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Proc. nº 227/2010
(Recurso jurisdicional de decisão em matéria administrativa)
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Janeiro de 2012
Descritores:
-Recurso jurisdicional
-Art. 150º do CPAC
-Pedido de valor susceptível de determinação
-Regulamentos administrativos
-Reserva de lei

SUMÁRIO

I- De acordo com o art. 18º da LBOJ, se o valor da causa ou do pedido não for determinável (e isto tanto “em matéria de acções”, como de “pedidos do contencioso administrativo”: art. 18º, nº2, LBOJ), o tribunal que julga em 1ª instância essas causas concretas não terá alçada e, por isso, da decisão que tomar haverá recurso jurisdicional ordinário.

II- Mas, em conjugação com o art. 150º. nº 1, al. a), do CPAC, haverá ainda recurso jurisdicional se o pedido no recurso contencioso for único (mesmo que de valor determinável e qualquer que ele seja) ou se o valor do pedido cumulado for superior ao da alçada do tribunal de que se recorre.

III- O Governo da RAEM, através do Chefe do Executivo, tinha competência para “por si próprio”, intervir na elaboração de regulamentos administrativos no âmbito da matéria contida no art. 129º, 1º parágrafo, da Lei Básica, nomeadamente para alterar o quantum da multa referente à infracção administrativa prevista nos arts. 68º, nºs 1 e 2, al. a) e 87º do DL nº 48/98/M, de 3/11, a respeito da actividade dos guias turísticos.

IV- Neste sentido, o Regulamento nº 42/2004, de 30/12, que estabelece alteração àquele decreto-lei, não padece de ofensa ao princípio da legalidade por atentado à reserva de lei.



Proc. nº 227/2010
(Rec. Jurisdicional de decisão jurisdicional em matéria administrativa)


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A “A”, com sede na Av. XX, s/n, Edifício XX, Nova Ala, 2º andar, recorreu no T.A. do despacho do Exmo. Director dos Serviços de Turismo de 21/08/2008 que lhe determinou a aplicação de uma multa no valor de Mop $ 40.000,00, nos termos do art. 83º do DL nº 48/98/M, de 3/11, na redacção dada pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004, por infracção ao nº2, do art. 64º do mesmo diploma (“exercício ilegal de profissão de guia turístico”).
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Nesse tribunal foi proferida sentença, datada de 12/11/2009, que julgou: a) ilegal o art. 83º, do DL nº48/98/M, com as alterações introduzidas pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004 (rejeitando a sua aplicação no processo); b) procedente o recurso (com a declaração de nulidade do acto impugnado); e c) condenou a recorrente em multa no valor de Mop$ 6.000,00, nos termos do art. 118º, nº2, do CPAC.
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É dessa decisão que ora vem interposto o presente recurso pela entidade administrativa, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
I. O tribunal a quo entende que o Regulamento Administrativo n.º 42/2004, de 30 de Dezembro é, na sua totalidade, ilegal;
II. Por entender que o Chefe do Executivo da RAEM não detém poder legislativo e que a criação de infracções administrativas novas ou o agravamento de infracções existentes, constituem matéria sujeita a reserva de lei;
III. Diferentemente, entende a entidade Recorrida que o Chefe do Executivo (Governo da RAEM) detém, nalgumas matérias, poder legislativo originário e que, no âmbito das mesmas, pode criar uma regulamentação nova ou alterar um Decreto-Lei pré-existente;
IV. Pois a LB, ao permitir ao Chefe do Executivo emanar Regulamentos Administrativos, reconhece-lhe competência para regulamentar determinadas matérias, de forma independente, desde que as mesmas não estejam reservadas à Assembleia Legislativa;
V. Esse poder do Chefe do Executivo caracteriza-se por ser um poder normativo independente, originário e directamente emergente da LB;
VI. A matéria regulada pelo Regulamento Administrativo n.º 42/2004 não constitui matéria reservada à Assembleia Legislativa nem cabe, sequer, no âmbito das matérias de competência concorrencial entre os dois órgãos do poder;
VII. Mas constitui uma matéria que cabe na exclusiva competência do Governo porque decorre do artigo 129.º da LBM, onde se estabelece, no parágrafo 1.º que “O Governo da Região Administrativa Especial de Macau determina, por si próprio, o sistema relativo às profissões (…);
VIII. Pelo que o Governo podia regular sobre a mesma, quer criando um regime novo, quer alterando um regime pré-existente aprovado por Decreto-Lei;
IX. O sistema tal como delineado pela LB também não se compadeceria de uma limitação ao poder regulamentar do Executivo, sob pena deste se ver incapaz de dar cumprimento dos seus objectivos e salvaguardar de forma rápida e eficiente os interesses públicos que tem por missão prosseguir;
X. O Tribunal de Última Instância (TUI) também já entendeu, em acórdão proferido em processo diferente, que um Regulamento Administrativo pode criar um regime legal sancionatório materialmente novo;
XI. Por entender que o Chefe do Executivo e o Governo podem aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica (princípio da reserva de lei) e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei;
XII. A entidade Recorrida não concorda, igualmente, com o entendimento do tribunal a quo segundo o qual no n.º 1 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 52/99/M, de 4 de Outubro, a expressão “regulamentos” não abarca os actuais (pós 20 de Dezembro de 1999) Regulamentos Administrativos;
XIII. Uma vez que também tal norma legitima a intervenção legislativa do Governo em matérias do foro sancionatório;
XIV. Mas, mesmo que assim não se entenda, não existe qualquer norma na Lei Básica que impeça os regulamentos administrativos de criar deveres ou restrições sobre os particulares;
XV. Pois de harmonia com o estabelecido no artigo 40.º da LB, os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados nesse artigo 40.º, matéria essa que deve constar de lei;
XVI. O RA n.º 42/2004 que veio alterar as normas reguladoras da actividade de agência de viagens e da profissão de guia turístico é, por tudo isto, legal e plenamente válido no ordenamento jurídico de Macau;
XVII. Pelo que, devem os factos praticados pela Recorrente que o tribunal a quo deu como provados ser punidos com a aplicação das normas introduzidas pelo Regulamento Administrativo n.º 42/2004.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Ex.as. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente, mantendo-se o acto praticado pela Exm.a Senhora Directora da DST, substituta e revogando-se, em conformidade, a douta sentença recorrida, fazendo V. Exas., mais uma vez, JUSTIÇA!
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Não houve contra-alegações.
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O digno Magistrado do M.P. opinou no sentido da rejeição do recurso por entender que, visando o pedido a anulação de uma multa de Mop$ 40.000,00, o valor estaria dentro da alçada do TA, pelo que não seria o acto que a aplicou sujeita a recurso contencioso, tudo nos termos do art. 83º do DL nº 48/98/M, de 3/11, 88º, do CPAC e 18º, nº2, da LBOJ.
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Esta questão foi relegada para final, após a resposta apresentada pela entidade administrativa (cfr. fls. 204-209 e 210).
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Cumpre decidir.

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II- Os Factos

A Sentença recorrida deu por provada a seguinte factualidade:

“Em 27 de Abril de 2007, os agentes da Direcção dos Serviços de Turismo receberam queixas de guia sem licença.
 Ao mesmo dia, o inspector da Direcção dos Serviços de Turismo apresentou o auto de notícia n.º 76/DI/2007 (vide as fls. 85 a 90 dos anexos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido), por ter notado que B, não exibindo o cartão de guia turístico, acompanhou os 14 turistas coreanos acolhidos pela A para visitar as atracções turísticas, esclarecendo-os e esperando por estes fora das lojas e atracções turísticas.
 Em 8 de Junho de 2007, a Direcção dos Serviços de Turismo, através do ofício n.º 3530/DI/2007, notificou a A para, apresentar audiência escrita sobre os assuntos no auto de notícia supracitado no prazo de 10 dias a contar do recebimento do ofício (vide as fls. 74 dos anexos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
 Em 20 de Junho de 2007, a A apresentou à Direcção dos Serviços de Turismo a audiência escrita (vide as fls. 71 a 72 dos anexos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
 Em 3 de Março de 2008, os agentes da Direcção dos Serviços de Turismo apresentou a informação n.º 28/DI/2008, promovendo que aplicasse à A multa de MOP$40.000,00 (vide as fls. 51 a 55 dos anexos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
 Em 18 do mesmo mês, o Subdirector da Direcção dos Serviços de Turismo concordou com a respectiva proposta, notificando, através da notificação n.º 27/2008, a A da decisão em causa.
 Em 21 de Abril de 2008, a A prestou à Direcção dos Serviços de Turismo a lista dos membros do respectivo grupo de turistas e a acta de mensagem electrónica sobre os referidos assuntos entre a agência de turismo e um dos turistas.
 Em 15 de Agosto de 2008, os agentes da Direcção dos Serviços de Turismo apresentou a informação n.º 413/DI/2008, promovendo que mantivesse a decisão de aplicar à A multa de MOP$40.000,00 (vide as fls. 24 a 28 dos anexos, cujo teor aqui se dá por inteiramente reproduzido).
 Em 21 do mesmo mês, o Director Substituto da Direcção dos Serviços de Turismo concordou com a respectiva proposta, notificando, através da
notificação n.º 145/2008, a A da decisão em causa.
 Em 26 de Setembro de 2008, a A interpôs o presente recurso contencioso para este Tribunal.
***
III- O Direito
1- Da recorribilidade jurisdicional
O Digno Magistrado do MP, no seu parecer de fls. 200-201 suscitou a questão da irrecorribilidade jurisdicional da sentença aqui impugnada, com base no art. 583º do CPC e 18º, nº2, da LBOJ. Em sua opinião, tendo a multa aplicada sido de Mop$ 40.000,00, o valor assim determinado estaria dentro da alçada prevista no último dos preceitos indicados e, por consequência, fora da possibilidade de recurso jurisdicional.
A entidade administrativa tomou posição sobre o assunto a fls. 204, sustentando tese diversa.
Vejamos.
O tema equacionado é, porventura dos mais difíceis, face ao aparente desencontro de regras estabelecidas em diplomas que parece quererem versar sobre o mesmo assunto. Falamos das alçadas e dos recursos ordinários.
Como bem se sabe, este tipo de recurso ordinário (art. 150º do CPAC) é admitido e processado como o correspondente recurso para o TSI em processo civil: art. 149º, nº1, CPAC. Devem aplicar-se, por isso, com as devidas adaptações, os arts. 583º e 601º e sgs. do CPC.

Ora, o recurso ordinário, em regra, é admissível somente nas causas de valor superior à alçada do tribunal de que se recorre. No CPC impõe-se que a decisão impugnada tenha que ser desfavorável ao recorrente em montante superior a metade daquela alçada. É a regra do art. 583º, nº1, do CPC. No entanto, na jurisdição administrativa, as coisas não se passam bem assim.

Assim é que, de acordo com as regras processuais aplicáveis, haverá sempre recurso:

a) Se tiver por fundamento a violação das regras de competência (sem prejuízo do art. 34º do CPC), ou a ofensa do caso julgado: art. 583º, nº2, al.a), CPC , “ex vi” art. 150º, nº2, CPAC;
b) Se a decisão recorrida respeitar ao valor da causa, de incidente ou de procedimento cautelar, com o fundamento de que o seu valor excede a alçada do tribunal de que se recorre: art. 583º, nº2, al. b), CPC, “”ex vi” art. 150º, nº2, CPAC;
c) Se a decisão tiver sido proferida contra jurisprudência obrigatória: art. 583º, nº2, al. c), CPC , “ex vi” art. 150º, nº2, CPAC. Neste caso, o recurso, embora possa ser interposto por quem demonstre legitimidade para o fazer, é obrigatório para o M.P : art. 583º, nº3, CPC, “”ex vi” art. 150º, nº2, CPAC.

Fora disso, forçoso é que nos perguntemos: será de atender unicamente à Lei de Bases? Ou só ao CPAC? Ou a ambos, eventualmente?

Vamos por partes.

1ª Hipótese: Aplicação apenas da LBOJ (Lei nº 9/1999, de 20/12)

Neste caso, teríamos:

- Em matéria de acções e de pedidos de contencioso administrativo, a alçada dos tribunais de 1ª instância e do TSI é fixada em Mop $ 50.000,00 e 1.000.000,00, respectivamente, quando o valor da causa ou do pedido seja susceptível de determinação (art. 18º, nº2, da LBOJ);
- Em matéria de contencioso fiscal e aduaneiro, a alçada daqueles tribunais é de Mop $ 15.000,00 e 1.000.000,00, respectivamente, igualmente quando o valor da causa seja susceptível de determinação.
- Nos restantes meios do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro, não há alçada.

Pareceria, assim, que qualquer pedido de valor quantificável ou determinável formulado numa acção ou num recurso contencioso em matéria administrativa, desde que se contivesse dentro das alçadas indicadas, não permitiria o recurso jurisdicional da respectiva sentença.

A favor desta hipotética solução poderíamos apontar dois argumentos.

O primeiro reside na circunstância de se tratar de uma lei posterior ao CPAC em sete dias, o que, de algum modo, pode revelar o espírito do legislador em querer afastar a aplicação da lei processual sobre o assunto concreto.

O segundo está no facto de a LBOJ ser uma lei que nos ordenamentos jurídicos costuma ser apontada como uma lei de valor reforçado, e que no de Macau só o não é em virtude de tal qualificação não estar prevista na Lei Básica da RAEM.

Esta tese, porém, não passa sem duas críticas.

A primeira consiste na desarrumação que ela representa. Com efeito, sendo a alçada uma regra estritamente adjectiva, o seu lugar privilegiado não é uma Lei de Bases, mas sim uma lei processual. Assim, a dispositividade daquela regra tem que ser vista com algum cuidado, talvez até mereça algum sacrifício no ponto em que se mostrar desadequada.

A segunda parte da injustiça que pode advir da cega obediência ao preceito do art. 18º da LBOJ, no sentido de que só haverá recurso jurisdicional se os pedidos forem “susceptíveis de determinação” e se estiverem fora do limite das alçadas ali previstas.

Veja-se este exemplo: Se A pretende anular um acto administrativo que, em processo disciplinar, o puniu com uma advertência ou com uma repreensão escrita, haveria recurso jurisdicional da decisão do TSI1 porque nem a pena, nem o pedido, teriam valor determinável. Mas se uma pena mais grave, como é o caso da pena de multa, fosse aplicada, já se teria que equacionar a possibilidade de recurso jurisdicional da sentença proferida sobre o acto administrativo, porque nesse caso já uma e outro teriam valor quantificável. Mas, ainda aqui, outra surpresa: apesar de determinável, a alçada só permitiria o recurso jurisdicional se a sentença tivesse recaído sobre o acto punitivo disciplinar 2em pena superior a 1.000.000,00 patacas, pois que a alçada do TSI se cifra nesse montante. Se inferior o valor da pena de multa, já o recurso jurisdicional estaria fora de hipótese outra vez. Compare-se agora com o recurso contencioso de uma decisão que aplica simplesmente a pena de advertência e facilmente, e sem esforço, se encontra falta de nexo e lógica nesta solução distorcida.

2ª Hipótese: Aplicação apenas do CPAC (DL nº 110/99/M, de 13/12)

Se for de entender que deveria ser aplicável apenas este diploma ao caso, teríamos que concluir:

- Há recurso jurisdicional das decisões proferidas em acções e sobre pedidos cumulados cujo valor da causa exceda a alçada dos tribunais: art. 150º, nº1, al. a), CPAC (a alçada do TA é de 50 000 patacas; a do TSI é de 1 000 000 patacas, como se viu: 18º, nº2, LBOJ).

A favor desta solução, aventaríamos o argumento de que a regra adjectiva sobre o recurso ordinário plasmada no art. 150º está acolhida no lugar próprio, que é lei processual e especial em relação à da LBOJ.

No que respeita às acções administrativas, se elas apresentarem pedidos de valor determinável, não cremos que haja grande dificuldade de interpretação: atender-se-á ao valor concreto em causa e haverá recurso para o tribunal hierarquicamente superior se o valor estiver para além da alçada do tribunal onde foi proferida a sentença.

E nos recursos contenciosos, só haverá recurso jurisdicional da sentença/acórdão se neles estiverem formulados vários “pedidos cumulados”?

E no que se refere aos pedidos cumulados? Será que deverá atender-se à expressão da lei e dar-lhe algum significado específico?

Em nossa opinião, o legislador do CPAC no art. 150º, ao buscar no seu pensamento uma tal ideia e manifestá-la com a expressão “pedidos cumulados”, não terá sido ingénuo. Disse o que queria dizer e fê-lo em consciência e em termos que considerou adequados (cfr. art. 8º, nº3, do CC). É preciso ver que estamos no âmbito de uma lei de processo, em que a cumulação de pedidos tem assento noutra norma, concretamente a do art. 24º do mesmo diploma. Por isso, ao falar em pedidos cumulados era a estes que se queria, com toda a certeza, referir. Assim, a referência aos pedidos cumulados serve para cobrir os recursos contenciosos em que, juntamente, com o pedido principal (anulatório, de declaração de nulidade ou inexistência jurídica) o recorrente formula pedidos3 de outra índole (ver também art. 86º, 3, Regime das Custas). Nestes casos é aconselhável, ainda que não obrigatória, a indicação do valor para efeito de apuramento da possibilidade de recurso jurisdicional4.

E só haverá recurso jurisdicional se tais pedidos forem “susceptíveis de determinação” nos termos do art. 18º da LBOJ e estiverem fora do limite das alçadas previstas nesse mesmo art. 18º?

A resposta, pelo que se foi adiantando até este momento, implica que se preste atenção novamente ao art. 150º do CPAC, que apenas permite o recurso nas acções e nos pedidos cumulados cujo valor exceda a alçada do tribunal, e interpretá-lo correctamente.

Assim, quando este preceito alude aos pedidos cumulados estará a pensar nas situações em que um desses pedidos tem um efectivo valor, como é o caso da indemnização pedida ao abrigo da alínea b), do art. 24º do CPAC, isto é, quando a pretensão visa lograr obter uma quantia em dinheiro ou conceder uma alteração positiva da esfera patrimonial do recorrente (v.g., a entrega de um bem de valor quantificável). A tónica, pois, parte da impetrância do recorrente e da sua pretensão valorada efectivamente. Fora desses casos, a acumulação de pedidos não tem que se repercutir necessariamente na alçada e, portanto, na possibilidade de recurso jurisdicional. Quer dizer, se o recurso contencioso apresenta um só pedido ou se tem mais do que um em acumulação, não haverá alçada se as pretensões não tiverem um valor determinável naquela acepção. Se assim não se entendesse, poderíamos estar, tantas vezes, perante verdadeiros absurdos jurídicos. Se voltarmos ao exemplo acima dado, num recurso contencioso em que se cumulasse o pedido anulatório com o da prática do acto devido, haveria recurso jurisdicional do acórdão do TSI em 1ª instância se o acto sancionatório acometido fosse de mera advertência ou repreensão escrita, mas já não seria permitido o recurso jurisdicional se o acto objecto da censura fosse de aplicação de multa em valor inferior a Mop$ 1.000.000,00. Ora, o legislador não pode ter querido introduzir uma tal discriminação insensata e ilógica.

Por conseguinte, estamos em crer que, sozinha, esta regra do art. 150º do CPAC não cobre todas as situações, já que continua a falar de alçada.

Pensamos, pois, que a solução não está unicamente em cada um dos diplomas em presença, antes é forçoso que ambos se conciliem.

Dito de outra maneira, não se pode olhar apenas para o art. 18º citado, como se apenas nele esteja a fonte da verdade total em matéria de recurso jurisdicional, e antes é preciso conjugá-lo com o art. 150º do CPAC de modo a se obter a solução normativa mais harmoniosa possível entre alçadas e recursos jurisdicionais.

Assim, e em nossa opinião:

a) Quando o art. 150º do CPAC alude aos “pedidos cumulados”, está a referir-se à “cumulação” plasmada na acepção do art. 24º do CPAC;
b) E quando o mesmo art. 150º do CPAC se refere aos pedidos cumulados “cujo valor exceda a alçada dos tribunais” como condição para o recurso jurisdicional, está a fazê-lo relativamente aos “pedidos de valor susceptível de determinação” a que se refere o art. 18º da LBOJ, e só a esses.
c) Se houver um só pedido ou se houver pedidos cumulados fora daqueles casos de possível determinação de valor, deixa de fazer sentido falar em alçada. Logo, o recurso jurisdicional da sentença proferida em 1ª instância que tiver apreciado a legalidade do acto (estamos a pensar nos recursos contenciosos) será possível em qualquer circunstância. Esta ideia, que alguns podem achar generosa, tem a vantagem de não distinguir a importância dos actos administrativos impugnados. Para o recorrente o acto que o afectou é ilegal e isso basta-lhe para poder ver sindicado no tribunal, tanto na 1ª, como na 2ª instância se tal for preciso, independentemente do valor material que ele possa ter para a sua esfera e, portanto, para lá do “valor determinável” que ele possa apresentar. Na verdade, a ilegalidade não se mede, nem se quantifica, pode até certo ponto dizer-se. A legalidade é um valor estruturante do próprio Estado de Direito, é um fim absoluto e imensurável, que se não compadece com determinações de valor, nem se relativiza com repercussões económicas das pretensões. Por isso, se o pedido é único e tem feição anulatória ou declarativa de nulidade ou inexistência jurídica, a sindicância à sentença proferida pelo tribunal em 1º grau de jurisdição é sempre possível para o tribunal imediatamente superior.

Em jeito de conclusão, conciliando o art. 18º da LBOJ com o art. 150º, nº1, al. a), do CPAC, podemos sintetizar o seguinte:

1- Haverá recurso jurisdicional se o valor das acções ultrapassar a alçada do tribunal onde tiver sido proferida a sentença (se não ultrapassar, o recurso jurisdicional é impossível).

2- Haverá recurso jurisdicional se o pedido nos recursos contenciosos administrativos5 for único (mesmo que apresente valor susceptível de determinação).

Nesse caso, a situação não está coberta pela previsão do art. 150º, nº1, al. a), porque o pedido não é cumulado. Quer isto dizer que, nestes casos, a previsão do art. 18º, nº2 e 3 da LBOJ tem que ceder a razão à disciplina adjectiva do CPAC, diploma especial em relação àquele outro, que é lei geral, e que por isso não o podia revogar, face ao art. 6º, nº3 do Código Civil. Assim é que, por exemplo, mesmo que o recurso seja dirigido contra acto que indefira um pedido de atribuição de subsídio ou recaia sobre despacho que determina a reposição de verbas indevidamente recebidas, qualquer que seja o montante tanto num caso, como noutro, ou até mesmo que puna em multa que caiba dentro da alçada do tribunal, da sentença que aprecie o recurso contencioso caberá sempre recurso jurisdicional.

3- Haverá recurso jurisdicional se, juntamente com o pedido principal no recurso contencioso, houver sido formulado pedido cumulado, desde que este (susceptível de determinação de valor), apresente um valor superior ao da alçada do tribunal de cuja decisão se pretende recorrer. Neste caso, o recurso poderá abranger toda a sentença: tanto na parte em que apreciou o pedido principal, como na que decidiu o cumulado, como em ambas.

Se esse pedido cumulado tiver um valor inferior ao do limite da alçada do tribunal onde for proferida a sentença, não haverá recurso jurisdicional desta na parte em que o decide, mas haverá recurso para o tribunal superior na parte respeitante à decisão sobre o pedido principal anulatório (ou tendente à nulidade ou inexistência do acto), uma vez que para este não se aplica a previsão da alínea a), do nº1, do art. 150º citado (cfr. art. 150º, nº3 e 4).

4- Haverá recurso jurisdicional das decisões tomadas nos “restantes meios contenciosos do contencioso administrativo, fiscal e aduaneiro e de fiscalização de legalidade de normas”, porque nestes casos não há alçada (art. 18º, nº4, da LBOJ).
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Aplicando estas conclusões ao caso vertente, uma vez que o pedido do recurso contencioso, embora tenha um valor determinável, não cabe nos parâmetros do art. 24º e 150º do CPAC, não sofre qualquer influência da alçada e, consequentemente, da decisão proferida não TA cabe sempre recurso jurisdicional.

Ainda que assim não fosse de pensar, sempre nos parece que outro factor encontraríamos para admitir o recurso. Com efeito, a questão da alçada, tal como ela vem posta na LBOJ (um tanto indevidamente ou imperfeitamente, se nos é permitido dizê-lo), deixa de ser importante em todos” os restantes meios do contencioso administrativo”: n. 4, do art. 18º. Parece, pois, legítimo concluir que o legislador, fora o caso das acções e recursos contenciosos, ou seja, no que respeita às restantes espécies processuais (ver art. 9º e 10º do CPAC), permite sempre recurso jurisdicional, independentemente do valor, porque não lhes atribuiu alçada. Parece ser esta uma maneira de contornar a dificuldade que o legislador criou ao falar em pedidos do contencioso administrativo (n.1 do art. 18º cit) - pretendendo, ao que se supõe, aludir aos pedidos formulados do recurso contencioso - e ao mencionar os restantes meios do contencioso administrativo (n.4, do art. 18º), pretendendo fazer a distinção (como se os “restantes meios” não tivessem pedidos!!)

Ora, porque o presente processo se insere na espécie “Meios processuais relativos a infracções administrativas” (art. 118º do CPAC), inexiste causa para a rejeição do recurso jurisdicional. Razão pela qual o apreciaremos já de seguida.

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2- Do mérito do recurso

2.1- Pelo acto sancionatório sindicado no TA foi mantida a multa aplicada no valor de 40.000,00 nos termos do art. 83º do DL nº 48/98/M, de 3/11, com a redacção do Regulamento Administrativo nº 42/2004, por alegada infracção ao disposto no art. 64º, nº2 do mesmo diploma legal (exercício ilegal da profissão de guia turístico).
Na petição de recurso fora imputado ao acto o vício de erro sobre os pressupostos de facto, o que a entidade recorrida na sua contestação prontamente negou. A sentença, porém, denotando um trabalho de estudo e empenhamento assinaláveis, seguiu um caminho diferente. Decidiu que o acto sancionatório era inválido: nulo porque assente em disposições (as referidas) que considerou ilegais (e cuja aplicação, por isso, rejeitou) em virtude de derivarem de regulamento administrativo ofensivo do princípio da legalidade em razão da violação do subprincípio da reserva de lei.
Eis-nos perante uma das mais sensíveis matérias a que o tribunal é chamado a pronunciar-se: o da competência do Governo e do Chefe do Executivo da RAEM em matéria de produção normativa. Sensível e difícil, na medida em que a Lei Básica não nos diz em norma própria quais as matérias podem ser sujeitas ao exercício do poder regulamentar ou quais as que só podem ser reguladas por lei6, da mesma maneira que não fornece um quadro único e bem definido de competências atribuíveis em exclusivo à Assembleia Legislativa7, mas simplesmente nos aponta em momentos diferentes do seu articulado alguns temas que devem ser submetidos à lei8. Então é caso para perguntar se podia o Ex.mo Chefe do Executivo produzir o Regulamento Administrativo nº 42/2004, de 30/12 a respeito do exercício da actividade das agências turísticas e dos guias turísticos?
Olhemos com atenção para o panorama legislativo.
O Chefe do Executivo é o órgão dirigente máximo da estrutura política e executiva da RAEM: art.45º da LB. Pode dizer-se também que é o dirigente máximo do Governo: art.2º, da Lei n. 2/1999, de 20/12/1999 (Lei de Bases da Orgânica do Governo)9.

Mas a função legislativa, essa, pertence à Assembleia Legislativa, através da elaboração de leis: arts. 67º e 71º, n.1), da LB, o que não acontecia antes da transferência da soberania para a República Popular da China, pois, então, o Governo detinha poderes legislativos, como se sabe.

E assim é que o Chefe do Executivo, que é o órgão executivo da RAEM (art. 1º, da Lei 2/1999, de 20/12), apenas assina projectos e propostas de lei aprovadas pela AL e manda publicar as leis: art. 50º, n.3), LB (ver também arts. 60º e 67º da LB), embora disponha do poder de emitir regulamentos (art. 50º, al. 5), da LB; ver também art. 15º da Lei de Bases da Orgânica do Governo: Lei nº 2/99 cit.)).

Também ao Governo foi reconhecido esse poder regulamentar (art. 64º, al. 6), da LB).

Estes dois casos de poder regulamentar inscrevem-se no âmbito da competência para a emissão de regulamentos complementares e independentes10.

Ora, os regulamentos, de um modo geral, têm que estar sujeitos ao princípio da legalidade, o qual se densifica através daquilo a que poderíamos designar subprincípios: o primado da lei, a precedência da lei e a reserva de lei.

O primeiro é destinado a prevenir a hipótese de em caso nenhum o regulamento poder ofender ou contrariar actos legislativos, sejam eles quais forem.

Quanto aos segundo, um dos exemplos que podemos apontar é o de as normas regulamentares excederem o conteúdo da lei prévia de que dependem e que visam regular e concretizar, violando assim o princípio da precedência da lei. Na verdade, o princípio da legalidade aqui também implica que a norma regulamentar não ultrapasse os limites substantivos da lei que visa regulamentar. Poderíamos citar, aqui, o exemplo que vem do art. 118º da LB (O Governo só pode intervir em matéria de protecção de ambiente “nos termos da lei”), ou o que deriva do art. 90º, parágrafo 4º (A organização, competência e funcionamento do Ministério Público são regulados por lei”). Quer dizer, aí já não é o Governo a definir o regime aplicável, e por isso qualquer intervenção regulamentar nesse sentido só pode assentar em lei prévia.

Outras vezes a ilegalidade deriva da circunstância de a norma regulamentar não poder ter sido emitida pelo seu autor, por tratar de assunto da exclusiva competência do órgão legislativo próprio, isto é, de matéria do foro reservado da Assembleia Legislativa. Diz-se, nesse caso, que a norma violou o princípio da reserva da lei.11

A dificuldade que surge em relação à precedência da lei ou à reserva da lei avoluma-se no tocante aos regulamentos independentes do Chefe do Executivo e do Governo, em especial devido à forma menos clara e específica pela qual a Lei Básica neles deposita os poderes respectivos, sem que a Lei de Bases da Orgânica do Governo forneçam melhores subsídios de interpretação para além dos que resultam expostos nos arts. 15º e 16º12.

Daí que, no que a estes regulamentos independentes diz respeito, ela só pode ser superada se detectarmos na Lei Básica, pelo menos em termos amplos e genéricos, o reconhecimento expresso desse poder ao Governo, qua tale13, como se pode entrever no art. 14º, parágrafo 2º, ao prescrever que “O Governo da Região Administrativa e Especial de Macau é responsável pela manutenção da ordem pública na Região”). E, por outro lado, se tais regulamentos não dependem de lei prévia habilitadora e se permitem estabelecer pela primeira vez a disciplina de certas relações, a verdade é que as matérias sobre que versam não podem estar reservadas ao órgão legislativo único, que é a Assembleia Legislativa. Essa é a tarefa que o intérprete tem que realizar a cada passo.

Mas se bem atentarmos, a Lei Básica, foi mais além de que caucionar uma mera atribuição genérica de poderes regulamentares. Acabou, através de uma fórmula subtil (e por isso até pode passar despercebida), embora suficientemente dirigida ao propósito que lhe subjaz, por conferir ao Governo ou ao Chefe do Executivo poderes de intervir na definição e na regulação de certo tipo de relações. Essa fórmula está traduzida na expressão “por si próprio” incluída em inúmeras disposições do seu articulado.

Assim é que reconhece ao Governo o poder de definir por si próprio os vários sistemas de gestão da aviação civil (art. 117º, da LB), a política respeitante à promoção dos serviços de medicina e saúde (art. 123º), a política cultural (art. 125º), a política referente à imprensa e à edição (art. 126º) ou a política para o desporto (art. 127º). Nestes e noutros casos ali previstos, o legislador da Lei Básica transmite, não só a ideia, como a sua expressão, de que ao Governo era reconhecido poder regulamentar originário, no sentido de que a normação que daí derivasse era independente e sem qualquer atinência a lei (ordinária) prévia (precedência de lei). Simultaneamente, deixava pensar que essa competência regulamentar não era reservada à Assembleia Legislativa, nem sequer concorrencial com a deste órgão legislativo.

Só que enquanto assim preceituava, o mesmo legislador, em diferentes normas, mais do que simples impressão, deixou que o intérprete apreendesse uma certeza: a de que quando quis que o Governo ou o Chefe do Executivo agissem sob a égide de um poder regulamentar não independente, afirmou-se de um modo mais do que claro. Exemplos disso avistamo-los no art. 119º: “O Governo da Região Administrativa e Especial de Macau protege o meio ambiente, nos termos da lei” (negro nosso) ou no art. 124º: “ O Governo …define, por si próprio, a política relativa às ciências e à tecnologia e protege, nos termos da lei, os resultados da investigação científica e tecnológica, patentes, descobertas e invenções”. O Governo pode elaborar regulamentos administrativos nessa matéria, mas terão que obedecer à lei pré-existente, terão que ser regulamentos complementares, é o que nos transmite o dispositivo.

Ora, no caso que nos ocupa, somos a considerar que a Lei Básica não atribui à Assembleia Legislativa competência exclusiva sobre esta matéria. E por outro lado, na linha do raciocínio que vimos empreendendo, entendemos que ela depositou no Ex.mo Chefe do Executivo competência regulamentar independente e no âmbito de um poder de normação primário. A origem da nossa afirmação encontra-se no art. 129º referente ao “sistema relativo às profissões” e, bem assim, à “avaliação e à atribuição de qualificação profissional” e à “qualificação” para o seu exercício”. Dito por outras palavras, a Lei Básica conferiu ao Governo a faculdade de, para esta matéria, intervir “por si próprio” naquilo a que poderíamos designar de reserva regulamentar.

Aqui chegados, parte da fundamentação da sentença, com o devido respeito, não colhe o nosso aplauso.
*

2.2- Importa, porém, discutir duas ou três coisas mais.

A primeira consiste em saber se da norma do art. 129º da Lei Básica, que ao Governo confere tais poderes regulamentares, se retira a possibilidade de eles poderem ser aplicados em concreto pelo Chefe do Executivo. A questão, que não entendemos de todo despicienda - uma vez que noutras ocasiões a mesma lei se refere directamente ao Chefe do Executivo - deve colocar-se em virtude se ser comummente aceite a noção de que a competência não se infere ou não se presume, antes deve estar outorgada de forma expressa ou claramente implícita na norma jurídica de forma a que ela se tenha por legalmente existente14. Consideramos, contudo, que a outorga ao Governo de tais poderes se mostra suficiente para que o seu dirigente máximo o possa exercitar. Na verdade, até da própria Lei nº 3/1999 resulta que os regulamentos administrativos, mesmo quando emanam de um poder depositado ao Governo, são “decretados” pelo Chefe do Executivo, por quem são, de resto, subscritos (ver art. 13º). Damos desta maneira por respondida a primeira questão.

A segunda, porventura, mais difícil, é a de saber se, naquela matéria concreta do art. 129º da Lei Básica e ao abrigo dos poderes que acabamos de reconhecer-lhe, poderia o Chefe do Executivo estabelecer sanções administrativas.

A douta sentença disse que não, por entender que o Regulamento Administrativo nº 42/2004, ou criou novas sanções, ou agravou as que estavam previstas no DL nº 48/98/M. Vejamos o que está em causa.

A norma em apreciação é basicamente a do art. 83º do referido D.L. nº 48/98/M, ao abrigo da qual a recorrente fora punida. Ela tinha a seguinte redacção inicial:

Artigo 83.º
(Guias não titulados)
1. A infracção ao disposto no n.º 1 do artigo 66.º é punida com multa de 5.000,00 a 10.000,00 patacas, aplicável ao infractor.
2. Caso o infractor se encontre ao serviço de agência, é esta punida com multa de igual montante. (...)

Se bem se reparar, o ilícito pelos quais a recorrente (agência turística) fora punida estava já previsto nos mesmos normativos na primitiva redacção. Portanto, neste sentido, o Regulamento Administrativo não chegou a introduzir qualquer inovação, porque os elementos do tipo são sensivelmente iguais (as diferenças são praticamente inexistentes ou imperceptíveis).

Diferença, sim, apenas houve no que concerne à moldura sancionatória. Efectivamente, enquanto a ela era punida com a multa de 5.000,00 a 10.000,00 patacas, com o Regulamento passou a ser de 40.000,00 a 60.000,00 patacas;

Configurará esta acção regulamentar, em virtude da alteração do quadro abstracto punitivo, alguma ofensa ao princípio da reserva de lei? Estaremos nós perante uma restrição de direitos e liberdades de que fala o art. 40º da Lei Básica?15

A questão não é de fácil resposta. Na verdade, admitimos a plausibilidade da defesa de um certo ponto de vista que encontra no agravamento de penas mais do que o exercício de uma mera actividade regulamentar enquadrada nos seus precisos limites. De modo que, na medida em que a actividade em causa iria para além do que o permitiria o referido art. 40º, então ele seria ilegal por tratar de matéria que só a lei poderia regular.

Todavia, para se chegar a tal conclusão seria preciso concluir que o Regulamento em causa estaria efectivamente a restringir direitos e liberdades. Na verdade, se de restrição de direitos e liberdades pudéssemos falar aqui, ela teria sido estabelecida no Decreto-lei e não no Regulamento, pois foi aí que se criou o ilícito-tipo, se declarou a natureza da ilicitude e se previu o seu sancionamento.

Todavia, de restrição de direitos e liberdades não cremos que possamos falar com pleno rigor nesta matéria, porque nunca antes havia sido estabelecida a favor dos guias turísticos ampla liberdade de acção que incluísse o direito de não falar verdade ou de induzir os clientes turistas a comprar nas lojas comerciais que eles muito bem escolhessem. Pelo contrário, a actividade, como outra qualquer, está regulada desde o início e nessa regulação sempre lhes foi proibido agir daquela maneira. Esta proibição faz parte do quadro normativo regulador da actividade e sobre isso não se pode ter dúvida. Neste sentido, não podemos falar em ablação em relação ao status quo ante.

O aumento de pena, por outro lado, não pode ser encarado numa pura perspectiva ablativa de direitos e liberdades (é preciso lembrar que não estamos a falar de perda de liberdade em sentido estrito, como é o caso da prisão16). Ele é, simplesmente, o modo de passar para a norma aquilo que a sociedade reclama no âmbito da dinâmica evolutiva das relações sociais e económicas. A sanção administrativa perdera actualidade e urgia agravá-la por influência do decurso do tempo e das novas realidades que impunham maior controlo para evitar destempero ou descalabro da actividade dos guias em prejuízo da imagem que daí adviria para a RAEM.

Mais difícil é encontrar nesta situação algo que se costuma traduzir em identidade do modelo normativo, convertível no possível brocardo só a lei pode alterar o que ela própria criou. E assim sendo, o que o Decreto-Lei 48/98/M criou17 só por diploma legislativo de idêntica força podia ser alterado.

Mas também aqui, a solução não pode ser a que um quadro de estabilidade de competências obrigaria a ter. Com efeito, só assim deveria ser se a alteração da situação histórica de Macau não tivesse sido acompanhada de uma modificação do quadro de competências dos diversos órgãos do poder. É que, enquanto anteriormente este poder legislativo também estava conferido ao Governador (e foi ao abrigo dele e do art. 13º, nº1 do Estatuto Orgânico de Macau que o DL 48/98/M foi decretado), com a Lei Básica o Chefe do Executivo passou a ter apenas competência regulamentar, como se viu já. Isto quer dizer que qualquer alteração ao referido diploma nunca podia ser feita formalmente pela mesma via do decreto-lei (impossibilidade jurídica), tendo até em conta que a alteração que a Assembleia Legislativa pode efectuar obedece à identidade da forma: esse órgão pode alterar por lei o que estiver estipulado na lei (é o que se depreende do art. 71º, al. 1), da LB).

Aqui chegados, eis-nos perante um panorama normativo criado com alguma coerência. Repare-se: o Decreto-lei em apreço versava sobre determinada matéria para a qual o Governador detinha competência legislativa. Não obstante a perda desses poderes pela entidade que politica e administrativamente lhe sucedeu, o Chefe do Executivo, a verdade é que a Lei Básica nele depositou poder semelhante de intervenção normativa sobre a mesma matéria (ver citado art. 129º). Portanto, como se vê, há uma certa linha de continuidade e de harmonia no plano da intervenção material, que só cede no da adequação formal. Substantivamente são os mesmos poderes, o que muda é o carácter formal do modelo de intervenção.

Logo, sob pena de quebra da mesma coerência que entrevimos na tábua de matérias sobre as quais o Chefe do Executivo pode intervir pela via regulamentar, faz sentido que se lhe reconheça o poder de alterar aquilo que o decreto-lei tinha estipulado. Seria, aliás, um paradoxo que, pudesse dispor de competência para elaborar um regulamento independente sobre o assunto e não a pudesse exercer para introduzir modificações num diploma pré-existente.

Em suma, mesmo concedendo que as questões equacionadas podem ser vistas por diferente ângulo (a sentença seguiu outro, como se viu), somos a entender que não estamos perante uma situação que atente contra o direito fundamental previsto no art. 40º, nº2, da Lei Básica, nem, em consequência, perante caso de ofensa a reserva de lei18. O que vale por dizer que, salvo melhor opinião, o Regulamento em causa não é ilegal por esse motivo.

*
2.3- Mas, para terminar este ponto, talvez valha a pena meditar um pouco sobre a Lei que instituiu o Regime jurídico de enquadramento das fontes normativas internas (Lei nº 13/2009, de 27/07). Trata-se de apurar se este diploma apresenta modificações de vulto que urja destacar em favor de alguma das posições em debate.
Sem dúvida que ela trouxe a luz que faltava para a clarificação de dúvidas sobre a repartição das competências legislativa e regulamentar da Assembleia Legislativa e do Chefe do Executivo, respectivamente, e, nesse sentido, portanto, para a compreensão mais firme e precisa sobre o fenómeno material da reserva legal. É a opinião que desde já manifestamos. Com efeito, esta lei veio agora definir qual o limite da lei e do regulamento (art. 3º), qual a competência da A.L. e o âmbito substantivo das suas leis (arts. 5º e 6º), bem como quais as matérias que podem ser objecto de regulamento complementar e independente (art. 7º). Tudo ficou agora bem com este diploma, mais explícito, com toda a certeza.

Mas, como é evidente, ao fazê-lo, a lei admite que possa ser lida com dois sentidos:
- Um, para se extrair a ideia de que até à sua publicação existia um vazio legal e que, por conseguinte, nada permitia inferir que o Governo tivesse poderes regulamentares em determinadas áreas, como por exemplo, na área das infracções administrativas.
- Outro, para se concluir precisamente o contrário, isto é, no sentido de confirmar o que já antes existia, embora sob a suspeita de pouca clareza.

Como adiantámos acima, inclinamo-nos para a segunda das possíveis leituras. Em primeiro lugar, porque de acordo com esta Lei a competência regulamentar serve propósitos de desenvolvimento, implementação e execução de políticas governativas (art. 7º, nº1, al.1)). Ora, estas matérias já antes estavam cometidas de forma esparsa na Lei Básica, no sentido de que, nas diversas políticas a seu cargo, o Governo podia actuar “por si próprio” (v.g. art. 121º, 125º, 130º, da Lei Básica). Em segundo lugar, a circunstância de a referida lei estabelecer que compete à lei a normação sobre o regime geral das infracções administrativas (art. 6º, nº6)) em nada vem contrariar o entendimento que acima expusemos. Na verdade, o que a lei define é o âmbito da lei em matéria de fixação do regime geral das infracções administrativas, ou seja, o conjunto de regras e princípios a que, por sua vez, devem obedecer os regimes material e procedimental, tal como já havia sido feito no Regime Geral das Infracções Administrativas e respectivo procedimento, introduzido pelo DL nº 52/99/M. Ora, se faz sentido que este regime-base seja determinado por instrumento normativo sob a forma de lei, a maneira como o legislador se exprimiu deixa inferir com toda a legitimidade que a concretização das mais diversas infracções administrativas possa já obedecer à via regulamentar. E se isto se pode pensar, o art. 7º, nº1, al.6) veio reforçar o pensamento: afinal, o Regulamento passa a ser a via normativa adequada para tratar das matérias concernentes às infracções administrativas e respectivas multas que não excedam 500 000,00 patacas.

Para dizer, em suma, que esta lei não vem inovar, mas sim, confirmar e clarificar aquilo que se supunha ou entrevia numa interpretação generosa da Lei Básica. Nesta perspectiva, a Lei 13/2009 até vem contribuir para o reforço da opinião que manifestámos acima.

De qualquer maneira, independentemente de todas as discussões que possam travar-se acerca do alcance inovatório ou clarificador desta lei, o que mais importa é a força das suas disposições, a imperatividade das suas estatuições. E é por isso que, para lá de tudo o que se possa dizer, o preceito do art. 10º revela-nos que “ Os regulamentos administrativos publicados antes da entrada em vigor da presente lei, ainda que não observem o regime nesta estabelecido, continuam a produzir efeitos jurídicos até à sua alteração, suspensão ou revogação através de diplomas legais”.

Ou seja, mesmo que o Regulamento Administrativo nº 42/2004 atentasse contra preceitos desta lei, nem por isso ele deixaria de ser aplicável ao caso em apreço19.
*
3- A sentença, por considerar a inexistência de erro nos pressupostos de facto invocado pela recorrente contenciosa, lançou mão do art. 118º, nº2 do CPAC para confinar a pena aos limites abstractos previstos no art. 83º do DL nº 48/98/M na sua redacção inicial, por entender que o agravamento introduzido pelo Regulamento Administrativo era ilegal. E assim, puniu a recorrente contenciosa na pena de Mop$ 6.000,00 de multa.

Pois bem. No presente recurso jurisdicional não vem impugnada a matéria de facto. Razão pela qual, a factualidade se deve dar por adquirida em termos de não poder ser reapreciada (art. 629º, nº1, al. a) e nº2, CPC). E a alteração da factualidade também não pode ter lugar, a menos que dos autos e do processo administrativo instrutor se colham elementos de prova que apontem para decisão diferente da tomada, nos termos do art. 629º, nº1, al. b), do CPC.

Assim sendo, procedem as conclusões das alegações do recurso, o que implica a revogação da sentença recorrida e a repristinação da decisão punitiva da Administração.

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IV- Decidindo

Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando, em consequência, a sentença do TA e, por via disso, mantendo a decisão administrativa de punir a recorrente contenciosa na pena de Mop$ 40.000,00.

Custas pela recorrida apenas na 1ª instância (não alegou na 2ª instância).


TSI, 19 / 01 / 2012

Presente José Cândido de Pinho
Vitor Coelho Choi Mou Pan
Lai Kin Hong (parcialmente vencido nos termos da declaração de voto que se segue.)




















Processo nº 227/2010
Declaração de voto de vencido


À excepção da parte referente à recorribilidade da sentença de 1ª instância, fiquei vencido por razões doutamente expostas na Douta sentença recorrida que louvo e subscrevo integralmente.

Ademais, dado o carácter sancionatório das normas em causa (os artºs 68º, 85º e 87º do D. L. nº 48/98/M, com a nova redacção dada pelo Regulamento Administrativo nº 42/2004), a ilegalidade dessas normas não pode ser retroactivamente sanada pelo artº 10º da Lei nº 13/2009.


RAEM, 19JAN2012

Lai Kin Hong


1 Cfr. art. 341º do ETAPM, que prevê que das decisões que apliquem penas diciplinares cabe recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo.
2 Achamos que esta asserção só vale para os recursos contenciosos que sindicam actos sancionatórios, como os que aplicam multa em procedimento disciplinar, por exemplo. Mas, já deixa de fazer sentido noutras espécies processuais em que sejam discutidos actos igualmente punitivos, mesmo de valor quantificado, como é o caso da aplicação de multa sindicado nos meios processuais relativos a infracções administrativas (art. 118º e sgs. do CPAC), pois segundo nos parece, esses farão parte dos “restantes meios do contencioso administrativo” (art. 18º, nº4, do CPAC) que não terão alçada e em que, portanto, sempre haverá recurso jurisdicional da sentença proferida na 1ª instância.

3 Não confundir com a cumulação de impugnações de que trata o art. 44º do CPAC.
4 Sobre o assunto, vide “Capítulo II, 2- pressupostos processuais-alçada” e “CapítuloII-3.1.n”
5 Não há razão para se pensar diferentemente no que concerne aos recursos contenciosos em matéria fiscal ou aduaneira.
6 Embora, aqui e ali, diga quais as matérias que só por essa via devem ser definidas. É o que sucede com os sistemas monetário e financeiro da RAEM que, segundo o art. 107º, só pode ser definido por lei.
7 E tal podia ser feito, de um modo denso, no art. 71º do diploma.
8 Por exemplo, quando preceitua que os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei (art. 40º, 2º parágrafo).
9 São ainda membros do Governo: os Secretários, o Comissário contra a Corrupção, o Comissário da Auditoria, o Principal responsável pelos Serviços de Polícia e o Principal responsável pelos Serviços de Alfândega: art. 4º da Lei n. 2/1999.
10 Embora estas matérias da normação escapem por regra à função jurisdicional, a verdade é que, em certos casos, as normas regulamentares podem ser objecto de fiscalização em processos de impugnação próprios, com a finalidade de as tornar ilegais com força obrigatória geral (art.88º do CPAC).

11 Sobre o assunto: José Eduardo Figueiredo Dias, Manual de Formação de Direito Administrativo de Macau, 2009, pag. 165 e sgs. Também o Código de Procedimento Administrativo de Macau, anotado e comentado, de L. Ribeiro e outro, pag. 57 e sgs. Ver ainda, Ac. do TUI de 18/07/2007, Proc. nº 28/2006 e do TSI de 13/12/2008, Proc. nº 223/2005.
12 Art. 15º: “O Chefe do Executivo exerce as competências previstas na Lei Básica da Região Administrativa Especial de Macau e noutras leis ou regulamentos administrativos”; Art. 16º: “O Governo exerce as competências previstas na Lei Básica da Região Administrativa e Especial de Macau e noutras leis ou regulamentos administrativos”.
13 Embora haja quem se manifeste contra esta forma de atribuição de poderes: “não pode uma atribuição genérica envolver só por si o exercício de determinada competência ou a utilização de determinados instrumentos ou formas constitucionais” (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição anotada, 3.ª edição, p. 514). Outros sustentam o contrário: Vieira de Andrade, ordenamento jurídico administrativo português, in Contencioso Administrativo, Braga, 1986, p. 65 e seg, Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra, Coimbra Editora, Tomo II, 2006, p. 724 e segs., Paulo Otero, in O Poder de Substituição em Direito Administrativo, Lisboa, Ed. Lex, p. 571 e segs. e Legalidade e Administração Pública, Coimbra, Almedina, 2003, p. 455 e segs. e 733 e segs.
14 Neste sentido, Agustin Gordilho, na obra Tratado de Derecho Administrativo, Parte General, Tomo I, “Los órganos del Estado”, Capítulo XII-6; Jorge Miranda, Orgãos do Estado, pag. 254 do Dicionário Jurídico da Administração Pública.
15 Art. 40º, 2º parágrafo: “ Os direitos e as liberdades de que gozam os residentes de Macau não podem ser restringidos excepto nos casos previstos na lei.(…)”
16 Importa ter presente que as sanções para as infracções administrava em caso nenhum podem ser restritivas da liberdade pessoal, sendo certo por outro lado que ao infractor são assegurados direitos de audiência e de defesa, nos termos do art. 6º, nº1, do DL nº 52/99/M: Regime Geral das Infracções administrativas e respectivo procedimento).
17 Foi ao abrigo do seu poder legislativo que o Governador de Macau dessa época assim legislou.
18 O acórdão do TUI nº 28/2006, de 18/07/2007, chegou à mesma conclusão nos seguintes termos: “…não resulta de nenhum preceito da Lei Básica que os regulamentos administrativos não possam estabelecer deveres ou restrições sobre os particulares. De acordo com o artigo 40.º, o que os regulamentos não podem é impor restrições aos direitos fundamentais, a que se refere o Capítulo III da Lei Básica e aos direitos previstos nos Pactos mencionados naquele artigo 40.º, matéria que deve constar de lei. Assim, desde que a matéria não esteja reservada à lei da Assembleia Legislativa, nada obsta a que regulamentos possam estabelecer deveres ou impor restrições sobre os particulares”. E mais adiante: “O Chefe do Executivo pode aprovar regulamentos apenas com fundamento na Lei Básica, fora das matérias reservadas à lei pela Lei Básica e sem prejuízo do princípio da prevalência da lei (o regulamento não pode contrariar os actos normativos de força hierárquica superior, designadamente, a Lei Básica, as leis, nem os princípios gerais de Direito, incluindo aqui os de Direito Administrativo)”.
19 Assim se decidiu neste TSI em 23/06/2011 e em 21/07/2011, nos acórdãos lavrados nos Processos nºs 440/2009 e 434/2009, respectivamente.
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