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Processo nº 39/2011
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 23 de Fevereiro de 2012

ASSUNTO:
- Locação da empresa
- Excepção do não cumprimento

SUMÁRIO:
- Nos termos do artº 1030º do CCM, a locação de empresa comercial é o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração da empresa comercial nele instalada.
- Na locação da empresa comercial, o que faculta é o direito da exploração da empresa, que não implica necessariamente a transferência da titularidade da licença.
- A não transferência da titularidade da licença da exploração nada obsta à exploração do estabelecimento de comida por parte da Ré, pelo que não constitui excepção de não cumprimento nos termos do artº 422º do CCM.
O Relator,

Ho Wai Neng
Processo nº 39/2011
(Autos de Recurso Civil e Laboral)

Data: 23 de Fevereiro de 2012
Recorrente: B (Macau) Limitada (Ré)
Recorridos: C e D (Autores)

ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:

I – Relatório
Por Sentença de 23/07/2010, decidiu-se:
- julgar parcialmente procedente a acção ordinária intentada pela Autores.
- condenar a Ré a pagar aos Autores a quantia de HKD$682.500,00, convertível em MOP$703.998.75, acrescida dos juros de mora à taxa legal, mais a sobretaxa de 2%, contabilizados a partir do dia 20 de cada mês em falta a que respeitava até integral e efectivo pagamento.
- julgar improcedente a reconvenção deduzida pela Ré, absolvendo-se os Autores do pedido reconvencional.
Dessa decisão vem recorrer a Ré, alegando, em sede de conclusão, o seguinte:
I. O douto acordão ora recorrido considera não se aplicar in casu o instituto da "exceptio inadimpleti contractus" (cf. artigo 422º do Código Civil de Macau) essencialmente pelo facto na situação em julgamento haver prazos diferentes para a realização das prestações e o pagamento da renda não corresponder à obrigação sinalagmática de transferir a licença.
II. A excepção do não cumprimento é oponível quer no caso de falta integral de cumprimento quer no de cumprimento parcial ou defeituoso, contanto que a sua invocação não contrarie o princípio da boa fé ínsito no art.º 752°, n.º 2, do Código Civil, por cuja força no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direi to correspondente, devem as partes proceder de boa fé.
III. Escreve Antunes Varela, ...o que é justo e está conforme com o pensamento subjacente aos contratos bilaterais, espelhado claramente no art.º 428º e noutras disposições do Cód. Civil, é que o contra tante que cumpre defeituosamente a sua obrigação não tem o direito de exigir a respectiva contraprestação, como se nenhuma falta houvesse da sua parte dentro da economia da relação contratual, e enquanto não corrigir o defeito da sua prestação.
IV. Quando alguns dos defeitos da prestação efectuada são verdadeiramente irreversíveis, o contraente faltoso só readquire o direito à contraprestação quando prévia ou simultaneamente se oferece para reparar os danos causados à contraparte, repondo a situação dela.
V. Nos que nos casos em que à prestação continuada de uma das partes (locador, facultar o gozo da coisa para o fim do contrato) corresponde a prestação reiterada ou periódica da outra (locatário, pagamento da renda), pode esta suspender o cumprimento da obrigação a seu cargo, se a primeira interromper a sua prestação ou a cumpriu defeituosamente.
VI. Ocorre o cumprimento defeituoso da obrigação quando a prestação efectuada não tem requisitos idóneos a fazê-la coincidir com o conteúdo obrigacional tal como este resulta do contrato e do princípio geral da correcção e da boa fé, podendo o defeito ser quantitativo ou qualitativo.
VII. A excepção do não cumprimento do contrato ser oposta mesmo no caso de incumprimento ou cumprimento defeituoso (exceptio non rite adimpleti contractus).
VIII. A obrigação assumida pelos AA autores respeitante à transferência da licença necessária ao funcionamento e abertura ao público do restaurante objecto do contrato de cessão de exploração, não reveste a natureza de dever acessório de conduta, nem de dever acessório da prestação principal, mas integra a própria prestação principal - proporcionar o gozo pleno do espaço que se destina contratualmente.
IX. Isto assim é porque o contrato celebrado não foi de mero arrendamento mas de cessão de exploração de um específico estabelecimento comercial com licença válida.
X. A prestação a que os AA se obrigaram foi a de proporcionar à sociedade R. a utilização para fins de restauração de urna fracção passível de estar aberta ao público, licenciada para funcionar como restaurante.
XI. A transmissão da licença constitui e integra o cerne da prestação dos AA, faz parte, neste tipo de contrato, do dever principal, primário ou típico que constitui a prestação dos AA.
XII. O montante de renda a pagar pela sociedade R. não era devida pela simples cedência do imóvel, mas sim pela cedência de um imóvel específico incluindo equipamento de restauração, clientela e licença, com potencialidade de estar aberto ao público e capaz de atrair clientela e proporcionar lucros à R.
XIII. Acontece que os AA cumpriram defeituosamente a sua prestação porquanto não transmitiram a referida licença para a sociedade R. no âmbito do contrato celebrado, cessão temporária de exploração de estabeleciento de comidas, antes transmitiu aquele estabelecimento a título definitivo para um terceiro, empregado da sociedade R.
XIV. Desta sorte, encontra justificação, à luz do disposto no art.º 422º do Código Civil, a atitude da sociedade R. no sentido de suspender o pagamento das rendas até que os AA. corrigissem os defeitos da sua prestação (sendo certo que nunca o fizeram).
XV. Apesar do cumprimento pelos AA já não ser possível em relação ao tempo passado, a consequência desta circunstância não é a de a sociedade R. estar obrigada a pagar as rendas, como se nada tivesse acontecido.
XVI. Em relação ao passado, os AA só tem direito às rendas se prévia ou simultaneamente se oferecerem para reparar os danos que causaram à R. repondo o equilibrio das prestações, o que nunca chegou a acontecer.
XVII. E ainda assim obtiveram o montante de HK$227.500,00 a título de rendas e caução, pagos pelos sociedade R. no momento da assinatura do contrato e nos dois primeiros meses de contrato, que divididos por 12 meses correspondem a uma renda mensal, durante um ano, para o locado, de HK$20.000,00, renda/mês, valor normal no mercado para um estabelecimento fechado.
XVIII. Os AA que cumpriram defeituosamente a sua obrigação não podem ser premiados com a condenação da sociedade R. no pagamento das rendas, como se tivessem cumprido pontualmente.
XIX. Estão reunidos os requisitos da excepção do não cumprimento prevista no artigo 422º do Código Civil de Macau, que constitui uma excepção peremptória, que só pode levar o V. Tribunal de recurso a absolver a sociedade R. do pedido.
XX. O acórdão ora recorrido violou, por desaplicação, o disposto no art.º 422º do Código Civil de Macau.
Pedindo no final que seja revogada a sentença recorrida e substituída por outra que absolva a Ré do pedido.
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Os Autores responderam à motivação do recurso da recorrente, nos termos constantes a fls. 267 a 301 dos autos, cujo teor aqui se dá integralmente reproduzido, pugnando pela improcedência do recurso ora interposto.
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Foram colhidos os vistos legais.
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II – Factos
Ficaram provados os seguintes factos na 1ª Instância:
1. Os Autores são proprietários da fracção autónoma designada por AR/C, do rés-do-chão "A", com cave, para comércio, do prédio sito em Macau, na Rua ……, nºs … a …, Taipa, descrito na Conservatória do Registo Predial sob n º 2XXXX. (A)
2. A Ré é uma sociedade por quotas registada na Conservatória dos Registos Comercial e de Bens Móveis sob o nº 2XXXX, tendo como objecto social a exploração de restaurantes. (B)
3. No exercicio das respectivas actividades, a Ré e os Autores celebraram, em 4 de Julho de 2007, um acordo escrito, assinado pelas duas partes, tal como consta do documento junto aos autos a fls. 18 e 19, devidamente traduzido para lingua portuguesa a fls . 77 e 78, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (C)
4. De acordo com o clausulado no aludido acordo escrito, a Ré obrigava-se ao pagamento aos Autores de uma renda mensal no montante de HKD$65.000,00, a qual deveria ser paga antes do início do mês (dia 20) a que, respeitava, (D)
5. Acordou ainda a Ré que entregaria aos Autores uma caução no montante de HKD$130.000,00, quantia que seria considerada perdida a favor dos últimos a título de sanção indemnizatória no caso de o acordo ser resolvido pelos Autores com fundamento na falta de pagamento das rendas. (E)
6. Com a assinatura do referido acordo e em cumprimento do mesmo, a Ré pagou aos Autores a renda referente ao período entre 20/7/2007 a 19/8/2007 no montante de HKD$65.000,00, e entregou aos mesmos, a título da caução mencionada na alínea c) do artigo 4º supra, a quantia de HKD$130.000,00. (F)
7. A Autora D é titular de uma licença de Exploração de Estabelecimento de Comidas (Lic. n.º 104/2003, válida até 5/11/2007) e explorava um restaurante na fracção aludida em A). (G)
8. Em 13 de Agosto de 2007, a Autora D transferiu a sua licença para o nome de um empregado da sociedade Ré, F, residente em Singapura. (H)
9. F transferiu de novo a licença para a Autora D, em 26 de Março de 2008. (I)
10. A Ré deixou de pagar metade da renda relativa ao período de 20 de Agosto e 19 de Setembro de 2007, e as rendas relativas aos meses de 20 de Setembro de 2007 até 19 de Julho de 2008. (1º)
11. A Ré entregou as chaves do imóvel a 4 de Julho de 2008 a funcionário do escritório do Advogado Pedro Leal. (2° e 8°)
12. Autores e Ré acordaram, entre outros, o seguinte clausulado: “若乙方所經營之商業(餐飲)需要向政府有關部門申請牌照時,甲方須提供協助,但一概責任及費用由乙方負責。”e “如租約期滿時或乙方退租遷出時,必須將上述舖位歸還甲方,甲方即將所收按金原銀無息退還給乙方;乙方退租時必須將飲食牌照費和有關費用清繳妥當後並轉讓給業主。有關轉讓費用則由業主支付”. (3º)
13. Em 5 de Outubro de 2007, a Ré pagou metade da renda relativa ao período de 20 de Agosto e 19 de Setembro de 2007. (5º)
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III – Fundamentos
Na óptica da Ré, ela goza da excepção de não cumprimento do contrato em virtude do incumprimento dos Autores consistindo em não transferir a titularidade da licença de exploração do estabelecimento de comidas em que a Autora D é titular, cuja falta determina a impossibilidade da prossecução do fim do contrato da locação da empresa comercial.
Adiantamos desde já que não lhe assiste razão.
Partindo do pressuposto de que o contrato celebrado entre os Autores e a Ré é um contrato de locação de empresa comercial, a transferência da titularidade da licença de exploração não constitui elemento indispensável para a prossecução do fim do contrato.
Nos termos do artº 1030º do CCM, a locação de empresa comercial é o contrato pelo qual alguém transfere temporária e onerosamente para outrem, juntamente com o gozo do prédio, a exploração da empresa comercial nele instalada.
Repare-se, o que está em causa é a locação da empresa comercial que se difere da alienação, na medida em que a última pressupõe sempre a transferência da titularidade da empresa, o que já não acontece com a primeira.
Na locação da empresa comercial, o que faculta é o direito da exploração da empresa, que não implica necessariamente a transferência da titularidade da licença.
No mesmo sentido e a título do direito comparado, veja-se o AC. RL, de 14/12/2010, Proc. nº 619/08.1TVLSB-8, in www.dsgi.pt, nos termos do qual afirmou aquele Venerando Tribunal que “Na cessão de exploração do estabelecimento comercial, o titular do estabelecimento obriga-se a proporcionar temporariamente ao cessionário a fruição do estabelecimento, com a consequente funcionalidade e inerente explorabilidade deste, mantendo o cedente a titularidade do estabelecimento” (o sublinhado e mais carregado são nossos).
Como se vê, a não transferência da titularidade da licença da exploração nada obsta à exploração do estabelecimento de comida por parte da Ré, pelo que não constitui excepção de não cumprimento nos termos do artº 422º do CCM.
Pois, a Ré bem pode explorar o estabelecimento de comida em causa ainda que o mesmo esteja sob titularidade da Autora D, uma vez que o explorador do estabelecimento não tem de ser o titular do mesmo.
Nesta conformidade e sem mais delongas, se conclui pela improcedência do recurso.
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IV – Decisão
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em negar provimento ao recurso interposto, confirmando a sentença recorrida.
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Custas do recurso pela Recorrente.
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Notifique e registe.
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RAEM, aos 23 de Fevereiro de 2012.

(Relator)
Ho Wai Neng

(Primeiro Juiz-Adjunto)
José Cândido de Pinho

(Segundo Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong



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