410.o, n.o 4, do CPP.
Fixam em mil patacas os honorários do Exm.o Defensor Oficioso do arguido, a entrar na regra das custas, e ora a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 23 de Fevereiro de 2012.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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