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Processo n.º 753/2011
(Recurso Cível)

Data : 1/Março/2012

ASSUNTOS:
    
    - Prova do óbito
    - Herança jacente
    - Personalidade judiciária


SUMÁRIO:
1. A atribuição da personalidade judiciária à herança jacente (e patrimónios separados similares) é excepcional, tratando-se de um desvio à regra da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária consagrada no artigo 39°, n.º 2 do Código de Processo Civil.
2. Não se comprovando que o autor da pretensa herança jacente faleceu não tem a ré demandada personalidade judiciária
    3. Se se comprova que a uma determinada pessoa residente em Macau se ausentou para a China Interior em 1999 e não há registos do seu retorno e do seu óbito em Macau, tal não é suficiente para comprovar que ela ali morreu em finais de 1999.
    4. Só com a Lei 11/82/M, de 27 de Agosto, se veio a consagrar o princípio da obrigatoriedade do registo para os factos ocorridos no território da RAEM relativos ao estado e à capacidade civil, apontando-se como caminho possível dotar o ordenamento jurídico de um código de registo civil local, o que veio a ocorrer com o DL n.º 61/83/M, de 30 de Dez., aprovando-se um CRC para entrar em vigor no dia 1 de Fev. de 1984, aí se instituindo o registo obrigatório no art. 2º.
    5. Não basta ao recorrente alegar que num certo dia, alguém, se ausentou de Macau e partiu. Não se pode ter uma morte por presumida, sem mais, apenas a partir da ausência sem retorno e do silêncio sobrevindo.
    6. Se assim fosse, estaria a porta aberta às maiores tropelias e abusos e os vivos não dormiriam sossegados. Se assim fosse, estar-se-ia a saltar por cima de uma forma legal de suprimento da administração dos bens do ausente por via dos institutos da curadoria e da morte presumida que regulam sobre tais situações - artigos 89º e 100º do CC.

O Relator,
  
  

João Gil de Oliveira
Processo n.º 753/2011
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 1/Março/2012

Recorrente: A

Recorrida : Herança Jacente aberta por óbito de B
         (B的待繼承遺產)

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, mais bem identificado nos autos, veio intentar acção ordinária
    contra
    Herança Jacente aberta por óbito de B (B的待繼承遺產), que faleceu no estado de solteira, maior, com última residência conhecida em Macau, na Av. XX, n.º XX, XX, XX,
    com os fundamentos apresentados constantes da p.i., de fls. 2 a 20, alegando uma promessa de cessão de quota social, concluiu pedindo que fosse julgada procedente por provada a presente acção e em consequência formulou os seguintes pedidos:
    1. Ser emitida sentença que produza os efeitos de declaração negocial de cessão da quota com valor nominal de MOP$50.000,00 que B detinha na sociedade Empresa de Fomento Predial C, Limitada, com sede em Macau, registada na Conservatória do Registo Comercial e de Bens Móveis sob o n.º 7774, com o capital social de MOP$500.000,00, a título de dação em pagamento da dívida de B para com o A. no valor de USD$199.598,00, equivalentes a HKD$1.518845,00;
    Subsidiariamente, para o caso de improceder a execução específica,
    2. Ser a herança jacente por óbito de B condenada a pagar ao Autor o montante de USD$199.598,00, equivalentes a HKD$1.518.845,00, acrescidos dos juros legais a contar da data da citação até efectivo e integral pagamento.
    
    Procedeu-se à citação edital dos representantes da herança jacente aberta por óbito de B não tendo ninguém contestado a acção sendo a Ré actualmente representada pelo Ministério Público.
    
    Não foi apresentada qualquer contestação tendo os citados permanecido na situação de revelia absoluta.
    
    Veio a ser proferida douta sentença, absolvendo a ré da instância por a ter considerado desprovida de personalidade judiciária porquanto não comprovada a morte da pessoa cujos interesses patrimoniais ela asseguraria.
    A, autor, inconformado, vem recorrer, alegando em síntese conclusiva:
    1 - A presente acção correu os seus termos com a Ré em situação de revelia absoluta, pelo que, segundo o disposto na parte final do art. 406.°, al. b), não houve lugar ao efeito cominatório do art. 405.°, tendo sido efectuada a Audiência de Discussão e Julgamento com a produção de prova;
    2 - Não tendo existido a fase de articulados propriamente dita, o saneamento do processo acabou por ser realizado no Relatório da douta sentença ora recorrida, na qual se afirma, entre outras coisas, que "As partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam"";
    3 - No entanto, no elenco dos fundamentos da mesma douta decisão, o Tribunal a quo veio a exarar que: "(...) é de absolver a Ré da instância por a mesma não dotar de personalidade judiciária.";
    4 - Assim, existindo uma contradição notória na douta sentença, pois que a mesma não pode "sobreviver" encerrando em si duas decisões diferentes sobre a mesma matéria, a douta sentença é nula, nulidade essa que ora se invoca para todos os devidos e legais efeitos;
    5 - O tribunal a quo absolveu da instância a Ré HERANÇA JACENTE ABERTA POR ÓBITO DE B, porquanto considerou a mesma não ser dotada de personalidade judiciária por não ter dado como provado que a dita "de cujus" realmente faleceu, uma vez que a falta de registo de tal óbito em Macau, alegadamente, não permite concluir que a mesma faleceu no interior da China;
    6 - No entanto, quando o legislador atribuiu a personalidade judiciária a herança jacente (e patrimónios separados similares) a título excepcional apenas o fez como um desvio à regra da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária consagrada no artigo 39° do Código de Processo Civil;
    7 - É doutrinariamente pacífico - vide a doutrina acima citada em sede de alegações - que a lei apenas pretendeu disponibilizar uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de determinados interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação a titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos;
    8 - Pelo que só a demonstração positiva e objectiva da inexistência de uma herança jacente (por a pessoa não ser falecida ou por a herança já ter sido aceite) pode determinar a incapacidade judiciária da demandada;
    9 - Ou seja, o facto de o Meritíssimo juiz ter concluído que não se provou a morte não lhe permite concluir que a pessoa não morreu e assim, que não exista uma herança jacente com capacidade judiciária;
    10 - Por outro lado, se a atribuição da personalidade judiciária às heranças jacentes é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de determinados interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação a titularidade dos respectivos direitos (ou dos deveres correlativos), a verdade é que esses interesses estão acautelados no presente processo pelo que a não prova da morte não impediria o conhecimento do mérito da causa - art. 230.°, n.º 3 do C.P.C.;
    11 - Aliás, na prática, apenas aparentemente e formalmente não há uma coincidência entre B (se estivesse viva) e a sua herança jacente, pois que dos registos dos serviços de emigração a fls. 89 dos autos resulta que a mesma saiu de Macau através do Porto Exterior em 29/01/1999 e não voltou a entrar;
    12 - Assim, qualquer tentativa de citação da referida B só poderia ser efectuada por via edital, como ausente em parte incerta, nos mesmos termos em que foi feito para a sua herança jacente, do que resulta que se o recorrente tivesse omitido que B morreu e tivesse intentado a acção contra ela, a mesma teria de ser citada editalmente nos mesmos termos em que o foi a sua herança jacente;
    13 - Hoje em dia é inequívoca a intenção legislativa de fazer prevalecer o conhecimento de mérito sobre as decisões de mera forma, pelo que encontrando-se a relação jurídica controvertida nesta acção directamente conexionada com o património de B, tal situação reforça a conclusão de que ocorre litígio sobre direitos subjectivos cuja resolução se impõe ao tribunal;
    14 - Face ao exposto, há que concluir que não se está perante uma verdadeira excepção dilatória insanável e que obstasse ao conhecimento do mérito da acção;
    15 - Acresce que, segundo o princípio do "poder (dever) de direcção do processo" imposto no art. 6.°, n.º 2 do C.P.C., o juiz deve providenciar oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais nos autos, sempre que a mesma seja suprível e em conjugação com aquela do art. 8.°, n.º 1 do mesmo código, determina que tanto as partes como o juiz do processo se encontram obrigados a agir segundo princípios de "brevidade" e "eficácia", na busca da "justa composição do litígio";
    16 - No caso mesmo que existisse a falta de personalidade judiciária, tal pressuposto, caso não se considerasse já sanado com a demanda da herança jacente e a correcta identificação na citação edital que ocorreu da pessoa que o Tribunal considerou que deveria ser demanda, a mesma poderia mesma podewria ser facilmente sanável através do simples chamamento da pessoa que o Tribunal entendeu ser a correcta.
    18 - Não entendendo dessa forma, antes optando por absolver imediatamente a Ré da instância, o Tribunal a quo violou princípios fundamentais do processo civil que a ele impunham alguns deveres, tais como os acima referidos, para além daquele da economia processual, dos quais aqueles também são decorrentes, devendo, também por este fundamento ser revogada a decisão ora recorrida;
    19 - Da leitura da sentença posta em causa resulta que o Tribunal a quo desconsiderou outros meios de prova que foram apresentados, designadamente as testemunhas e outra prova documental;
    20 - Acontece que, para o que releva no presente caso, o óbito do autor da herança em causa não aconteceu no Território de Macau, mas em local que o Recorrente não sabe precisar do território da República Popular da China e já no ano de 1999.
    21 - Ficou provado que o óbito de B não se encontra registado em Macau e dos registos dos Serviços de Migração constantes dos autos resulta que a mesma saiu de Macau em Janeiro de 1999 e nunca mais voltou;
    22 - Ora, segundo o disposto no art. 1.º do Código do Registo Civil de Macau, somente os factos ocorridos no Território da R.A.E.M. se encontram abrangidos pela obrigatoriedade do (ingresso no) registo civil, pelo que, consequentemente, não existe a obrigatoriedade de comprovar o facto de um óbito ocorrido fora do território da mesma, através de um registo efectuado nesta;
    23 - Assim, face à prova carreada para os autos, impunha-se que se aceitasse a prova testemunhal, sob pena de violação das regras respeitantes à prova, e que se desse uma decisão diversa ao facto alegado no artigo 1º da petição inicial, pelo que, consequentemente se impugna a decisão da matéria de facto dada ao artigo 1° da petição inicial, nos termos do artigo 599°, n.° 1 do CPC, com base nos elementos de prova acima referidos;
    24 - Finalmente, uma vez que não foi gravada a audiência, deve-se determinar a renovação da prova nos termos do artigo 639°, nºs 3 do CPC para a prova do facto constante do artigo 1° da petição inicial;
    25 - Por todo o exposto, deve a douta sentença recorrida ser revogada.
    Nestes termos, entende, deve o presente recurso ser julgado procedente, ou ordenando a renovação da prova relativamente ao alegado no artigo 1º da p.i..
    
    Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Vêm provados os factos seguintes:
    • Não se encontra qualquer registo de óbito de B em Macau.
    • Encontra-se registada em nome da B uma quota com o valor nominal de MüP$50.000,00 da Sociedade Empresa de Fomento Predial C, Limitada, correspondente a 10% do capital social desta sociedade.
    • Mediante documento assinado pelo Autor em 8 de Junho de 1999, o Autor garantiu, perante uma sociedade sediada em Hong Kong denominada D International Travei and E Company Limited, o pagamento de empréstimos por esta concedidos à B, até ao montante de HKD$2.000.000,00.
    • O montante concedido por empréstimo pela referida sociedade à B foi de USD$199.598,00, equivalentes a HKD$1.5l8.845,00.
    • Em 30 de Junho de 1999, o Autor foi notificado pela sociedade D International Travel and E Company Limited para que, na qualidade de garante, efectuasse o pagamento imediato da dívida em causa.
    • A fim de evitar mora no pagamento da dívida que garantiu, o Autor, em 3 de Julho de 1999, procedeu ao seu pagamento.
    • Tendo a sociedade D International Travel and E Company Limited passado a devida quitação.
    • No ano de 1999, a B resolveu ceder ao Autor a referida quota da Sociedade C, como forma de pagar a dívida em causa.
    • O Autor aceitou a cedência da quota como forma de pagamento da dívida.
    • De acordo com os estatutos da mesma, esta tinha direito de preferência na cessão de quotas a estranhos.
    • O Autor interpelou várias vezes a B para a celebração do contrato de cessão da quota supra referida.
    • A formalização de cessão da quota nunca chegou a ocorrer.
    • A Sociedade C deliberou não exercer o direito de preferência na transferência da quota em nome de B se ao Autor vier a ser reconhecido o direito de aquisição da quota pertencente a B por execução específica.
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso reconduz-se, no fundo, à questão da comprovação da morte de B.
    A Mma Juíza entendeu que esse facto, o de que B faleceu em finais de 1999 na República Popular da China em data que o A. não precisa, não estava comprovado nos autos e esse mesmo A., ora recorrente, insiste pela produção da prova de tal facto.
    Está em causa o cumprimento de uma alegada cessão de quota da dita falecida ao autor, em dação de cumprimento de dívida, pedindo-se a execução específica dessa promessa e, subsidiariamente, a condenação da herança jacente por óbito de B da quantia correspondente àquela promessa, sendo ambos os pedidos dirigidos contra tal herança jacente.

2. Há uma questão prévia que vem suscitada e assentaria numa aparente contradição no texto da sentença entre a afirmação, a dado passo, de que as partes são dotadas de personalidade e capacidade judiciária e de legitimidade "ad causam" e, a final, se decidir a causa com base na falta de personalidade judiciária da ré, absolvendo-a da instância.
Na pura forma, o recorrente não deixaria de ter razão. Só que acaba por perdê-la, na substância, pois, como se mostra claro - e tão claro que o recorrente acaba por admiti-lo, avançando para a discussão da questão substancial relativa à falta de tal pressuposto -, a Mma Juíza tomou pronúncia expressa, positiva, fundamentada sobre a inexistência desse pressuposto, o que revela bem da natureza tabelar da primeira proposição, como sói dizer-se.
O lapsus calami evidencia-se, no caso, à saciedade, face ao texto e contexto da decisão e a inteligência mínima não deixa de o perceber e de ler correctamente a mens judicis.
Tanto basta para não se perder mais tempo com esta falsa questão.
   
3. Vamos então ao que interessa.
3.1. A decisão proferida tem como fundamento de facto o de o tribunal a quo não ter dado como provado que a dita "de cujus" realmente faleceu, já que uma vez que o facto de não constar qualquer registo de óbito de B em Macau não permitir tirar a ilação de que esta faleceu no interior da China, não se pode concluir que a herança por ela deixada (a qual, aliás, nem se pode afirmar que existe em termos jurídicos) é dotada de personalidade judiciária para ser parte nestes autos.
Face ao acima exposto, a douta sentença ora recorrida decidiu ... absolver a Ré da instância por a mesma não ser dotada de personalidade judiciária.
    
    3.2. Discorda o recorrente do entendimento de que a personalidade judiciária das heranças jacentes constitui uma excepção e se destina a suprir a falta de tutela dos credores do falecido face à morte deste; que a demanda da herança de alguém pressupõe a morte desse alguém; não estando provado isso, a herança jacente demandada não é dotada da necessária personalidade jurídica.
    E discorda porque, diz, o facto de o recorrente não ter logrado provar a morte, não retira personalidade judiciária à demandada pois provado não se encontra que B não morreu ou que a herança por ela deixada já tenha sido atribuída.
    Assim, só a demonstração da inexistência de uma herança jacente (por a pessoa não ser falecida ou por a herança já ter sido aceite) pode determinar a incapacidade judiciária da demandada.
    
    3.3. Sinceramente que não estamos a perceber o que é que o recorrente pretende dizer.
     Então não é verdade que uma herança jacente pressupõe um morto, o autor da herança? Não é verdade que são chamados a sucederem-lhe, nos seus interesses patrimoniais, os seus herdeiros? E que estes podem optar por não inventariar e partilhar os bens (o activo e o passivo) e que assim eventuais credores e outros interessados relacionados com os bens da herança seriam prejudicados pela inacção dos herdeiros? E daí o legislador, prudente e avisado, prover à tutela dos seus interesses, ficcionando uma personalidade judiciária à herança ainda jacente?
    Esta situação afigura-se clara, compreendendo-se assim que a atribuição da personalidade judiciária à herança jacente (e patrimónios separados similares) seja excepcional, tratando-se de um desvio à regra da coincidência entre a personalidade jurídica e a personalidade judiciária consagrada no artigo 39°, n.º 2 do Código de Processo Civil.
    Trata-se, uma herança jacente, do conjunto de situações jurídicas que se encontravam na titularidade do “de cujus” no momento da morte e não devam extinguir-se por efeito dela, conjunto esse que ainda não tem dono por não ter sido aceite.1
    Trata-se de uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de determinados interesses em crise, nos casos em que haja qualquer situação de carência em relação a titularidade dos respectivos direitos ou dos deveres correlativos. 2
    Assim sendo, a morte é um pressuposto da herança jacente e o raciocínio do recorrente é, no mínimo falacioso, enquanto diz que o facto de a Meritíssima Juíza ter concluído que não se provou a morte não lhe permite concluir, que a pessoa não morreu e, assim, que não exista uma herança jacente com capacidade judiciária.
    A quem cabe provar a morte de B é ao autor; não a comprovando, não se demonstra a existência de herança alguma e daí decorre que rui por terra a pretensão de exercício de um direito contra um património autónomo por não se ter por certo que esteja apartado do respectivo dono.
    A argumentação do recorrente não faz sentido; o que ele pretende, no fundo, se conseguimos perceber, é que o juiz só podia considerar que não havia herança jacente se, ele juiz (?), comprovasse que o pretenso falecido afinal está vivo.
    Com todo o respeito, mas isto não tem o mínimo sentido.
    
    3.4. Depois, acrescenta o recorrente que, se a atribuição da personalidade judiciária às heranças jacentes é uma forma expedita de acautelar a defesa judiciária de determinados interesses em crise, a verdade é que esses interesses estão acautelados no presente processo pelo que a não prova da morte não impediria o conhecimento do mérito da causa.
    Na verdade, continua, mesmo não se provando a morte, apenas aparente e formalmente não há uma coincidência entre B (se estivesse viva) e a demandada, a herança jacente.
    Então, com isto, pretende o recorrente que tanto faz pôr uma acção contra os herdeiros de pessoa viva ou contra pessoa ausente, ou de paradeiro incerto, pois que sendo citados os seus presumidos herdeiros, para mais editalmente, estão garantidos os meios de defesa do citando?
    É por demais manifesto o non sense desta argumentação.
    
    4. Vamos agora analisar a questão fulcral, qual seja a da prova do óbito de B.
    4.1. Porque o Tribunal ordenou que fossem oficiados os serviços de emigração no sentido de apurar as entradas e saídas da B de Macau, a fim de se saber algo do seu paradeiro, tendo resultado dessa diligência que a mesma saiu de Macau através do Porto Exterior em 29/01/1999 e não voltou a entrar;
    porque qualquer tentativa de citação da referida B só poderia ser efectuada por via edital, como ausente em parte incerta, nos mesmos termos em que foi feito para a sua herança jacente;
    porque se o recorrente tivesse omitido (o que se calhar deveria ter feito, como diz, face à decisão que veio a ser tomada – disposição que prenunciaria má-fé, dizemos nós) que B morreu e tivesse intentado a acção contra ela, a mesma teria de ser citada editalmente nos mesmos termos em que o foi a sua herança jacente;
    porque se a decisão se mantiver, na impossibilidade de obter uma certidão de óbito, o recorrente vai propor a mesma acção agora dirigida contra B, na qual o Tribunal repetirá os mesmos éditos, apenas tendo de eliminar a expressão, herança Jacente – e insiste nesse anúncio de conduta processual reprovável;
     assim, conclui, tanto os interesses da B (se estiver viva), como aqueles que se querem salvaguardar quando se reconhece excepcionalmente capacidade judiciária herança jacente, foram salvaguardados com a citação edital que foi efectuada, embora dirigida à sua herança jacente. É que se a mesma aparecesse no processo a irregularidade a que o Meritíssimo Juiz considerou existir - falta de personalidade judiciária poderia ser considerada sanada ou facilmente sanável.
    
    4.2. Este tipo de argumentação ad terrorem não deixa de causar alguma estupefacção.
    Desde logo, ficamos sem saber se, para o autor, B morreu ou não morreu. É que se sim, a acção foi bem proposta e o argumento válido com que tem que esgrimir é com a prova desse facto; se não, está a litigar de má-fé.
    Agora vir dizer que pôr a acção contra o devedor ou contra a sua herança jacente é o mesmo, afigura-se muito censurável. E anunciar que afinal vai pôr a acção contra uma pessoa que sabe que morreu é insistir numa postura processual censurável.
    É que o recorrente, no fundo, quer suprimir etapas. Se aquela senhora faleceu, muito bem, prove o óbito; se não faleceu e se se ausentou sem deixar rasto e sem prover ao seu giro patrimonial, então, aí a lei prevê mecanismos que podem suprir essa situação e agora, no novo CC (Código Civil), de uma forma muito mais expedita.
    
    5. Da Sanação de uma eventual falta de pressuposto processual
    5.1. Invoca, depois, o recorrente um outro argumento, insistindo no acerto da estratégia por si delineada, dizendo ser hoje em dia inequívoca a intenção legislativa de fazer prevalecer o conhecimento de mérito sobre as decisões de mera forma - que a relação jurídica controvertida nesta acção se encontra directamente conexionada com o património de B (ou que constitui a sua herança jacente). Tal situação reforça, sem dúvida, a conclusão de que ocorre litígio sobre direitos subjectivos cuja resolução se impõe ao tribunal.
    Assim, se a lei prevê a possibilidade de sanação, em certos casos da personalidade judiciária, através do simples acto do chamamento à demanda daquela pessoa em falta nos autos e cuja simples presença nos mesmos "regularizará" os seus termos - porque e quando o mesmo é possível -, sendo certo que, no presente caso, a falta do pressuposto processual em causa podia ser facilmente sanada pelo chamamento à acção da pessoa cujo falecimento o Tribunal a quo considerou como não tendo sido provado, devia o mesmo tribunal ter oficiosamente zelado pela sanação da referida irregularidade, ordenando o chamamento à demanda da parte em falta na mesma, sob pena de violar, como violou com tal decisão, os artigos acima referidos, alguns deles, inclusivamente, princípios fundamentais do processo civil que a ele impunham alguns deveres.
    Isto, insiste no dislate, se não se considerar que B já se deveria considerar citada (se estivesse viva) com a citação da herança jacente na medida em que a sua citação se resumiria a uma mera repetição dos mesmos editais, apenas se retirando a expressão "representantes da sua herança jacente".
    Não entendendo dessa forma, antes optando por absolver imediatamente a ré da instância, o Tribunal a quo teria violado tais princípios, para além do da economia processual, devendo, também por este fundamento ser revogada a decisão ora recorrida.
    
    5.2. Deste segmento, retiramos apenas o enunciado do princípio tendente à realização da justiça material efectiva, não assistindo razão ao recorrente enquanto diz não se dever concluir que não se está perante uma verdadeira excepção dilatória insanável que obstasse ao conhecimento do mérito da acção e que se violou o princípio da economia processual.
    Sinceramente que ficamos sem palavras. Então, o recorrente pretendia que fosse o Tribunal, com desrespeito pelo princípio do dispositivo e da iniciativa das partes, princípios igualmente basilares do processo civil - artigos 3º e 5º do CPC - que, passe o ridículo, fosse chamar o morto?
    Não. Este tipo de argumentação não merece desperdício de tempo por parte deste Tribunal.
    O que a Mma Juíza disse foi: o A. alegou que FSF faleceu. Não provou, considero a herança jacente, ré na acção, destituída de personalidade judiciária.
    E com isto, com todo o respeito, estamos a entrar na parte séria da discussão jurídica do thema.
    
    6. Da prova do óbito
    6.1. Diz o recorrente que o Tribunal a quo não atendeu à prova testemunhal que foi feita sobre esse facto - pretenderá dizer prova proposta - , razão pela qual deu como não provada a morte.
    O sentido da junção da certidão negativa relativamente ao registo do óbito em Macau, juntamente com alegação de que a mesma faleceu fora de Macau, foi o de permitir o recurso a outros meios de prova, que não a certidão de óbito, para a prova desse mesmo óbito.
    Mais diz, proclamando o seu respeito pelo Tribunal, que este tomou a nuvem por Juno, que a certidão negativa não faz concluir pelo óbito, desconsiderando outros meios de prova que foram apresentados, designadamente as testemunhas arroladas, tendo assim concluído pela não prova do facto.
    Porque o óbito do autor da herança em causa não aconteceu no Território de Macau, como se alegou, mas em local que o recorrente não sabe precisar do território da República Popular da China e já no ano de 1999;
    porque os Serviços de Migração enviaram registos das entradas e saídas de Macau de B, dos quais resulta que a mesma saiu de Macau em Janeiro de 1999 e nunca mais voltou;
    e porque só os factos ocorridos em Macau devem ingressar no Registo Civil, face ao disposto no artigo 1º do CRC (Código de Registo Civil) devia o recorrente ter tido oportunidade de apresentar prova da morte de B.
    
    6.2. Perante isto, uma primeira observação: será que o recorrente entende comprovada a morte com tais elementos ou propõe-se prová-la a partir de outra prova arrolada nos autos? Mas como, se o julgamento foi já realizado e não deixou de ter ensejo para tal ?
    É verdade que o art. 1.º do CRC (Código do Registo Civil), refere o seguinte:
    "1 - Devem ingressar no registo civil de Macau os seguintes factos ocorridos no Território:
    a) ...
    …
    j) O óbito.
    2 - A obrigatoriedade de ingresso abrange ainda os factos que ocorram no Território e que determinem ... "
    Dispõe ainda o art. 4º, n.º 2 do CRC
    1. A prova dos factos sujeitos a registo só pode ser feita pelos meios previstos neste Código.
2. Os factos ocorridos antes de 1 de Fevereiro de 1984, que não tenham sido registados, podem provar-se pelos meios até então admitidos quando não sejam invocados para efeitos de actos de registo civil ou para fins de identificação.
    6.3. O recorrente invoca dois acórdãos deste Tribunal de forma a convencer da possibilidade de prova do óbito por outros meios que não os privativos do Registo Civil.
    Regista-se que esta afirmação é do recorrente e não da Mma Juíza. Em lado algum, tanto em sede da matéria de facto, despacho que decidiu sobre a reclamação, como em sede da sentença se afirma que não se provou a morte por ela dever ser comprovada por prova documental ou por meio privativo do Registo Civil de Macau.
    Ora, no acórdão de 1987, proc. 382/2007 deste TSI estava em causa a prova do óbito dos inventariados na década de cinquenta do século passado. No processo n.º 85/2000 estava em causa a morte do inventariado em 1960.
    Ambas as situações ao tempo em que não vigorava o registo obrigatório.
    Na verdade, só com a Lei 11/82/M, de 27 de Agosto, se veio a consagrar o princípio da obrigatoriedade do registo para os factos ocorridos no Território relativos ao estado e à capacidade civil, apontando-se como caminho possível dotar o ordenamento jurídico de um código de registo civil local, o que veio a ocorrer com o DL n.º 61/83/M, de 30 de Dez., aprovando-se um CRC para entrar em vigor no dia 1 de Fev. De 1984, aí se instituindo o registo obrigatório no art. 2º.
    Donde, esses mencionados acórdãos, pese o denodo argumentativo do recorrente, de nada nos servirem.
    
    6.4. Importa ter algum cuidado no que respeita à prova dos factos sujeitos a registo.
    São por demais as razões que instituíram o registo como obrigatório e as razões que determinam uma prova autêntica e plena dos factos que ali devem ingressar. Dispensamo-nos aqui de as referir.
    Mas uma coisa é certa: a lei é muito clara quanto à delimitação do universo dos casos sujeitos ao registo obrigatório e só por essa via podendo ser comprovados. Trata-se iniludivelmente dos factos ocorridos na RAEM.
    E então os óbitos ocorridos fora desta região? Naturalmente que serão passíveis de qualquer outro meio de prova, documental, de acordo com o lugar da ocorrência, ou outra prova que o juiz livremente valorará.
    E com relevância para o caso concreto não se deixa de referir que a lei da China prevê um regime que determina o registo dos óbitos ali ocorridos - artigo 8º do Regulamento sobre o Regime da Cidadania, de 9/1/1958.
    Não temos no nosso ordenamento uma norma que imponha o registo do decesso da pessoa a todo e qualquer residente de Macau, tal como ocorre noutros lugares, em particular no sistema do registo ibérico, um dos sistemas registrais mais bem elaborados do Mundo.
     Temos assim de admitir que um residente de Macau possa morrer em qualquer parte da Mundo, muitos perecerão na sua terra-mãe, a China, porventura, noutras paragens e os interessados não ficarão inibidos de provar a morte, podendo tal facto ingressar no Registo nos termos do artigo 5º, n.º 1 do CRC.
    Não se trata de uma prova fácil, mas não impossível, e essa dificuldade não se deve traduzir em prova inacessível, sob pena de impossibilidade de prova de factos juridicamente relevantes.
    Repare-se que mesmo para os óbitos antes de 1984, a lei, artigo 148º do CRC, embora dispensando a justificação, para a realização do registo do óbito impunha prova inequívoca com base em documento passado pela autoridade sanitária ou estabelecimento hospitalar, com descrição do respectivo circunstancialismo em que ocorreu.
    Pensemos nas mortes em teatro de guerra, em situações de desastres de aviação, de naufrágios, desaparecimentos ou quedas em selvas remotas e lugares recônditos. O simples desaparecimento não significa morte.
    E como comprová-la, se a própria comunidade científica se divide na determinação do momento morte? Pensemos até nos lugares ou países em que não já qualquer mecanismo de registo e certificação dos óbitos.
    Actualmente prevalece o critério da morte cerebral. Sendo certo que ela deve ser medicamente comprovada.
    Tudo isto para se compreender o rigor que a Mma Juíza colocou na questão da comprovação desse facto, mesmo alegando-se a sua ocorrência fora de Macau, tanto mais que a morte que é fim, também é princípio3. Pelo menos, juridicamente falando.
    
    6.5. Não basta ao recorrente alegar que num certo dia, alguém, se ausentou de Macau e partiu. De toda a alegação do recorrente dá a ideia que pretende que se tenha uma morte por presumida, apenas a partir da ausência sem retorno e do silêncio sobrevindo.
    Se assim fosse, estaria a porta aberta às maiores tropelias e abusos e os vivos não dormiriam sossegados. Se assim fosse, estar-se-ia a saltar por cima de uma forma legal de suprimento da administração dos bens do ausente por via dos institutos da curadoria e da morte presumida que regulam sobre tais situações - artigos 89º e 100º do CC.
    E não é difícil que o recorrente queira tornear os escolhos que tais situações suscitam e resolver o seu problema, invocando a morte do devedor.
    Da prova produzida não se pode extrair, com a mínima razoabilidade e segurança, o facto pretendido pelo recorrente, ou seja a morte de B.
    E não se percebe que outra prova possa apresentar. Mesmo que se admitisse que a lei da China não impõe uma prova tarifada para a certificação do óbito, o que não deixará de ir ao arrepio do obrigatoriedade do registo dos óbitos que ali ocorram, o certo é que, esgotadas que foram as hipóteses de produção das provas, realizado o julgamento, temos apenas que concluir como a Mma Juíza concluiu, no sentido da não comprovação da morte que vem alegada.
    Atente-se ainda, por outro lado, que, mesmo no nosso ordenamento, se o disposto no artigo 65º do CC parece não excluir a prova do fenómeno morte e determinação do seu momento, tal não exclui, no entanto, o registo de óbito quando ele deva ter lugar e o processo de justificação do óbito previsto nos artigos 154º e 178º do CRC.4
Como já ficou claramente dito, contrariamente ao pretendido, os indicados elementos que se traduzem numa certidão negativa do registo de óbito em Macau e os registos dos Serviços de Migração de fls. 83 não impõem uma decisão diversa daquela que a Mma Juíza tomou. Se é só isso, bem andou a Mma Juíza.
    Posto tudo isto, no caso concreto, perante o que alegado foi, somos a decidir no sentido de sufragar o julgamento de facto produzido, não permitindo os elementos probatórios produzidos nos autos e na audiência outra conclusão que não aquela que foi doutamente extraída, não havendo qualquer base para se proceder a uma renovação de prova sobre a alegada morte no exterior a Macau, na pressuposição de que o recorrente alude ao artigo 629º, n.º 3 do CPC.
    Não haverá lugar a qualquer renovação da prova testemunhal nesta Instância pela razão simples de que nada aponta que tenha havido um incorrecto julgamento de facto, não podendo a parte pretender que o tribunal supra o que lhe incumbia provar.

   IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, mantendo-se, assim, a decisão proferida
    Custas pelo recorrente.
Macau, 1 de Março de 2012,


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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

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Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

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José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Oliveira Ascensão, Sucessões, 1980, 36 e Galvão Telles, Dir. Sucessões, 5ª ed., 9
2 - Antunes Varela, Manual de Processo Civil 2ª Edição, pág. 111

3 - Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Dto das Sucessões, I, 3ª ed., 173
4 - Cfr. Ac. STJ, proc. 085647, de 6/10/94, ainda que para uma situação de determinação do momento da morte; cfr. PL e AV, CCA,
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