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Processo nº 51/2011
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 09 de Fevereiro de 2012
Descritores:
     -Declaração de remissão/quitação

SUMÁRIO:
I- A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida.

II- A quitação (ou recibo, no caso de obrigação pecuniária) é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação.

III- O reconhecimento negativo de dívida é o negócio pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.

IV- O reconhecimento negativo da dívida pode ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas.

V- A remissão ou quitação de créditos do contrato de trabalho é possível após a extinção das relações laborais.











Proc. nº 51/2011
(Recurso civil e Laboral)


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório

A, com os demais sinais dos autos, moveu acção comum de trabalho contra a STDM e SJM, pedindo a condenação destas no pagamento de Mop$1.109.235,57 como compensação pelos descansos semanais, feriados obrigatórios e descansos anuais não gozados desde o início até ao fim da relação laboral, acrescida dos juros legais.
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As rés suscitaram a prescrição, a remissão/pagamento e a ilegitimidade passiva da SJM (STDM: fls. 213 e sgs.; SJM: fls. 388 e sgs.).
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No despacho saneador, foi relegado o conhecimento da excepção do pagamento/remissão para a sentença final e julgadas improcedentes as excepções de prescrição e de ilegitimidade da SJM.
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Ninguém dele interpôs recurso.
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Do despacho de indeferimento tomado a fls. 546 dos autos sobre requerimento probatório, veio A recorrer, formulando as seguintes conclusões nas respectivas alegações:
A. A verdade que o processo procura atingir não é apenas a “verdade” da Base Instrutória, mas a verdade da relação material controvertida, a única que consente a justa composição do litígio imposta pelos referidos art.os 6.º, n.º 3 e no 442.º, n.º 1 do CPCM.
B. Os poderes cognitivos do juiz não estão limitados pela Base Instrutória, mas apenas pela matéria de facto alegada pelas partes, dentro do funcionamento dos ónus de alegação que sobre cada uma impendem, sem prejuízo do disposto nos nºs 2 e 3 do artigo 5.º do CPCM e n.º 1 do art.º 41.º do CPT.
C. A selecção dos factos assentes e a base instrutória são meros instrumentos de trabalho, destinados a facilitar a instrução, discussão e julgamento da causa, que não criam nem tiram direitos, designadamente o direito à prova dos fundamentos da acção.
D. Se, segundo o art.º 6.º, n.º 3 do CPCM, o juiz só pode fundar a decisão nos factos alegados pelas partes, sem prejuízo dos outros de que também deva conhecer, não faz sentido que indefira uma diligência probatória destinada à prova de um facto alegado pela parte, com o fundamento de que tal facto não consta da Base Instrutória.
E. O requerido no ponto 1 do requerimento probatório da A. destina-se à prova do alegado nos artigos 159.º e 163.º da petição inicial e, por conseguinte, releva para a apreciação da questão da invalidade do acto ou negócio a que se refere as alíneas p) e q) dos Factos Assentes por demonstrar que a sociedade que a STDM constituiu para se candidatar à concessão da licença de jogo não dispunha de autonomia funcional em relação à STDM, sendo instrumental à prossecução da sua estratégia para o negócio do jogo.
F. Acresce que as diligências probatórias requeridas não são, nem impertinentes (porque respeitam ao objecto da causa), nem desnecessárias (por respeitarem a matéria controvertida), nem dilatórias (porque não retardarem a normal marcha do processo a ponto de afectar o direito de obter uma decisão em prazo razoável), pelo que nada impunha ou justifica o seu indeferimento.
G. O requerido no ponto 3 do requerimento probatório da A. destina-se à prova da tese da transmissão da empresa ou do estabelecimento comercial (casinos) da 1.ª para a 2.ª Ré - seja a que título for - conforme alegado nos artigos 51.º a 121.º da petição inicial e, por conseguinte, à prova da matéria do quesito 6.º da Base Instrutória.
H. Inexiste, portanto, motivo atendível para indeferir a diligência requerida no ponto 3 do requerimento probatório da A., a qual sempre seria de deferir por se destinar à prova dos fundamentos da acção.
I. O objecto da prova requerida nos pontos 1 e 3 do requerimento probatório do A. consiste em factos nos quais o Tribunal pode fundar a sua decisão nos termos do art.º 5.º do CPCM, pelo que a sua relização se inscreve no direito à prova dos fundamentos da acção que assiste à A.
J. A decisão recorrida, violou, assim, nesta parte, o disposto nos art.os 5.º, 6.º, n.º 1 e 3 e 442.º, n.º 1 do CPCM e, em consequência “o direito à prova relevante” que assiste à A., ora Recorrente.
K. A fundamentação da decisão recorrida tem subjacente uma concepção de “objecto de prova admissível” mais restritiva do que aquela que decorre da lei, dado que, como flui dos artigos 335.º, n.º 1, do Código Civil, 5.º, nºs 1,2 e 3,6.º, n.º 3, 434.º, 436.º e 562.º, n.º 2, do CPCM, o objecto da prova não se esgota na matéria contida na Base Instrutória.
L. Neste contexto, nada obstava a que fossem deferidas as diligências de prova requeridas pela A., uma vez que respeitam à matéria da causa e visam demonstrar factos de que o Tribunal pode e deve conhecer para fundar a sua decisão (art.º 5.º, 6.º, n.º 3 e 562.º, n.º 3, in fine, todos do CPCM), sendo prematuro, nesta fase processual, qualquer juízo antecipado sobre a sua maior ou menor relevância para a justa composição dos interesses em litígio.
NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso, substituindo-se o despacho ora recorrido por outro que ordene a realização das diligências probatórias requeridas, se razão diversa a tal não obstar, anulando-se os termos subsequentes do processo que dele dependam absolutamente, com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, farão V. Ex.as a costumada Justiça.
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Prosseguiu o processo a sua normal tramitação, vindo a ser proferida sentença, que julgou a acção improcedente e absolveu os RR do pedido.
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É desta sentença que, inconformada, ora recorre novamente a autora da acção, em cujas alegações formula as seguintes conclusões:
A. Ao responder “não provado” à matéria do quesito 2.º da Base Instrutória, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, designadamente na apreciação das passagens depoimento da testemunha XXX gravadas ao minuto 01:55 a 02:39 do Translator 2 - Recorded on 13-Sep-2010 at 16.46.10 (X@PAY4G01811270), do Despacho do Chefe do Executivo n.º 259/2001 publicado em 2001.12.21 no Boletim Oficial n.º51, I Série, do especificado na alínea d) da Matéria de Facto Assente, do documento de fls. 584 emitido pela DICJ e do documento de fls. 579 publicado no People´s Daily (人民日报) de segunda-feira, 1 de Abril de 2002.
B. É, pois, flagrante a desconformidade entre os elementos de prova e a resposta negativa ao quesito 2.º da Base Instrutória, designadamente das passagens depoimento das testemunhas XXX (XXX) e XXX (XXX) gravadas ao minuto 1:13 a 1:49 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.40.25 (-XS@42JG01811270), 1:41 a 2:18 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.42.34 (-XS@7$7G01811270), 4:29 a 4:50 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.17.06 (-XSAEUBW01811270), o que demonstra que o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 558.º, n.º 1 do CPCM, devendo, por conseguinte, ser a resposta ao referido quesito alterada para “Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) do CPCM. A.
C. Ao responder não provado à matéria do quesito 6.º da Base Instrutória, o Tribunal a quo:
- incorreu em erro na apreciação da matéria de facto relatada no documento de fls. 579 publicado na edição digital do People´s Daily (人民日报) de segunda-feira, 1 de Abril de 2002, segundo o qual, na cerimónia de transferência dos onze casinos da STDM para a SJM realizada no Hotel Lisboa, se verificou uma pausa de alguns minutos, tendo o Administrador-Delegado da SJM para o período de 31/03/2002 a 31/03/2004, (Stanley Hung Sun Ho) assegurado que a SJM conservaria todo o pessoal dos casinos da STDM e que, por enquanto, tudo permaneceria inalterado, e - violou a força probatória plena conferida pelo art.º 365.º, n.º 1 do CCM ao documento de fls. 584, no qual a DICJ comprova que todos os casinos explorados pela STDM passaram, de um dia para o outro, a ser explorados pela SJM, devendo, por conseguinte, ser a resposta ao referido quesito 6.º da Base Instrutória alterada para “Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) e b) do CPCM.
D. Ao responder não provado à matéria dos quesitos 7.º a 12.º da Base Instrutória, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, designadamente das passagens depoimento das testemunhas XXX (XXX) e XXX (XXX) gravadas ao minuto 0:00 a 1:26 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.57.54 (-XS@QEDG01811270), 3:56 a 4:10 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.07.53 (-XSA3D%101811270), 0:16 a 0:54 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.27.03 (-XSAS%N101811270), 0:55 a 1:03 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.12.24 (-XSA9GM101811270) e 0:00 a 0:25 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.31.11 (-XSAXJ(101811270), com o que violou o disposto no art.º 558.º, n.º 1 do CPCM, devendo, por conseguinte, serem as respostas aos referidos quesitos alteradas para “Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) do CPCM.
E. Ao responder não provado à matéria do quesito 12.º da Base Instrutória, que configura defesa por excepção da Ré, o Tribunal a quo violou o disposto no art.º 335.º, n.º 2 do CCM, tendo ainda incorrido em erro na apreciação da matéria de facto, designadamente das passagens depoimento das testemunhas XXX (XXX) e XXX (XXX) gravadas ao minuto 3:56 a 4:10 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.07.53 (-XSA3D%101811270), 0:55 a 1:03 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.12.24 (-XSA9GM101811270) e 0:00 a 0:25 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.31.11 (-XSAXJ(101811270), com o que violou o disposto no art.º 558.º, n.º 1 do CP CM, devendo, por conseguinte, ser a resposta ao referido quesito alterada para “Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) do CPCM.
F. Ao responder provado à matéria do quesito 13.º da Base Instrutória, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, designadamente das passagens depoimento da testemunha XXX (XXX) gravadas ao minuto 0:26 a 1:18 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.38.29 (-S@lL6G01811270), e do documento de fls. 626 emitido pelo Banco Industrial e Comercial da China (Macau), S.A.” (ICBC), com o que violou o disposto no art.º 558.º, n.º 1 do CPCM, devendo, por conseguinte, ser a resposta ao referido quesito alterada para “Não Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) e b) do CPCM.
G. Ao responder não provado à matéria do quesito 21.º da Base Instrutória, o Tribunal a quo incorreu em erro na apreciação da matéria de facto, designadamente das passagens depoimento das testemunhas XXX (XXX) e XXX (XXX) gravadas ao minuto 0:00 a 0:34 Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.42.34 (-XS@7$7G01811270), 0:00 a 0:33 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 16.48.03 (-XS@DBJG01811270), 0:18 a 0:33 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep2010 at 17.01.13 (-XSA#L%101811270), 0:00 a 1:35 do Translator 2 - Recorded on 27- Sep-2010 at 17.22.13 (-XSALL)101811270) e 2:38 a 2:56 do Translator 2 - Recorded on 27-Sep-2010 at 17.24.01 (-XSAO#GG01811270), e do documento de fls. 626 emitido pelo Banco Industrial e Comercial da China (Macau), S.A.” (ICBC), com o que violou o disposto no art.º 558.º, n.º 1 do CPCM, devendo, por conseguinte, ser a resposta ao referido quesito alterada para “Provado” nos termos do disposto no art.º 629.º, n.º 1, a) e b) do CPCM.
H. Os elementos de prova produzidos nos autos e especificados no corpo destas alegações não suportam assim a convicção que o Tribunal a quo formou quanto à matéria dos quesitos 2.º, 6.º a 12.º e 21.º da Base Instrutória, os quais deveriam, por isso, ter sido dados como “provados”.
I. Os elementos de prova produzidos nos autos e especificados no corpo destas alegações não suportam assim a convicção que o Tribunal a quo formou quanto à matéria do quesito 13.º da Base Instrutória, o qual deveria, por isso, ter sido dado como “não provado”.
J. O Tribunal a quo decidiu pela procedência de excepção peremptória da extinção dos créditos da A. sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos e provas de que lhe era lícito e cumpria conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos 51.º a 172.º da petição inicial, tendo com essa dupla omissão, violado o disposto no art.º 5.º, n.º 2 e 562.º, n.º 3, parte final, ambos, do CPCM, pelo que a sentença recorrida incorreu no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea D), primeira parte, do n.º 1 do art.º 571.º do CPCM.
K. O Tribunal a quo decidiu pela procedência da excepção peremptória da extinção dos créditos da A., sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos e provas de que lhe era lícito e cumpria conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos 51.º a 172.º da petição inicial, tendo com essa dupla omissão, violado o disposto no art.º 5.º, n.º 2 e 562.º, n.º 3, parte final, ambos, do CPCM, e incorrido no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art.º 571.º do CPCM.
L. Por outro lado, o Tribunal a quo decidiu pela procedência de excepção peremptória da extinção dos créditos da A., sem que se tenha pronunciado quanto a todos os factos de que lhe era lícto conhecer, designadamente os factos articulados nos artigos 150.º a 172.º da petição inicial, maxime no art.º 171.º, nos artigos 66.º a 78.º da resposta à contestação da 1.ª Ré, e ainda nos documentos relativos aos efeitos da relação do domínio da 1ª Ré sobre a SJM na manutenção dos constrangimentos que afligiam os trabalhadores.
M. Com esta dupla omissão quanto aos factos e provas que lhe cumpria conhecer, a sentença recorrida incorreu na violação do disposto no art.º 5.º, n.º 2 e 562.º, n.º 3, parte final, ambos, do CPCM e, por conseguinte, no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art.º 571.º do CPCM.
N. A segunda parte da “declaração”(聲明書) relativa ao “prémio de serviço” (服務賞金) a que se refere os documentos 1 e 2 da Contestação (fls. 366 e 368) consubstancia um acto ou negócio nulo, nos termos do disposto no art.º 287.º do Código Civil ex vi dos artigos 6.º e 33.º do Decreto-Lei 24/89/M, independentemente de a relação jurídica iniciada com a 1ª Ré se ter ou não extinto com a transferência da A. para a SJM.
O. A declaração a que se refere os documentos de fls. 366 e 368 não configura um contrato de remissão de créditos nem um reconhecimento negativo de dívida, porque para que exista um contrato de remissão de créditos ou uma declaração de reconhecimento negativo de dívida é necessário que o credor queira renunciar a esse crédito ou que a dívida objecto do reconhecimento exista ou que, tendo existido, se tenha entretanto extinto.
P. Por outras palavras, o credor só se pode reconhecer a inexistência de uma obrigação que nunca tenha existido existiu ou que, a ter existido, foi entretanto extinta, sendo-lhe impossível reconhecer a inexistência de eventuais obrigações que não foram extintas pelo pagamento.
Q. Assim, a sentença recorrida ao qualificar a segunda parte dos documentos de fls. 366 e 368 como um reconhecimento negativo de dívida violou o art.º 391.º do CCM, uma vez que desse documento não resulta que a obrigação nunca tenha existido ou que, tendo existido, tenha entretanto sido extinta pelo pagamento.
R. Subsidiariamente, o que existiu foi uma transacção entre as partes a qual levou à emissão das declarações de fls. 366 e 368, sendo esta declaração mero acto posterior àquela.
S. E uma vez que a transacção acima referida não foi precedida de autorização do Gabinete para os Assuntos de Trabalho, conforme impunha o n.º 1 da alínea d) do artigo 9.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, nem celebrada segundo a forma legalmente exigida, ao abrigo do disposto no art.º 212.º ex vi do art.º 1174.º do CCM, a mesma é nula e, como tal, insusceptível de produzir qualquer efeito.
T. À data da assinatura das declarações de fls. 366 e 368 era a 1.ª Ré quem pagava os salários à A., conforme a declaração de fls. 626 do ICBC e fls. 618 do Sucursal de Macau do Banco da China, pelo que o vínculo de dependência económica da Autora em relação à STDM se mantinha, sendo, por isso, nulo o acto ou negócio a que se refere os documentos de fls. 366 e 368.
U. Para inculcar directamente a sua vontade na sociedade dominada, a 1.ª Ré, através da “Investimentos - STDM, Lda.” elegeu o Sr. Stanley Hung Sun Ho como Administrador-Delegado da SJM para o período de 31/03/2002 a 31/03/2004, conforme a lista dos membros dos órgãos sociais de fls. 443 publicada no B.O. n.º 18, II Série, de 2004/5/5, o qual, à data da assinatura das declarações de fls. 366 e 368, era também o Administrador-Delegado da STDM, conforme provado a fls. 415 dos autos na Acta n.º 47 da Assembleia Geral Ordinária.
V. Assim à data em que as declarações de fls. 366 e 368 foram assinadas a STDM dispunha do poder de inculcar directamente a sua vontade no órgão de administração da SJM através do Administrador-Delegado comum a ambas as sociedades, conforme demonstrado nos Relatórios das contas dos exercícios de 2002 a 2005 da SJM publicados no B.O. n.º: 17, II Série, de 2006/4/26, no B.O. n.º: 17, II Série, de 2005/4/27, no B.O. n.º: 18, II Série, de 2004/5/5, no B.O. n.º: 18, II Série, de 2003/4/30 e no B.O. n.º: 10, II Série, de 2002/3/6 e do Sumário do Relatório do Conselho de Administração da STDM - Ano 2001 publicado no B.O. n.º: 29, II Série, de 200217/17.
W. Assim, se a SJM, mercê do seu estatuto de sociedade dominada pela 1ª Ré, não dispunha, de direito, de autonomia funcional por estar sujeita às instruções vinculantes da sociedade dominante, afigura-se conforme à figura da relação de domínio existente, presumir que se mantinham, à data da assinatura dos documentos 1 e 2 da Contestação (fls. 366 e 368), constrangimentos de nível psicológico que inibiram o trabalhador de, livremente, manifestar a sua vontade negocial.
X. A assinatura do documento intitulado “dec1aração”(聲明書) não correspondeu assim à manifestação e uma vontade livre e esclarecida por banda da A., porque toldada pelo particular estado de sujeição resultante da relação de dependência económica face à sociedade dominante e do receio de represálias por parte da SJM a mando da STDM.
Y. Ainda que fosse de acolher a jurisprudência portuguesa que consente a relativa disponibilidade dos créditos salariais após a cessação da relação laboral, afigura-se evidente que tal entendimento não teve seguramente em vista a situação do caso sub judice, na qual a A. quando assinou os dos documentos 1 e 2 da Contestação (fls. 366 e 368), trabalhava para a SJM, i.e. trabalhava numa subsidiária sujeita a uma relação de domínio por parte da 1ª Ré.
Z. Isto porque, por identidade de razão, procederem as mesmas razões, designadamente, os mesmos constrangimentos que obstam à disponibilidade dos créditos salariais na vigência da relação de trabalho com a sociedade dominante.
AA. O Tribunal a quo não conheceu dos factos do conhecimento geral publicados no Boletim Oficial da Região Administrativa Especial de Macau demonstrativos de que a STDM e a SJM se encontram numa relação de domínio, cabendo à STDM, através da “Investimentos - STDM, Lda.”, a qualidade de sócia dominante da SJM (cfr. art.º 2.º, 1) do Regulamento Administrativo n.º 26/2001 e art.º 212.º, n.º 1 do Código Comercial).
BB. Ora, se conforme resulta dos factos apontados quem controlava e mandava na SJM à data da assinatura das declarações de fls. 366 e 368 é a STDM 1ª Ré, mostra-se evidente que, com a assinatura do novo contrato com a subsidiária da 1ª Ré não cessou para a A. que nela passou a trabalhar, os constrangimentos a que estava sujeito no âmbito do contrato com a sociedade dominante.
CC. O Tribunal a quo também não se pronunciou sobre (i) o erro sobre a base do negócio de fls. 366 e 368 a que se referem os art.os 229.º a 260.º, nem sobre (ii) a anulabilidade do negócio usurário a que se referem os art.os 262.º a 275.º, nem sobre (iii) a anulabilidade resultante da relação de dependência económica a que se referem os art.os 276.º e 277.º, todos da petição inicial, pelo que a sentença recorrida incorreu no vício de nulidade por omissão de pronúncia previsto na alínea d), primeira parte, do n.º 1 do art.º 571.º do CPCM.
DD. Sendo que bastava conjugar a situação de necessidade resultante da dependência económica da A. em relação à 1ª Ré (que lhe continuava a pagar o salário) com o exorbitante montante que a 1ª Ré poupou ou deixou de desembolsar por força do negócio que “propôs” à A., para dar por verificados os requisitos previstos no artigo 275.º do CCM.
NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, farão V. Ex.as a costumada Justiça.
*
A STDM respondeu ao recurso, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1. Salvo mais douto entendimento, andou bem o(a) Mmo(a). Juiz a quo no que respeita às respostas dadas pelo douto tribunal aos quesitos referidos pelo (a) Recorrente, nada havendo a apontar ao douto Tribunal a quo, que se limitou a apurar a verdade dos factos.
2. O(a) Recorrente desvirtuou os factos e as passagens da gravação que indicou, tirando conclusões que em nada são suportadas pelos depoimentos das testemunhas.
3. A sentença recorrida não pressupôs erradamente que a relação contratual já havia cessado quando foi proferida a declaração junta à contestação como Doc. n.º1, não merecendo reparo a decisão tomada pelo Tribunal a quo.
4. O(a) Recorrente celebrou com Recorrida um negócio jurídico de Remissão de Créditos cerca de um ano depois da cessação da relação laboral.
5. Não existiu qualquer negócio sobre a empresa comercial, entre a R. e a SJM.
6. A Recorrida e a sociedade SJM, S.A. são pessoas jurídicas distintas com órgãos e objecto próprios, que não se confundem uma com a outra e que têm total autonomia e individualidade.
7. Veja-se um excerto do Acórdão do Tribunal de Última Instância da RAEM de 30 de Julho de 2008, proferido no Processo n.º 27/2008: “A remissão de créditos do contrato de trabalho é possível após extinção das relações laborais”.
8. A Sentença recorrida não violou o artigo 854º do Código Civil, na medida em que todos os pressupostos dessa modalidade de extinção de dívidas se encontravam preenchidos na data em que foi proferida a declaração remissiva.
9. A remissão de créditos é um negócio jurídico de extinção das obrigações, previsto nos artigos 854º a 858º do CC em Macau e as relações laborais entre o(a) Recorrente e a Recorrida, já tinham terminado quando foram remitidas as dívidas.
10. O objectivo do Regime Jurídico das Relações de Trabalho é o de definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação de trabalhadores residentes e não as relações jurídicas pós-contratação, como no caso sub judice.
11. Dissecando o preceito normativo do artigo 6º do referido diploma, encontramos três definições essenciais, que estão expressamente estatuídas no Diploma que regula as relações de trabalho e que, de per si, bastariam para que não pudesse ser outro o sentido da decisão recorrida: “Empregador”, “Trabalhador” e “Condição de Trabalho”.
12. Ora, no caso dos autos:
i. Já não estávamos em presença de trabalhadores e empregadores, visto que essa relação laboral tinha cessado há cerca de um ano;
ii. Não pode falar-se em “condição de trabalho” sem que haja um trabalhador e um empregador e uma relação laboral entre eles.
13. Não existindo relação laboral, contratual ou outra entre a STDM, S.A., ora Recorrida, e o(a) Recorrente, à data da assinatura da declaração junta à Contestação como Doc. n.º1, não existia qualquer indisponibilidade de créditos, nem “temor reverencial”, pelo que a referida declaração é válida e eficaz entre as partes.
Nestes termos e nos melhores de direito aplicáveis, que V. Exas. melhor suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se a decisão recorrida, deste modo, fazendo V. Exas., mais uma vez, a costumada
JUSTIÇA!
*
Cumpre decidir.
***

II- Os Factos

A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
Desde Janeiro de 1962, a 1ª Ré (STDM) foi titular de um Contrato de Concessão para a Exploração, em regime de exclusividade, de jogos de fortuna ou azar ou outros jogos em casinos, para o Território de Macau, criado pela portaria n.º 18267, de 13 de Fevereiro de 1961. (A)
Por Despacho do Chefe do Executivo n.º 76/2002, de 27 de Março, foi adjudicada uma concessão de exploração do sector do jogo à 2a ré (SJM), que se encontra titulada pelo “Contrato de Concessão para a Exploração de Jogos de Fortuna ou Azar ou Outros Jogos em Casino na RAEM”, publicado no BO-RAEM n.º 14, II Série, Suplemento de 3 de Abril de 2002, pelo prazo de 18 (dezoito) anos. (B)
A Autora manteve uma relação contratual com a ré STDM no período temporal compreendido entre 01 de Dezembro de 1988 e 23 de Julho de 2002. (C)
Exercendo funções de “croupier”, e trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização desta. (D)
Até 1998, a Autora trabalhava em ciclos contínuos de três dias:
No primeiro dia, a Autora começava às 14:00 e interrompia às 18:00.
Depois, recomeçava às 22:00 e acabava às 2:00.
No segundo dia, a Autora começava às 10:00 e interrompia às 14:00.
Depois, recomeçava às 18:00 e acabava às 22:00.
No terceiro dias (sic.), a Autora começava às 06:00 e interrompia às 10:00.
Depois, recomeçava às 02:00 e acabava às 06:00.
O ciclo renovava-se de três em três dias. (E)
A partir de 1998, a Autora passou a trabalhar em ciclos contínuos de 9 dias:
No primeiro, segundo e terceiro dias, a Autora começava às 07:00 e acabava às 15:00.
No quarto, quinto e sexto dias, a Autora começava às 23:00 e acabava às 07:00.
No sétimo, oitavo e nono dias, a Autora começava às 15:00 e acabava às 23:00.
O ciclo renovava-se de nove em nove dias. (F)
A rendimento da Autora desdobrava-se em duas partes, uma parte fixa, e outra parte variável. (G)
A primeira calculada com base no valor da remuneração fixa diária. (H)
Sendo de MOP$ 4,10 desde o início da relação laboral até 30 de Junho de 1989; de HKD$ 10,00 desde 01 de Julho de 1989 até 30 de Abril de 1995; e desde 01 de Maio de 1995 até ao fim da relação laboral de HKD$ 15,00. (I)
E a segunda determinada em função do montante das “gorjetas” oferecidas pelos clientes. (J)
As “gorjetas” não se destinavam, em exclusivo, aos trabalhadores que lidavam directamente com os clientes de casinos. (K)
A Autora não podia ficar com quaisquer “gorjetas” que lhe fossem entregues pelos clientes do casino. (L)
As “gorjetas” recebidas pelos empregados eram colocadas, por ordem da Ré, numa caixa destinada exclusivamente para esse efeito, e eram contadas diariamente por funcionários da Ré, sob vigilância da Direcção de Coordenação de Inspecção e Coordenação de Jogos, a fim de serem distribuídas de 10 em 10 dias aos diversos empregados consoante uma dada percentagem anteriormente fixada pela Ré. (M)
Sobre os rendimentos incidiu imposto profissional nos termos que constou da certidão de rendimentos de fls. 86 a 87, de cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido. (N)
A 28 de Julho de 2003 a Autora emitiu a declaração constante de fls. 335, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
Eu, A, titular do BIR n.º X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 29.195,50 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
(A Declarante): (ass.) A.
BIR n.º: X/XXXXXX/X
Data: XX-X-XXXX
Concordo e aceito tal declaração.
(ass.) - (Vide o original).
2003.07.28
(Carimbo) - STDM * Departamento do Pessoal. (P)
A 11 de Março de 2004 a Autora emitiu a declaração constante de fls. 368, de cujo teor se passa a transcrever:
Declaração
Eu, A, titular do BIR n.º X/XXXXXX/X, recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$ 506,54 da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
(A Declarante): (ass.) A.
BIR n.º: X/XXXXXX/X
Data: XX-X-XXXX
Concordo e aceito tal declaração.
(ass.) - (Vide o original).
2004.03.11
(Carimbo) - STDM * Departamento do Pessoal. (Q)
A Autora recebeu junto da então Direcção de Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), que deu origem ao processo n.º 1476/2002, a quantia de MOP$ 14.851,02. (R)
Desde o início da relação de trabalho entre a Autora e a 1ª Ré (STDM) até ao seu termo, por imposição da 1ª Ré (STDM), a Autora trabalhou todos os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios. (1º)
A partir do dia 24 de Julho de 2002, a Autora iniciou a sua prestação de trabalho para a 2ª Ré (SJM). (2º)
A Autora gozou 71 dias de descanso no ano de 1993, 38 dias de descanso no ano de 1994, 16 dias do descanso no ano de 1995, 53 dias de descanso no ano de 1996, 40 dias de descanso no ano de 1997, 18 dias de descanso no ano de 1998, 52 dias de descanso no ano de 1999,45 dias de descanso no ano de 2000, 10 dias de descanso no ano de 2001, 3 dias de descanso no ano de 2002. (13º)
Desde o início da relação laboral até 2002, a Autora auferia o rendimento médio diário correspondente aos seguintes valores:
a) Ano de 1989 = MOP$ 209.44
b) Ano de 1990 = MOP$ 312.16
c) Ano de 1991 = MOP$ 332.82
d) Ano de 1992 = MOP$ 366.06
e) Ano de 1993 = MOP$ 352.70
f) Ano de 1994 = MOP$ 438.81
g) Ano de 1995 = MOP$ 532.24
h) Ano de 1996 = MOP$ 527.31
i) Ano de 1997 = MOP$ 529.07
j) Ano de 1998 = MOP$ 538.64
k) Ano de 1999 = MOP$ 423.70
1) Ano de 2000 = MOP$ 427.16
m) Ano de 2001 = MOP$ 483.62
n) Ano de 2002 = MOP$ 510.16 (18º)
A Autora nunca beneficiou de qualquer acréscimo salarial pelo trabalho prestado nos dias de descanso semanal, descanso anual e feriados obrigatórios, excepto as quantias nas al. p) e q) da matéria dos factos assentes. (19º)
O rendimento da Autora era de MOP$ 5.000,00 por mês entre Julho de 2002 e Março de 2006 e de MOP$ 6.500,00 por mês, a partir de Abril de 2006, nos termos do doc. 1 junto com a contestação da 2.ª Ré. (20º).
***
III- O Direito
1- Introdução
Foram interpostos dois recursos, ambos pelo autor da acção: um, interlocutório, restrito ao despacho de indeferimento de fls. 607 sobre requerimento probatório que ele tinha apresentado; outro, recaído sobre a sentença final, que como se viu do relato antecedente, foi absolutória.
Comecemos pelo primeiro, pois se nos afigura que aquilo que sobre o assunto viermos a decidir é relevante para a sorte da sentença final. Com efeito, tendo a sentença absolvido as rés com base no valor emprestado a uma declaração assinada pelo autor e tendo ele mesmo suscitado a questão da sua dependência em relação à STDM no momento em que a rubricou, para o que em sua opinião era essencial a satisfação do seu pedido probatório, impõe-se avaliar do acerto do despacho que o indeferiu.
Avancemos, pois.
*
2- Recurso interlocutório
Este recurso visa acometer o despacho de fls. 607 na parte em que indeferiu o pedido do autor no sentido de:
a)- Se ordenar à ré STDM que facultasse a acta da assembleia-geral extraordinária de 5/11/2001, na qual foi deliberado constituir uma nova sociedade (SJM) para se candidatar à concessão da licença de jogo.
Teria em vista a prova do alegado nos arts. 159º e 163º da petição inicial e do quesito 6º da Base Instrutória.
b) Se oficiar à Direcção De Inspecção e Coordenação de Jogos para que “atestasse” quais eram os casinos explorados pela STDM no dia 31/03/2002, e quais os explorados a partir do dia 1/04/2002.
Teria em vista a prova ainda da matéria do quesito 6º da Base Instrutória.
Ora, se olharmos para os arts. 159º e 163º da petição, o que ali se pretende é demonstrar, no quadro mais alargado do contexto em que eles surgem (arts. 150º e sgs da p.i.), que, apesar de STDM e SJM serem formalmente sociedades distintas, na prática, eram indissociáveis, por se encontrarem numa relação de domínio, de modo que quem controlava de facto e de direito a SJM era a STDM. Caso em que, a transmissão operada da 1ª ré para a 2ª ré em nada teria influído na relação de trabalho do autor da acção.
A recorrente assevera que o que deveria ser importante dizer no dito despacho era se a matéria era importante para a descoberta da verdade material e não, como no despacho foi fundamentado, que as diligências requeridas não revelavam interesse para a matéria da Base Instrutória.
Efectivamente, tem a recorrente razão em abstracto na afirmação que faz sobre esse ponto: o que conta não é o que está incluído na matéria da Base Instrutória, mas a matéria que se mostre essencial à verdade material da relação controvertida para que a solução jurídica que a sentença plasme vá directa ao âmago da controvérsia resolvendo-a em definitivo.
Todavia, o que o despacho em causa referiu, embora com as palavras utilizadas (“Vai indeferido o requerido em 1 e 3 por não revelar interesse para a matéria da Base Instrutória”), ao contrário do que pudesse parecer, vai ao encontro da tese que o recurso exibe. Ou seja, para o autor do despacho aquela pretensão manifestada nos pontos 1 e 3 não traria qualquer utilidade ao desfecho da acção na perspectiva que o Ex.mo Juiz erigiu e depositou na Base Instrutória. A Base Instrutória já contempla, no seu modo de ver, a matéria mais importante à sorte da demanda, bastando que o autor a prove. Por isso, as diligências probatórias em nada iriam enriquecer a matéria já de si relevante da Base Instrutória. É dessa maneira que interpretamos o despacho em crise e não vemos que dele se possa fazer outra leitura.
Mas, por outro lado, se a intenção do autor/requerente era revelar a sua posição de ele mais fraco da relação de domínio de que fala, então a eventual prova “qua tale” da matéria dos arts. 159º e 163º da p.i., que nem sequer estava incluídas na B.I. também não traria melhor sorte do que a adviria de uma resposta afirmativa aos quesitos 2º, 3º, 4º, 5º e 6º e 7º. Este, sim, representa um grupo de factos essenciais à tese do autor segundo a qual não podia, ao fim e ao resto, negar-se a assinar a dita declaração, porque o seu estado em relação à STD era de sujeição total, a ponto de, caso se recusasse a fazê-lo, o seu contrato não teria continuação. Que melhor prova do que esta poderia querer o autor para a revelação de tal estado de submissão?!
Só que este arquipélago de quesitos não mereceu a resposta pretendida, pois todos foram dados por não provados.
E também, para rematar este ponto, somos a dizer o que noutros recursos temos dito sobre o mesmo assunto:
A verdade é que em Julho de 2003 o aqui recorrente assinou a referida declaração, mas o contrato com a 2ª ré havia sido celebrado em Julho de 2002, isto é, um ano antes. E assim, pensamos que o decurso de tão largo período de tempo será bastante para esvair qualquer tentativa de provar que a declarante continuava receosa de perder o emprego caso não assinasse o documento.
Aliás, mesmo que fosse revelado que era a 1ª ré quem continuava a pagar o “salário” ao trabalhador, isso apenas decorreria das relações acordadas entre STDM e SJM, circunstância que nunca poderia alterar a natureza do vínculo gerado entre o autor da acção e a sua nova empregadora, a SJM. Este facto, portanto, não significaria mais do que isso: que o salário estava a ser pago por terceiro! Ora, daí nunca poderia extrair-se qualquer nexo insofismável de que o trabalhador, ao assinar o documento, não sabia o que fazia, que não tinha a noção do perigo que isso representava ou, pior ainda, que o fazia por continuar dependente economicamente da STDM. Ou seja, não seria possível a partir desse facto isolado - se fosse satisfeita a pretensão do autor – concluir que o autor, aqui recorrente, estava dominada por um estado de sujeição tal que lhe não permitia agir de outro modo ou que a sua vontade, ao fazê-lo, não foi livre e esclarecida. Para tanto se concluir, seriam precisos mais factos (circunstanciais pelo menos) de importância primordial. Seria necessário, por exemplo, acrescentar que quando a declaração foi assinada, já o declarante sabia que o salário era pago pela STDM, que noutros casos a recusa de assinatura de declaração semelhante por colegas seus havia levado à perda do emprego por cessação unilateral da relação laboral por parte da SJM, que isso mesmo lhe fora dito directamente a si ou a outrem que o pudesse vir testemunhar, etc, etc. Mas, isoladamente, nenhuma fonte de certeza esse facto iria trazer ao julgador no sentido adiantado pela autor (ver, por exemplo, no Proc. nº 124/2011).
Em suma, não encontramos no despacho em apreço, na parte agora em crise, razão para qualquer censura, pelo que o haveremos de manter.
*
3- Recurso da sentença
A sentença conferiu às declarações constantes das alíneas p) e q) o valor de quitação e, em consequência, entendendo que nada mais o autor tinha a receber a título de créditos, absolveu as rés do pedido.
Não se conforma o recorrente com tal decisão e começa logo por atacar o erro no julgamento da matéria de facto. Comecemos por aí mesmo.
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3.1- Do erro de julgamento da matéria de facto
Assim, quanto ao facto 2º da BI (“A partir do dia 01 de Abril de 2002 e até Julho de 2002, a autora iniciou a sua prestação de trabalho para a 2ª ré, SJM?”, diz que o tribunal o deu por “Não provado”. Ora, não foi isto o que o tribunal respondeu, mas sim que considerou provado que “A partir do dia 24 de Julho de 2002, a Autora iniciou a sua prestação de trabalho para a 2ª ré (SJM)”. Tal é o que precisamente decorre do depoimento que o recorrente transcreveu nas suas alegações de recurso, nomeadamente da testemunha XXX. Aliás, o contrato formalizado em Julho (ver doc. fls. 76 dos autos) permite pensar que o trabalhador tivesse continuado a trabalhar para a STDM durante algum tempo – ou, pelo menos estar na sua dependência - o que até está em sintonia com o teor da alínea c), da matéria assente. Mas, se também pode ser verdade que a partir de Abril de 2002 o autor podia ter passado a trabalhar na prática para a SJM, então a resposta dada ao quesito pode ter outra leitura: a de que a partir de Julho o início da relação de trabalho se verificou formalmente! Seria esse o sentido da resposta!
Ou seja, qualquer leitura é possível. E, assim sendo, as declarações transcritas não têm mais força num sentido do que noutro.
*
Quanto ao facto 6º da BI não concorda que a matéria tenha sido dada por não provada. Mas, como se colhe da sua contestação, a SJM não aceita que a STDM tenha transmitido para si os seus elementos produtivos, sendo certo que o Contrato de Concessão apenas permite temporariamente (pelo período de um ano) o gozo pela SJM dos equipamentos e utensílios da STDM para esta nova entidade, e que no termo da concessão tais equipamentos e utensílios revertem gratuita e automaticamente para a concedente (Despacho do Chefe do Executivo nº 76/2002). Neste sentido, a resposta dada está em sintonia com este Despacho, não sendo possível dizer que foi a STDM quem transmitiu (supor-se-ia, definitivamente, e a seu bel-prazer) todos “os elementos produtivos” para a SJM.
Significa que não há erro de julgamento quanto a esta matéria.
*
Quanto aos quesitos 7º e 8º da BI, também o recorrente se não conforma com a resposta negativa que lhes foi dada.
Estava em causa a assinatura das declarações a que acima fizemos já referência, nos termos das quais o autor assume ter recebido tudo o que havia a receber a título de créditos laborais.
Ora, a transcrição dos depoimentos que o autor faz a este respeito não corrobora a sua posição. Efectivamente, o que as testemunhas ali identificadas dizem não passa de uma suposição, de um exercício de adivinhação ou dedução, se se quiser, sem apoio de facto indubitável, de algo que não puderam atestar inquestionavelmente. E, como se deve reconhecer, sem a prova directa de uma testemunha vítima de “despedimento” com inequívoca justificação na não declaração do documento, difícil seria ao tribunal caminhar ao encontro daquilo que pode ter acontecido, pois o que se lhe pedia era que se descobrisse o que aconteceu mesmo. E isso, na excelsa convicção dos julgadores da 1ª instância não chegou a ser apurado e os elementos da prova transcrita também não nos permitem, sinceramente, ir mais além.
*
Quanto aos quesitos 9º a 12º da BI, estamos, deve o recorrente reconhecê-lo, perante factualidade em que uma grande margem de subjectividade está presente e em que muito dificilmente a prova pode bastar-se a partir de testemunhos colaterais. Quer dizer, difícil seria à autora provar o que ali se pergunta, porque assenta em plano subjectivo acerca do entendimento ou do conhecimento de certas situações da ida. Por isso, compreendemos a dificuldade do tribunal “a quo” em dar como provado a ignorância do autor sobre a existência de sentenças favoráveis a colegas seus! Na verdade, até podia acontecer que soubesse, mas para si poderia ser mais importante continuar com um posto de trabalho! Não sabemos o que se passaria na mente do próprio e, certamente, também as testemunhas ouvidas não o saberiam, pois de outro modo o teriam esclarecido ao tribunal.
E se isto se diz da matéria do quesito 9º, igualmente se diz dos quesitos 10º e 11º, pois continuam no mesmo plano da subjectividade e do conhecimento pessoal das coisas por parte do autor da acção.
Por fim, também se aceita que a resposta ao quesito 12º (perguntava-se se a STDM informou o autor acerca da existência de sentenças judiciais favoráveis à esfera de colegas seus, empregados do casino). A prova deste facto negativo seria, como se compreende, muito difícil de obter e os dados dos autos também não nos permitem alcançá-la. Portanto, não podemos contrariar a resposta dada.
*
Perguntava-se no quesito 13º se o autor gozou certos dias de descanso nos anos ali identificados.
A resposta foi afirmativa. E pensa agora o recorrente que, ao fazê-lo, o tribunal mais uma vez incorreu em erro na apreciação da prova. Para tanto concluir, transcreveu parte do depoimento de uma testemunha.
Ora, acontece que o valor desse depoimento, isolado, não pode valer pelo todo que a prova global representa, nela incluindo outros depoimentos e documentos de onde isso possa ter resultado. Isso, por si só, bastaria para rechaçar o recurso nesta parte.
Mas, por outro lado, dizer que o autor gozou em certos anos um determinado número de dias de descanso não significa inquestionavelmente que tenham sido dias de descanso “legal”, pois bem pode acontecer que possam ter sido dias de descanso acertados ou combinados entre entidade patronal e empregado, fora do leque dos dias de descanso obrigatório face à lei.
Improcede, pois, esta alegação.
*
Finalmente, insurge-se o recorrente contra a forma “Não provado” como foi respondido o quesito 21º, onde se perguntava se “era a ré quem pagava o rendimento da A. à data da assinatura o documento 1 da contestação”.
Para o efeito, transcreve o depoimento de duas testemunhas. Dele resulta, efectivamente, que o salário dos trabalhadores continuavam a ser pagos pela STDM, não obstante a exploração do jogo já pela SJM. E estes testemunhos foram corroborados pela resposta de dois Bancos, o da China (fls. 618) e ICBC (fls. 612 e 626), onde claramente é dito que na conta de A (autora) era depositado o salário pago pela STDM (ver tradução no apenso “traduções”).
Portanto, a resposta a este quesito deve-se a erro de julgamento, o que importa correcção, no sentido de que deve ser considerado “Provado”.
*
3.2- Da nulidade da sentença
Depois de invocar o erro no julgamento da matéria de facto, a recorrente suscitou a nulidade da sentença, por considerar que o tribunal, ao julgar procedente a excepção peremptória da extinção dos créditos da A. não se pronunciou sobre a matéria dos arts. 51º a 172º da petição inicial e nos arts. 66º a 78º da resposta à contestação da 1ª ré e sobre os documentos relativos aos efeitos de domínio da 1ª ré sobre a SJM na manutenção dos constrangimentos que afligiam os trabalhadores.
Ora, como já se deixou dito, e a recorrente o compreenderá, dificilmente se poderia acolher a tese que pretendeu demonstrar nos autos: de que não tinha possibilidade de escapar à assinatura do documento/declaração. Em boa verdade, tudo o que trouxe ao articulado inicial da acção ou à resposta à contestação, não representa senão um acervo de elementos secundários que não fornecem aquele indispensável “quid” de certeza material acerca do modo como as coisas se passaram. Por isso, não tinham que fazer parte da matéria dos “Factos assentes” ou da “Base Instrutória”, tal como não tinham que fazer parte da preocupação do julgador na elaboração da sentença.
Já o dissemos e repetimos, agora em termos decisivos e últimos: O momento da transferência real da STDM para a SJM na exploração do jogo, o uso do equipamento e maquinaria de uma para outra das sociedades e, até mesmo, o pagamento do salário feito pela STDM aos trabalhadores durante algum tempo não serve, ou não basta, para relevar a posição de subjugação dos “croupiers” ou de outros empregados do casino em relação à antiga empregadora. De subjugação, de sujeição ou até mesmo de medo, diríamos nós. São apenas elementos secundários que, isoladamente, não ilustram essa dependência, esse estado de inexigibilidade de diferente atitude que não fosse a assinatura do documento em que declara nada mais ter a receber da STDM. O perigo de perda de emprego, por exemplo (isso está implícito nas palavras da autora como modo de justificar a não assinatura de tal declaração), era inexistente, uma vez que a procura de empregados com experiência para outros casinos fazia-se sentir fortemente nessa ocasião.
Portanto, nada daquilo que a recorrente queria ver tratado na sentença seria essencial ao desfecho da acção, na perspectiva do julgador e, por essa razão, não vemos em que medida a sua não inclusão na matéria de facto assente ou quesitada, assim como a omissão da abordagem de meros argumentos dali resultantes (não elementos fundamentais à causa de pedir) pode traduzir a nulidade a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC, tal como é consabidamente referido na doutrina e jurisprudência1. Percebemos e louvamos o imenso investimento e o esforço que a autora depositou na petição inicial, mas, pelo que se disse, ele não tinha virtualidade para levar o tribunal a diferente solução.
Por outro lado, tendo seguido o tribunal por um caminho, de todo contrário ao propugnado pela autora, cremos poder dizer que a solução por que enveredou tornou inútil a pronúncia sobre outros pontos invocados. Aliás, não é até verdade que o julgador não tenha feito qualquer referência à nulidade ou mesmo anulabilidade da declaração. Basta ver o 4º parágrafo da sentença para ver que assim não aconteceu, embora possamos ver ali uma forma assaz conclusiva de resolver uma controvérsia.
Razão, pela qual, não sufragamos o ponto de vista da recorrente no recurso.
*
3.3- Do mérito da sentença
Nas conclusões O e sgs. a recorrente defende a inexistência de um contrato de remissão de créditos, nem um reconhecimento negativo da dívida, tão pouco uma declaração livre e esclarecida de abandono de direitos, mas sim uma transacção entre partes.
O que estava em causa era, como se disse, as declarações de fls. 335 e 368. Segundo a primeira, a autora declarava ter recebido a título de prémio de serviço a quantia de Mop$ 29.195,50, referente à compensação extraordinária por eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a 1a R.
Nessa declaração era ainda dito que, com o montante recebido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a 1a R. subsistia e, por consequência, nenhuma quantia seria por qualquer forma exigível pela A. na medida em que nenhuma das partes devia à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
E na segunda, com o mesmo ou idêntico teor, dizia ter recebido a quantia de Mop$ 506, 54.
Importa, então, apurar se tal declaração tinha a capacidade para surtir efeitos remissivos ou quitativos, tal como foi intenção da STDM ao invocá-la na sua contestação.
Para tanto, sirvamo-nos, com a devida vénia, do texto de um acórdão do TUI lavrado no Processo nº 27/2008, em 30/07/2008, com o qual concordamos e que, por essa razão, aqui fazemos nosso, transcrevendo-o:
“A remissão é o contrato pelo qual o credor, “com a aquiescência do devedor”, renuncia ao poder de exigir a prestação devida, afastando definitivamente da sua esfera jurídica os instrumentos de tutela do seu interesse”1.
E acrescenta ANTUNES VARELA, “o interesse do credor a que a obrigação se encontra adstrita não chega a ser satisfeito, nem sequer indirecta ou potencialmente.
A obrigação extingue-se sem haver lugar a prestação2”.
A remissão consiste no que é vulgarmente designado por perdão de dívida3.
Aliás, remitir significa perdoar.
Ora, não parece ter sido isto que sucedeu, em face da declaração da autora.
A autora declarou que recebeu a prestação, que quantificou. E reconheceu mais nada ser devido em relação à relação laboral que já se tinha extinguido.
Mas não quis perdoar a totalidade ou mesmo parte da dívida, ou pelo menos não é isso que resulta da declaração, nem foi alegado ter sido essa a sua intenção.
Parece, portanto, tratar-se de quitação ou recibo, que é a declaração do credor, corporizada num documento, de que recebeu a prestação, prevista no art. 776.º do Código Civil.
Explicam PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA4 que a “quitação é muitas vezes, como Carbonnier (Droit civil, 4, 1982, n.º 129, pág. 538) justamente observa, não uma simples declaração de recebimento da prestação, mas a ampla declaração de que o solvens já nada deve ao accipiens, seja a título do crédito extinto, seja a qualquer outro título (quittance pour solde de tout compte)”.
Poderá, desta maneira, a quitação, ser acompanhada de reconhecimento negativo de dívida, que é, na lição de ANTUNES VARELA5, o negócio “pelo qual o possível credor declara vinculativamente, perante a contraparte, que a obrigação não existe.
...
O reconhecimento negativo de dívida, assente sobre a convicção (declarada) da inexistência da obrigação, não se confunde com a remissão, que é a perda voluntária dum direito de crédito existente”.
Claro que o reconhecimento negativo da dívida pode dissimular uma remissão, mas para isso há que alegar e provar o facto, o que não aconteceu.
Explica VAZ SERRA6 nos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1966, que “o reconhecimento negativo propriamente dito distingue-se da remissão, pois, ao passo que, nesta, existe apenas a vontade de remitir (isto é, de abandonar o crédito), naquele, a vontade é a de pôr termo a um estado de incerteza acerca da existência do crédito”.
E, como ensina o mesmo autor, noutra obra dos mesmos trabalhos preparatórios, a remissão não é de presumir, “dado que, em regra, a quitação não é passada com essa finalidade”7.
O reconhecimento negativo da dívida pode, de outra banda, “ser elemento de uma transacção, se o credor obtém, em troca do reconhecimento, uma concessão; mas não o é, se não se obtém nada em troca, havendo então um contrato de reconhecimento ou fixação unilateral, que se distingue da transacção por não haver concessões recíprocas”8 9.
Mas a transacção preventiva ou extrajudicial não dispensa “uma controvérsia entre as partes, como base ou fundamento de um litígio eventual ou futuro: uma há-de afirmar a juridicidade de certa pretensão, e a outra negá-la”10.
Mas nem da declaração escrita, nem das alegações das partes no processo, resulta tal controvérsia.
Em conclusão, afigura-se-nos mais preciso qualificar a declaração da autora como uma quitação acompanhada de reconhecimento negativo de dívida.
Seja como for, trate-se de quitação, de remissão ou de transacção, os efeitos são semelhantes, já que, como se verá, se está perante direitos disponíveis, uma vez que a relação laboral já havia cessado, pelo que a consequência é a inexistência do direito de crédito contra a ré.
4. Insusceptibilidade de cessão de crédito de salário. Impossibilidade de renúncia a salário. Vícios da vontade
Nas alegações de recurso para o TSI, a autora veio defender que o art. 33.º do RJRL não permite a cedência de créditos, por força do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador. E os trabalhadores estiveram sempre sob alçada económica e disciplinar da ré, já que a B controla a C, pelo que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinaram as declarações.
Mas a declaração de quitação não constitui qualquer cedência de créditos (a quem?).
Acresce que a cedência de créditos só está vedada enquanto durar a relação de trabalho e esta já se tinha extinguido quando foi emitida a quitação.
Por outro lado, ainda que tivesse havido renúncia a créditos, ou seja remissão, ela seria possível porque efectuada após extinção da relação de trabalho.
É o que defende a generalidade da doutrina. Escreve PEDRO ROMANO MARTINEZ11:
“Relacionada com a irredutibilidade12 encontra-se a impossibilidade de renúncia, de cessão, de compensação e de penhora da retribuição. Estas limitações, excepção feita à penhora, só têm sentido na pendência da relação laboral; cessando a subordinação jurídica, o trabalhador deixa de estar numa situação de dependência, que justifica a tutela por via destas limitações”.
Quanto à alegação de que a autora não teve uma vontade livre e esclarecida quando assinou a declaração, a mesma é irrelevante nesta fase, já que a autora não alegou no momento próprio factos integradores de vícios da vontade.
5. Normas convencionais e declarações negociais. O princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador
O Acórdão recorrido considerou que o art. 6.º do RJRL não permitia o acordo das partes pelo qual a autora, trabalhadora, declarasse remitir a dívida para com a ré, tendo esta declaração violado o princípio de tratamento mais favorável dos trabalhadores.
E acrescentou o mesmo Acórdão, referindo-se ao princípio de tratamento mais favorável, ele “deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir”.
Na feliz síntese de BERNARDO LOBO XAVIER13 “o princípio do tratamento mais favorável, no plano da hierarquia das normas, significa que as normas de mais alto grau valem como estabelecendo mínimos, podendo ser derrogadas por outras subalternas, desde que mais favoráveis para o trabalhador. No plano da interpretação, na dúvida sobre o sentido da lei, deverá eleger-se aquele que seja mais benéfico para o trabalhador. Na aplicação no tempo, aplicar-se-ão imediatamente todas as regras do trabalho, no pressuposto de que, havendo um constante progresso social, as novas normas são mais favoráveis para o trabalhador, conservando este, ainda, as regalias adquiridas à sombra de anterior legislação”.
O art. 6.º do RJRL dispõe o seguinte:
“Artigo 6.º
Prevalência de regimes convencionais São, em princípio, admitidos todos os acordos ou convenções estabelecidos entre os empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos ainda que disponham de modo diferente do estabelecido na presente lei, desde que da sua aplicação não resultem condições de trabalho menos favoráveis para os trabalhadores do que as que resultariam da aplicação da lei”.
Esta norma prevê que as normas convencionais, estipuladas entre empregadores e trabalhadores ou entre os respectivos representantes associativos, podem afastar o regime das normas legais desde que o regime convencional não seja menos favorável para os trabalhadores do que o regime legal.
Assim, e em primeiro lugar, as normas convencionais de que fala o preceito são normas relativas ao regime do trabalho, para vigorarem enquanto durar a relação laboral.
O acordo dos autos entre a autora e a antiga entidade patronal não é integrado por normas, isto é, não constituem nenhuma regulamentação normativa atinente às condições de trabalho. São antes declarações negociais, pelas quais a autora declara ter recebido as quantias devidas pela relação laboral já extinta e nada mais ter a receber da antiga entidade patronal.
Parece, portanto, que o art. 6.º do RJRL nada tem que ver com a matéria em apreço.
Por outro lado, o art. 6.º do RJRL prescreve, na verdade, o princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, no que respeita à prevalência dos acordos sobre a lei, ao plano da hierarquia das normas.
Mas, no caso dos autos, embora exista um acordo entre partes (entre um ex-trabalhador e uma ex-entidade patronal) não existe nenhuma lei mais favorável ou menos favorável aos trabalhadores ou a ex-trabalhadores, pelo que não se vislumbra, qualquer aplicação do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, na vertente que o art. 6.º do RJRL consagra, que é o da prevalência dos acordos sobre a lei.
Há, é certo, outras vertentes do mesmo princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, por exemplo, no art. 5.º, n.º 1 do RJRL, que é o da manutenção das regalias adquiridas sobre o regime constante do RJRL.
Mas, no caso em apreço não está em causa nenhuma alteração de regime convencional para um regime legal, pelo que a vertente do princípio do tratamento mais favorável para o trabalhador, constante do art. 5.º, n.º 1 do RJRL, não aproveitaria à autora.
O Acórdão recorrido invoca, ainda, em abono da sua tese o art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto, que institui o regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais.
Tal preceito, no seu n.º 2 fere com a nulidade os actos e os contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos naquele diploma. Ora, nem nos autos está em causa qualquer acidente de trabalho ou doença profissional, nem a quitação operou qualquer renúncia a direitos da autora.
O art. 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M é, pois, inaplicável.
Em suma, a autora não tem o direito que invocou, pelo que a acção estava condenada ao insucesso”.
Por esta autorizada posição se vê que a referida declaração, mais consentânea com uma quitação, tal como se pode ler no aresto, implica que o autor/credor nada mais tenha a exigir do devedor, seja qual for a composição do salário.
Trata-se, de resto, de uma posição que noutras ocasiões temos já subscrito em recursos de cujos arestos o aqui relator foi adjunto. Veja-se, por exemplo, e por mais recentes, os Acs. do TSI lavrados nos Processos nºs. 318/2010 e 316/2010, ambos de 28/07/2011; nº 317/2010, de 6/10/2011, nº 794/2010, de 24/11/2011 e nº 1014/2010, de 1/12/2011.
Por outras palavras, o tribunal “a quo” andou bem em ter retirado as consequências próprias de tal declaração e, em coerência, absolvido as rés STDM e SJM do pedido com todas as legais consequências, não sendo a forma solene de tal declaração necessária à sua produção de efeitos.
Na verdade, não existe a nulidade a que se referem os arts. 212º e 279º do Código Civil, porque não estamos ante uma transacção extrajudicial sujeita a escritura pública. Com efeito, nem ela representa transacção, nem o efeito que com ela se pretendia obter só seria possível através de escritura pública.
Tal-qualmente, não se sufraga o ponto de vista da autora segundo a qual a declaração em apreço padece de vício que a torna anulável, na medida em que se não demonstra a existência de qualquer “erro sobre a base do negócio” (art. 245º do CC), nem qualquer situação de “usura” (art. 275º do CC).
Quer isto dizer, portanto, que a sentença não merece censura nesta parte.
Dito isto, a decisão recorrida, no essencial, deve manter-se, ficando apenas tangida no que se refere ao erro de julgamento da matéria do art. 21º da Base Instrutória, sem que, porém, isso tenha qualquer reflexo na sorte substantiva do recurso e da acção.
***

IV- Decidindo

Face ao exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso e, em consequência:
1- Negar provimento ao recurso interlocutório interposto pela autora A;
2- Conceder parcial provimento ao recurso interposto da sentença pela autora e, consequentemente:
a) Responder “Provado” ao quesito 21º da Base Instrutória.
b) Confirmar, porém, a sentença quanto à decisão de absolvição das rés do pedido.

Custas pela recorrente.
TSI, 09 / 02 / 2012
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong (com declaração de voto)
Choi Mou Pan





Processo nº 51/2011
Declaração de voto

Subscrevo o Acórdão antecedente à excepção da parte que diz respeito à existência dos direitos do trabalhador à compensação e aos factores de multiplicação para efeitos de cálculos de indemnização pelo trabalho prestado nos descansos semanais e anuais e nos feriados obrigatórios, em tudo quanto difere do afirmado, concluído e decidido, nomeadamente, nos Acórdãos por mim relatados e tirados em 27MAIO2010, 03JUN2010 e 27MAIO2010, nos processos nºs 429/2009, 466/2009 e 410/2009, respectivamente.

RAEM, 09FEV2012

O juiz adjunto


Lai Kin Hong

1 No direito comparado, v.g., Ac. do STJ, de 13/09/2007, Proc. nº 07B2522.dgsi.Net
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